2005

A teoria da relatividade

por José Carlos Avellar

Resumo

Antes de mais nada, a pornochanchada é uma invenção da censura.

Uma conversa autoritária que avança aos tropeções, como se tivesse sido censurada, autocensurada, deformada, na origem; na origem, no instante mesmo em que começa a se articular; negação, expressão contrária à vontade que comanda toda e qualquer expressão, a vontade de dizer algo; variante da proibição de falar imposta pelo poder — uma pornochanchada é isto. Uma consequência do impedimento de conversar livre e abertamente, uma acomodação a este impedimento. A pornochanchada não exatamente se opôs à censura; ao contrário, tentou ser a imagem dela, como se o que foi inventado para esconder procurasse se mostrar. Foi assim não porque isto tenha sido previamente pensado e organizado — mesmo porque pensar e organizar, minimamente que fosse, significava uma articulação, o que é incompatível com esta procura de se compor como a imagem da censura. Simplesmente: a censura estava no poder e a pornochanchada incorporou a ideia do poder sem se dar conta disso, reproduzindo em sua prática o mecanismo do sistema como um todo. O jornal, o rádio, a televisão, o disco, o teatro, o livro, como o cinema, como tudo o mais, estavam sob controle. As informações não podiam circular. As conversas eram amordaçadas. A pornochanchada transformou isso numa imagem, numa linguagem, num modo de falar. O primeiro plano de um personagem soletrando um palavrão apagado da pista de som — imagem inventada pelo Serviço de Censura ao cortar o palavrão da faixa sonora e deixar a imagem falando muda, sem som mas permitindo a leitura labial. Essa foi uma das primeiras marcas registradas da pornochanchada. A imagem bateu na tela como cinema emudecido. Deu certo, o público riu (muito provavelmente da censura, que ganhava forma visível), e a solução começou a ser repetida, transformou-se em clichê. Nada se deu em atendimento a um projeto. Se fosse possível falar de um projeto nisso que nem chegou a ser pensado, o projeto seria exatamente esse: não ter projeto, desarticular-se, cada um por si e o governo contra todos, não criar um modelo, um procedimento, um corpo capaz de ser identificado e então reprimido. Nada se deu em atendimento a um desejo. Vontade nenhuma. A vontade era trabalhar no interior da repressão da vontade, na opressão do desejo. Não agir, reagir. Passivamente, desarticuladamente. Estratégia de fôlego curtíssimo, talvez, mas incapaz de ser desmontada pelos mecanismos de repressão criados pela ordem militar para reprimir as vontades livres. Uma estratégia para se mexer sem sair do lugar como recomendava a desordem que no poder reprimia qualquer gesto. Os temas, as formas de narração e os métodos de produção foram determinados por pressões e circunstâncias que pouco têm a ver com o cinema. Proibindo todo discurso crítico (mais exatamente: proibindo todo discurso articulado), o poder militar abriu espaço para uma fusão da prática da chanchada dos anos 40 e 50, que imitava desajeitadamente o comportamento do poder cinematográfico, com o que parecia despontar como um novo poder subversivo nos mercados da Europa e dos Estados Unidos, o filme pornográfico. Fusão não é a palavra exata: confusão define melhor o que resultou deste retorno à prática do tempo das chanchadas de carnaval inspiradas nos musicais de Hollywood (fazer paródias, imitações, versões brasileiras) com uma avaliação de que então, começo da década de 70, o modelo a ser copiado, porque capaz de reunir maior público, era o filme pornográfico, que começava a invadir as salas comerciais regulares europeias e norte-americanas. Copiar o filme pornográfico à maneira das velhas chanchadas: era preciso fazer malfeito para tocar um sentimento de inferioridade, para estimular uma reação de deboche diante da própria incapacidade (muito antes de se transformar em verso de canção irônica e distanciada, a pornochanchada cantou em imagens grosseiras: “Inútil, a gente somos inútil”). Resultado de uma informação imprecisa sobre o que parecia estar na moda, o pornográfico, e da lembrança imprecisa da chanchada de carnaval, e principalmente, resultado da precisa desordem provocada pela censura, a pornochanchada surgiu num vazio de cinema brasileiro. Um vazio de cinema, porque ela mesma se apresentava como um cinema relativo. Um vazio provocado pela censura.


Em setembro de 1978, ao mesmo tempo em que o governo militar armava as festas da Semana da Pátria, chegava aos cinemas do Rio de Janeiro Laranja mecânica (A clockwork orange), de Stanley Kubrick. O filme ficara proibido durante sete anos e sua liberação parecia indicar uma nova orientação de censura. Aparentemente estavam terminados os dias de intervenções violentas como aquela da sexta-feira 22 de junho de 1973, quando dez filmes já com certificados de censura e em exibição no Rio de Janeiro foram arrancados das salas de projeção e proibidos em todo o país por determinação da portaria 313 do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, general Antônio Bandeira.[1] A retirada de cartaz de filmes anteriormente liberados para uma reavaliação, imposição de novos cortes ou proibição não era um fato novo. Basta lembrar o que ocorreu por exemplo com O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, retirado dos cinemas (em 6 de junho de 1966) quase dois meses depois de sua estreia (em 28 de março, no Rio de Janeiro) para ser submetido a novo exame. A nova avaliação (o filme, então, estava liberado para maiores de 18 anos) se devia “às inúmeras queixas e polêmicas surgidas em torno da mensagem contida no filme”, explicava o chefe do Serviço de Censura, Antônio Romero Lago. Junho de 1973: não era a primeira vez que um filme previamente liberado pela Censura era apreendido para nova avaliação, mas pela primeira vez não apenas um mas dez filmes eram retirados de cartaz ao mesmo tempo e passavam a ter sua exibição proibida em todo o país.

A proibição, no começo, foi uma proibição relativa. A portaria foi baixada em Brasília numa sexta-feira à tarde, logo noticiada nas rádios e televisões e no dia seguinte, nos jornais. Como nos sábados e domingos os censores não trabalhavam, os filmes só foram apreendidos nos cinemas na segunda-feira, dia 25, quando finalmente a Polícia Federal do Rio recebeu o comunicado oficial de Brasília. Entre a ordem e o cumprimento da ordem as salas de exibição promoveram sessões especiais no sábado e no domingo, dez da manhã, meio-dia, meia-noite, duas da madrugada, e muita gente pôde ver os filmes que pouco depois estariam proibidos para valer mesmo. Esta tragicômica proibição foi relativamente bem noticiada pela imprensa, e por isso a Censura decidiu reforçar a censura a notícias sobre a Censura. Na terça-feira a Polícia Federal enviou uma ordem aos jornais, rádios e televisões para reforçar a proibição feita no começo do mês. A ordem enviada pela Polícia Federal no dia 4 de junho dizia: “De ordem superior fica, terminantemente, proibida a publicação de críticas ao sistema de censura, seu fundamento e sua legitimidade, bem como qualquer notícia crítica, referência escrita, falada e televisada direta ou indiretamente formulada contra órgãos de censura, censores e legislação censória”. A imprensa não comentou a proibição imposta pela portaria 313, apenas noticiou a decisão de proibir o que havia sido previamente liberado. E assim, na terça-feira 26, nova ordem: “Fica reiterado radiograma anterior, no sentido de proibir a publicação de crítica ao critério de censura, seu fundamento, sua legitimidade, bem como qualquer notícia crítica ou referência contra órgãos de censura e censores e legislação censória, até posterior liberação”.[2]

Cinco anos depois, o anúncio da aprovação de Laranja mecânica, em setembro de 1978, parecia indicar que a Censura estava disposta a deixar de cortar e proibir (ainda que de forma lenta e gradual) para se limitar a classificar os filmes (e tudo o mais) de acordo com a idade do espectador. Em verdade o que aconteceu então foi uma liberação relativa. O governo, poucos meses antes, dissera que estávamos começando a viver uma “democracia relativa”. 1978, convém lembrar, é o ano em que se realizam as primeiras greves dos trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista e em que o general Ernesto Geisel, nos últimos meses de seu governo, revogou o ato institucional número 5. Convém lembrar ainda: em outubro deste mesmo ano de 1978 o general João Batista de Figueiredo, confirmado como sucessor do general Geisel, afirmava enfaticamente. “É para abrir mesmo. E quem não quiser que abra eu prendo e arrebento”.[3]

Abertura, Laranja mecânica, democracia relativa. A Censura passava a promover liberações relativas. Mas continuava a manter proibições nada relativas.

[Por exemplo: em abril de 1982, quatro anos depois da permissão concedida a Laranja mecânica, a Censura apreendia cópias de O encouraçado Potemkin (Bronienosets Potemkin, 1925) e de Outubro (Oktiabr, 1928), de Sergei Eisenstein, programadas para exibição num seminário sobre montagem na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio; e proibia Pra frente, Brasil, de Roberto Farias. O filme, em evidência depois de premiado no Festival de Gramado, foi considerado de “baixo padrão moral” porque empenhado em fazer “a apologia do terror e do terrorismo”, de acordo com o general Octávio Luiz de Rezende, chefe do Centro de Comunicação Social do Ministério do Exército. Para o general o filme de Roberto Farias procurava “subverter a história” apresentando “como heróis os sequestradores, assassinos que, friamente, disparavam na cabeça de gerentes de bancos, assaltantes que deixaram a escola para o banditismo que hoje se pratica, bem urdido e planejado”. O general dizia ainda que a presença de “artistas que se apresentam diariamente na televisão e que despertam a simpatia do público” era “uma tentativa de ganhar adeptos para o terrorismo”; que o filme procurava “disfarçar seus propósitos com determinadas cenas rápidas, com as quais, provavelmente, o produtor pretende livrar-se de um enquadramento legal, no que só enganaria a idiotas”; que era lastimável que filmes como esse fossem produzidos no país, “secretamente e nos subterrâneos de sabe Deus onde”, enquanto o Exército, ao contrário, produzia “mensagens positivas, animando o povo a alcançar uma democracia com justiça social, mas sem lutas internas”.[4]

Laranja mecânica, realizado em 1971, trazido pouco depois para ser lançado no mercado brasileiro, não chegou a ser propriamente proibido pela Censura, que até agosto de 1978 não teria recebido o filme para exame em caráter oficial. Existia uma cópia em Brasília, bem precisamente no Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal. Uma cópia com legendas em português, de quando em quando usada em sessões para convidados especiais. Mas oficialmente o filme não tinha sido enviado ao Serviço de Censura. Oficialmente o filme não existia. Oficialmente não existiam também Último tango em Paris (Last tango in Paris, 1972), de Bernardo Bertolucci, e Emmanuelle (1973), de Just Jaeckin, embora um e outro fossem igualmente exibidos com regularidade em sessões especiais no auditório da Censura em Brasília.

[Na verdade os distribuidores de filmes estrangeiros não chegaram a ter grandes problemas com a Censura. Depois de junho de 1973 estabeleceu-se um entendimento relativo entre as partes. Alguns filmes eram enviados em caráter oficioso, para uma consulta. Vários outros, digamos, inadvertidamente importados, entraram para o grupo de filmes que oficialmente não existiam, condenados a uma existência extra-oficial até que, liberados e legalizados a partir de 1978, passaram a ter uma existência relativa em velhas e descoloridas cópias nas telas dos cinemas.]

O que não existia oficialmente não poderia ser oficialmente proibido. O que estava mais ou menos proibido foi mais ou menos liberado. Democracia relativa, censura relativa para Laranja mecânica: em todas as cenas em que um personagem qualquer aparece nu ou seminu, uma bola preta carimbada imagem por imagem cobre a nudez. O filme estava liberado, no entanto, mais forte que a liberação, aparecia a censura, a mancha grosseira que impede o espectador de ver a cena tal como ela foi feita.

Antes de bater na tela em forma de bolas pretas, a censura apareceu duas outras vezes neste mesmo programa de estreia do filme de Kubrick — duas outras vezes sem contar a aparição rotineira que se fazia desde sempre (em particular desde o decreto-lei 20.493 de 24 de janeiro de 1946)[5] em cada filme exibido comercialmente, longo ou curto, ficção, cinejornal ou trailer: para se apresentar num cinema, cada cópia deveria ser acompanhada de um certificado de censura em papel e de um certificado-película. O certificado-papel original (não se admitiam fotocópias), em papel de dupla face (frente, com a indicação das faixas etárias para as quais o filme estava liberado, e verso, com a indicação de cenas eventualmente cortadas), deveria obrigatoriamente ser colocado dentro da lata do primeiro rolo do filme. Além disso a frente do certificado deveria ser filmada e colada na ponta de cada cópia para ser projetada pelo tempo necessário à sua identificação e leitura — o certificado-película passava desse modo a fazer parte integrante da cópia. Assim, aqui, nesta sessão, antes das bolas pretas sobre os nus de Laranja mecânica, e além dos certificados de censura no começo dos filmes, duas outras aparições da censura, então com aparência e colorido mais suaves.

Primeiro numa propaganda de cigarros, filmezinho de dois planos apenas, com cerca de meio minuto de duração. O plano número um começa fechado no rosto de um homem, cigarro na boca; uma lenta abertura do enquadramento por meio de um movimento da lente zoom, mostra que ele está no jardim de uma casa luxuosa, na beira da piscina, dia de sol. Enquanto a imagem vai-se abrindo entra em cena um grupo de mulheres sorrindo, ao mesmo tempo, para o fumante na beira da piscina e para o espectador na sala de projeção. O homem cercado de mulheres, uma voz masculina sussurra: “Riqueza é como mulher, só não se preocupa quem já tem o bastante”. Terminada a frase, termina a imagem. Bate na tela o plano número dois, um maço de cigarros, a embalagem dourada em destaque contra o fundo escuro. Uma legenda no pé da imagem, o nome e o endereço do produto, e a mesma voz masculina, agora num tom mais incisivo, repete em voz alta o que está escrito.[6]

Depois da propaganda do cigarro, a censura voltou a aparecer numa propaganda do governo. Desde pouco depois do ato institucional número 5, filmetes diretamente produzidos ou encomendados pelo governo militar eram obrigatoriamente colados nos cinejornais, que então ainda se exibiam regularmente nos cinemas. Tais filmetes eram também inseridos várias vezes por dia, em diferentes horários, nos programas de televisão. O daquela semana era um desenho animado com quatro bonecos alegres: um branco, um preto, um vermelho-alaranjado, o quarto amarelo. Numa gaivota de papel, voavam sobre Manaus, Recife, Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Brasília, para “cantar ao mundo inteiro a alegria de ser brasileiro” e se colocar à disposição do país: “Conte comigo, Brasil, acima de tudo brasileiro”.

Um fumante, quatro bonecos coloridos e uma bola preta sobre a nudez. Quem saiu de casa entre o final de agosto e o começo de setembro de 1978, entre o Dia do Soldado e a Semana da Pátria, para comemorar no cinema a abertura de uma censura relativa encontrou numa única sessão o que tornou possível o aparecimento da pornochanchada: a Censura (compreendida aqui não apenas como o serviço que proíbe, elimina, corta, mas também como a essência mesma do poder, sua imagem e sua voz) e a propaganda.

Antes de mais nada, a pornochanchada é uma invenção da Censura.

São poucos os trechos em que um personagem aparece nu em Laranja mecânica. Longe, lá no fundo do plano, sobre o palco de um teatro ao ar livre, uma mulher, na cena em que o bando de Alex se prepara para atacar o bando de Billy Boy. Longe da câmera também, na cena do assalto à casa do escritor Alexandre, entre socos, chutes e golpes de cassetete, Alex rasga a roupa da mulher do escritor com uma tesoura. Além disto, o que mais? As duas garotas no quarto de Alex, a policial, no momento em que comprova a eficiência da Técnica de Ludovico, e a mulher na neve, no final do filme. Talvez uma outra imagem ligeira, que de tão ligeira nem ficou na memória. O que fica mesmo é a certeza de que nestas cenas a nudez é o que menos se nota. Pouco provável, por exemplo, que no meio da violenta briga entre os bandos de Alex e de Billy Boy o espectador veja a mulher no fundo da cena como um corpo nu. Vê mesmo é o que ela é, personagem humilhada, agredida, violentada por Billy Boy. Menos provável ainda que na invasão da casa de Alexandre o espectador veja a nudez da mulher do escritor. Ela está nua, sim, mas a nudez não é o centro da ação. O espectador, caído no chão, colado no rosto de Alexandre, sofre violência igual (numa outra dimensão mas igual) à do escritor amarrado, amordaçado, surrado. No centro do plano está seu rosto inchado, vermelho, olhos esbugalhados, uma bola de tênis enfiada na boca. No centro está também o rosto debochado de Alex, que agita o nariz comprido de sua máscara perto da câmera, perto dos olhos do escritor, bem perto dos olhos do espectador. O que aparece, com força, sem deixar que se veja outra coisa, é a carranca deformada do agressor e a expressão desesperada da vítima. Envolvido pela violência da ação, difícil, se não impossível, que o espectador se dê conta da nudez da mulher no fundo da imagem. De certo modo é um alívio que ela apareça fora de foco, pois assim não somos obrigados a encarar olhos nos olhos a vítima daquela brutalidade. E quando Alex se fecha no quarto com as duas garotas que encontrara ao acaso numa loja de discos, mesmo neste momento em que os personagens correm para a cama e tiram a roupa depressa só pensando em sexo, mesmo neste momento a nudez quase nem se nota. A cena foi filmada de modo que na projeção os gestos se tornassem cômicos e acelerados, o que o espectador vê é o movimento rápido. Na cena não tem importância o fato de os personagens estarem nus, mas sim a comicidade daquele balé mecânico.

Não fossem as bolas pretas que, carimbadas quadrinho por quadrinho, fotograma por fotograma, ficam dançando desajeitadamente na tela, os nus não seriam sequer notados. Os personagens estão nus porque frágeis e absolutamente desprotegidos. Estão absolutamente sem nada: nus. A nudez em Laranja mecânica é uma roupa, um figurino que ajuda a plateia a sentir a brutalidade de Alex, nem seriam vistas como nudez e cenas de sexo não fosse a intervenção da Censura. Tornaram-se aparentes e obscenas graças às bolas pretas que alteraram a composição e o significado original da imagem. A mancha imposta para cobrir o que no fundo do quadro já estava escondido traz o que estava quase invisível para primeiro plano. A mulher do escritor está lá atrás. A mulher perseguida por Billy Boy, mais atrás ainda. Não importa. Depois da censura o que aparece é o nu — pior: o nu escondido, a grosseria que deforma aquilo que esconde. O mesmo acontece nas pornochanchadas. São chanchadas e são pornográficas não tanto pelo que exibem mas sim pela solução grosseira usada para encobrir o que não exibem. Trata-se de imitar a Censura, de procurar qualquer expediente tão estúpido quanto a bola preta imposta a Laranja mecânica para cobrir/deformar a nudez. Na verdade, quando a Censura decidiu servir-se das bolas pretas para liberar o filme de Stanley Kubrick, a pornochanchada já existia há quase dez anos; deste modo o que de fato aconteceu neste caso em particular foi uma retomada: a Censura foi à pornochanchada apanhar de volta o que a pornochanchada aprendera com ela. a linguagem estúpida, a expressão truncada, a palavra cortada.

Uma conversa autoritária que avança aos tropeções, como se tivesse sido censurada, autocensurada, deformada, na origem; na origem, no instante mesmo em que começa a se articular; negação, expressão contrária à vontade que comanda toda e qualquer expressão, a vontade de dizer algo; variante da proibição de falar imposta pelo poder — uma pornochanchada é isto. Uma consequência do impedimento de conversar livre e abertamente, uma acomodação a este impedimento. A pornochanchada não exatamente se opôs à Censura, ao contrário, tentou ser a imagem dela, como se o que foi inventado para esconder procurasse se mostrar. Foi assim não porque isto tenha sido previamente pensado e organizado — mesmo porque pensar e organizar, minimamente que fosse, significava uma articulação, o que é incompatível com esta procura de se compor como a imagem da Censura. Simplesmente: a Censura estava no poder e a pornochanchada incorporou a ideia do poder sem se dar conta disto, reproduzindo em sua prática o mecanismo do sistema como um todo. O jornal, o rádio, a televisão, o disco, o teatro, o livro, como o cinema, como tudo o mais, estavam sob controle. As informações não podiam circular. As conversas eram amordaçadas. A pornochanchada transformou isto numa imagem, numa linguagem, num modo de falar. O primeiro plano de um personagem soletrando um palavrão apagado da pista de som — imagem inventada pelo Serviço de Censura ao cortar o palavrão da faixa sonora e deixar a imagem falando muda, sem som mas permitindo a leitura labial. Esta foi uma das primeiras marcas registradas da pornochanchada. A imagem bateu na tela como cinema emudecido. Deu certo, o público riu (muito provavelmente da Censura, que ganhava forma visível) e a solução começou a ser repetida, transformou-se em clichê. Nada se deu em atendimento a um projeto. Se fosse possível falar de um projeto nisto que nem chegou a ser pensado, o projeto seria exatamente esse: não ter projeto, desarticular-se, cada um por si e o governo contra todos, não criar um modelo, um procedimento, um corpo capaz de ser identificado e então reprimido. Nada se deu em atendimento a um desejo. Vontade nenhuma. A vontade era trabalhar no interior da repressão da vontade, na opressão do desejo. Não agir, reagir. Passivamente, desarticuladamente. Estratégia de fôlego curtíssimo, talvez, mas incapaz de ser desmontada pelos mecanismos de repressão criados pela ordem militar para reprimir as vontades livres. Uma estratégia para se mexer sem sair do lugar como recomendava a desordem que no poder reprimia qualquer gesto. Os temas, as formas de narração e os métodos de produção foram determinados por pressões e circunstâncias que pouco têm a ver com o cinema. Proibindo todo discurso crítico, (mais exatamente: proibindo todo discurso articulado) o poder militar abriu espaço para uma fusão da prática da chanchada dos anos 40 e 50, que imitava desajeitadamente o comportamento do poder cinematográfico, com o que parecia despontar como um novo poder subversivo nos mercados da Europa e dos Estados Unidos, o filme pornográfico. Fusão não é a palavra exata: confusão define melhor o que resultou deste retorno à prática do tempo das chanchadas de carnaval inspiradas nos musicais de Hollywood (fazer paródias, imitações, versões brasileiras) com uma avaliação de que então, começo da década de 70, o modelo a ser copiado, porque capaz de reunir maior público, era o filme pornográfico, que começava a invadir as salas comerciais regulares europeias e norte-americanas. Copiar o filme pornográfico à maneira das velhas chanchadas: era preciso fazer malfeito para tocar um sentimento de inferioridade, para estimular uma reação de deboche diante da própria incapacidade (muito antes de se transformar em verso de canção irônica e distanciada, a pornochanchada cantou em imagens grosseiras: “Inútil, a gente somos inútil”). Resultado de uma informação imprecisa sobre o que parecia estar na moda, o pornográfico, e da lembrança imprecisa da chanchada de carnaval, e principalmente, resultado da precisa desordem provocada pela censura, a pornochanchada surgiu num vazio de cinema brasileiro. Um vazio de cinema, porque ela mesma se apresentava como um cinema relativo. Um vazio provocado pela censura. E um vazio de características especiais: a produção cresceu.

A produção brasileira anterior ao período de ação mais intensa da Censura, embora especialmente marcada pelo Cinema Novo, experimentava diferentes modelos cinematográficos, inspirados por estilos e gêneros estrangeiros ou por práticas brasileiras anteriores ao Cinema Novo — como podemos observar numa rápida consulta aos filmes do final dos anos 60. Produzíamos então entre 40 e 50 longas-metragens por ano.

Cinema Novo, sim — por exemplo: Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha; O caso dos irmãos Naves (1967), de Luís Sérgio Person; Fome de amor (1968) e Azyllo muito louco (1969), de Nelson Pereira dos Santos; Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade; Os herdeiros (1969), de Carlos Diegues; Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr.

Cinema Marginal, também — por exemplo: A margem (1967), de Ozualdo Candeias; O bandido da luz vermelha (1969), de Rogério Sganzerla; O anjo nasceu e Matou a família e foi ao cinema (ambos de 1969), de Julio Bressane.

E várias tentativas de estabelecer uma prática que recuperasse o molde dos dramas europeus adaptados pela Vera Cruz — por exemplo, O quarto (1967), de Rubem Biáfora, As amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri — ou que recuperasse as lições das chanchadas de carnaval — por exemplo: Jovens pra frente (1968), de Alcino Diniz; Golias contra o homem das bolinhas (1969), de Vitor Lima.

Ou, ainda, várias tentativas de tradução dos gêneros que organizavam a produção industrial norte-americana: aventuras policiais — por exemplo. O mistério do Taurus 38 (1965-1968), de Ary Fernandes e Oswaldo Oliveira; Os viciados (1968), de Braz Chediak; Tempo de violência (1969), de Hugo Kusnet. Filmes de terror — por exemplo: Esta noite encarnarei no teu cadáver, 1967, de José Mojica Marins.

E cangaço no lugar do western — por exemplo: Corisco, o diabo loiro (1969), de Carlos Coimbra; Meu nome é Lampião (1969), de Mozael Silveira; Deu a louca no cangaço (1969), de Nelson Teixeira Mendes e Fauzi Mansur; O cangaceiro sem Deus e O cangaceiro sanguinário (ambos de 1969), de Oswald() de Oliveira; Quelé do Pajeú (1969), de Anselmo Duarte.

Nos anos seguintes vários destes diretores e produtores que procuravam trabalhar apoiados em modelos comercialmente bem-sucedidos se dedicaram à pornochanchada: Mozael da Silveira (Com a cama na cabeça, 1972; Mais ou menos virgem, 1973; O erótico virgem, 1978), Braz Chediak (Os mansos, 1973; Banana mecânica, 1974; O roubo das calcinhas, 1975), Oswaldo de Oliveira (Os garotos virgens de Ipanema, 1973; As meninas querem… e os coroas podem, 1976; Histórias que nossas babás não contavam, 1979), José Mojica Marins (Como consolar viúvas, 1976; A mulher que põe a pomba no ar, 1977; as duas assinadas com o pseudônimo de J. Avelar), Fauzi Mansur (A noite das fêmeas, 1975; Belas e corrompidas, 1976; O mulherengo, 1977), Alcino Diniz (Motel, 1975), Alfredo Palácios (produtor de Trote de sádicos, 1974, de Aldir Mendes de Souza; Empregada para todo serviço, 1978, de Geraldo Gonzaga), Antônio Polo Galante (produtor de As cangaceiras eróticas, 1974; A ilha das cangaceiras‘ virgens, 1976, ambos de Roberto Mauro), Ary Fernandes (O supermanso, 1974; Essas deliciosas mulheres, 1979). E mesmo Luis Sérgio Person (Cassy Jones, o magnífico sedutor, 1972), Anselmo Duarte (Já não se faz amor como antigamente, 1975, filme de três episódios, os outros dois dirigidos por Adriano Stuart e John Herbert) e Walter Hugo Khouri (O prisioneiro do sexo, 1979) se aproximaram da pornochanchada. E pelo menos três filmes feitos em 1969 (Os paqueras, de Reginaldo Faria, As libertinas, de Carlos Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro, e Adultério à brasileira, de Pedro Carlos Rovai), quer pelo tema quer pelo modo de produção, antecipam sinais do que viria a se transformar na pornochanchada nos anos seguintes. Vale lembrar ainda que também em 1969 começa a circular O Pasquim, cuja irreverência e deboche não têm propriamente a ver com a pornochanchada, mas reforçam a ideia de buscar uma saída pelo grotesco.

O que tínhamos no final dos anos 60, uma produção diversificada, desapareceu com o aperto da Censura. Ao mesmo tempo em que se preparava a transição do Instituto Nacional de Cinema para a Embrafilme, a Censura desorganizava o cinema (mais exatamente: desorganizava o país), prendendo, cortando ou criando dificuldades para a liberação de filmes. Pensemos num filme realizado entre dezembro de 1968, entre o ato institucional número 5, e dezembro de 1970, quando surgiram as primeiras pornochanchadas: Macunaíma, Como era gostoso o meu francês, São Bernardo, Brasil ano 2000, Os herdeiros, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, A vida provisória, O bravo guerreiro, O país de São Saruê, Matou a família e foi ao cinema, Jardim de guerra, Manhã cinzenta, A mulher de todos, Navalha na carne. Qualquer um. Todos tiveram problemas com a Censura. E ao mesmo tempo mais que todos e menos que todos, as pornochanchadas tiveram problemas com a Censura. Mais que todos: a Censura proibiu títulos, cortou o som, cortou cenas. Menos que todos: as mutilações impostas se revelaram ineficientes para coibir o que em si já se apresentava como expressão mutilada. Na desordem imposta pela Censura só a desordem e o vazio de ideias se moviam à vontade.

Esta desorganização, repressão, censura, vazio, se revela por uma imagem na aparência contraditória: a produção sobe quantitativamente depois da maior grosseria da Censura: 25 filmes brasileiros foram exibidos em 1967; 51 em 1968; 44 em 1969 – de acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional do Cinema, em 1974, e pela Embrafilme, em 1975.[7] De acordo com estas mesmas fontes: em 1970, foram distribuídos comercialmente 74 novos filmes brasileiros; em 1971, foram 76 novos títulos; em 1972, ligeira queda, 68 filmes foram distribuídos; em 1973, a queda se acentua, 57 filmes; mas logo novo crescimento: 74 títulos chegam aos cinemas em 1974 e no ano seguinte, 79 – já então a metade dos títulos brasileiros exibidos comercialmente eram pornochanchadas. Algumas delas com os sinais mais evidentes das chanchadas pornôs – comédias, produções divididas em episódios – outras com a grosseria semi-encoberta pelo disfarce de drama, aventura policial, comédia de costumes.

Foram 31 em 1974, num total de 74 lançamentos (entre elas: A virgem e o machão, de José Mojica Marins, Gata devassa, de Raffaele Rossi, e Oh! Que delícia de patrão, de Alberto Pieralisi).

Foram 38 em 1975, num total de 79 títulos (entre elas: Com as calças na mão, de Carlo Mossy, Onanias, o poderoso machão, de Geraldo Miranda e Elio Vieira de Araújo, O incrível seguro de castidade, de Roberto Mauro).

Foram 41 em 1976, num total de 84 títulos exibidos (entre elas: As mulheres que dão certo, de Adnor Pitanga e Lenine Ottoni, O dia das profissionais, de Rajá de Aragão, O sexo das bonecas, de Carlos Imperial, Quem é o pai da criança, de Ody Fraga).

Em 1978, ao lado das bolas pretas de Laranja mecânica, entre os 88 títulos brasileiros exibidos comercialmente, encontravam-se ainda 41 pornochanchadas, entre elas uma com um título que funcionava como uma despedida: Assim era a pornochanchada, de Vitor di Mello e Claudio MacDowell. O título retomava o de uma antologia das chanchadas de carnaval da Atlântida Cinematográfica lançada em outubro de 1975, Assim era a Atlântida, de Carlos Manga, que por sua vez retomava a ideia da antologia de musicais de Hollywood feita por Jack Haley Jr. em 1974, That’s entertainment, lançada no Brasil em dezembro deste mesmo ano com o título de Era uma vez em Hollywood. E deste modo, por uma série de coincidências, a cerimônia de despedida remete a um dos pontos de partida.

O que existiu no tempo da pornochanchada talvez possa mesmo se definir como um quadro de desordem e de vazio de filmes brasileiros provocados pela Censura – ainda que este vazio tenha se caracterizado por um aumento quantitativo da produção. Vazio de fato porque cinema nas chanchadas pornôs era uma questão relativa, embora pouco adiante realizadores de pornochanchadas se apresentassem como autores de um projeto de cinema nacional e popular que teria realizado o que “os filmes intelectualizados” não tinham conseguido: a conquista do mercado. Por exemplo, Pedro Carlos Rovai, produtor e diretor, entre outros, de A viúva virgem (1972), Os mansos (1973) e Ainda agarro essa vizinha (1974), definia a pornochanchada em janeiro de 1976 como uma retomada do cinema popular que fora esquecido “em favor da grandiloquência, de filmes voltados para fora, os festivais, as revistas. Um cinema afastado do público. Este foi o pecado capital do cinema brasileiro na última década. Tão capital que deixou uma brecha para um cinema menor, a pornochanchada (…) assim se rotulou um tipo de cinema. A palavra adquiriu carga negativa. Em qualquer reunião de classe média, se falar em pornochanchada parece uma doença contagiosa. Tiram as criancinhas de perto da gente. A menina que estava te dando bola não dá mais, porque você dirige pornochanchada (…) O sucesso desses filmes se deve à repressão do sexo nas camadas populares, que vão ver esses filmes para se libertar. Isto se aplica a todo o cinema. Quem vive em conjugados de Copacabana ou em favela vai ao cinema para ver castelos”.[8]

Noutros momentos as pornochanchadas, no jeito de filmar ou em depoimentos de seus diretores em jornais, faziam de conta que se aproximavam do projeto do Udigrudi, do Cinema Marginal: um cinema pobre, menor, do Terceiro Mundo. Um cinema péssimo e livre, de acordo com a expressão usada por Rogério Sganzerla para definir O bandido da luz vermelha (1969). Um cinema que se avacalha: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente se avacalha. A gente se avacalha e se esculhamba”. A pornochanchada radicalizou e embruteceu a fala do bandido de Sganzerla. Censura no poder? Sigamos a lição da Censura. Pornochanchada e Censura falavam a mesma língua, falavam no mesmo tom, e talvez por isso brigavam o tempo todo. Os desentendimentos foram muitos. Algumas pornochanchadas perderam trechos longos, outras chegaram aos cinemas sem cartaz e sem fotos (ou porque haviam sido proibidas ou porque se apresentar assim ajudava a sugerir uma intervenção da Censura). O espectador não ia ao cinema para ver um filme malfeito mas para ver a censura no malfeito do filme. Os cortes, as proibições, o que não podia se mostrar tinham força maior do que o que se mostrava.

Quando a ação da Censura já se revelava claramente ineficiente diante da pornochanchada, surgiu no poder a ideia da pressão absoluta, a cassação dos cineastas envolvidos com as chanchadas pornôs. No princípio de agosto de 1975 o deputado federal Ary Kffuri, da Arena do Paraná, em atendimento à reivindicação de uma União Cívica Feminina Paranaense, discursou no Congresso propondo a cassação dos direitos dos cineastas, assim como tinham sido cassados os direitos dos políticos subversivos. O deputado e a união feminina paranaense não foram os primeiros a protestar. Dois anos antes, junho de 1973, pouco antes da proibição dos dez filmes previamente liberados e em exibição comercial, o deputado Cantídio Sampaio, da Arena de São Paulo, e o deputado Braga Ramos, da Arena do Paraná, apontavam o cinema como “o mais perigoso instrumento de desagregação, a pior de todas as poluições” porque “corrompe a alma de uma nação, a sua juventude”. Citando movimentos de recuperação da juventude e movimentos em defesa de um mundo cristão, apontavam “a corrupção no cinema”, parte de “um plano organizado para diluir a civilização cristã em seus valores essenciais”. Alertavam que o Estado poderia ser tragado pela “avalanche de anarquia moral” existente nestes filmes, que são “um insulto em palavras, gestos, cenas indecorosas”. Dois anos depois, Kffuri retomou os protestos atacando “fitas produzidas por cineastas nacionais que visam principalmente ao lucro e servem para deformar consciências, especialmente a da juventude”; denunciou que “vultosas verbas do Instituto Nacional de Cinema, destinadas à educação do povo e à elevação de seu padrão cultural”, estavam sendo “empregadas para a deseducação do país”; e concluiu que, “assim como houve intervenção do poder no processo político”, era preciso “cassar ao cinema nacional, por sua vez, o poder de corromper, carreando, depois, as reservas de que dispõe para ajudar na formação de uma juventude sadia com que o país possa contar para seu engrandecimento”. Para o deputado, o cinema deveria ficar “sob o rigoroso controle dos objetivos educacionais” que o poder tinha “para a juventude em particular e para o povo em geral”. Kffury elogiou a União Cívica Paranaense “pela inigualável felicidade da campanha proposta a fim de transformar o cinema numa agência positiva de educação, segundo os moldes que interessam à pátria.”[9] Meses mais tarde, na já citada entrevista de Pedro Carlos Rovai, a pornochanchada reagia: “E chanchada é só no cinema? Nunca vi falarem da chanchada da arquitetura, da política, da economia, dos pronunciamentos oficiais, da devastação florestal, das festas dos grã-finos. Essa chanchada ninguém vê. A chanchada cinematográfica virou bode expiatório para as pessoas integradas no sistema. Se acabar com a pornochanchada, o Brasil vai ficar mais digno? Mais independente?”[10]

Os desentendimentos foram muitos mas serviram só para reforçar cada uma das partes em briga. A Censura não conseguia censurar o que já tinha nascido censurado. Não se sabia como vigiar e punir quem tinha se colocado à margem sem deixar o centro do sistema e que por isso podia seguir indiferente às pressões e ameaças da autoridade. No íntimo a Censura gostava da pornochanchada, precisava dela como estímulo para desenvolver novas medidas restritivas e para dizer a si mesma que era necessário proibir, cortar, esconder, calar, usar a força bruta para civilizar. E a pornochanchada, por sua vez, precisava da Censura como modelo e justificativa para continuar repetindo que a conversa cortada, escondida, calada, que a grosseria, enfim, era a mais fina representação do poder. Xingavam-se, mas os xingamentos soavam como um discurso amoroso de amantes pouco convencionais. Xingavam-se porque a existência de uma expunha a impotência do autoritarismo da outra, a incapacidade de uma delas se impor sobre a outra. A violência do poder se mascarava de bons modos. A da pornochanchada dispensava a aparente polidez, ia direto ao assunto. Do ponto de vista da Censura, a pornochanchada na tela representava uma outra ditadura relativa no poder. No cinema, durante a projeção, o espectador, qualquer pessoa, podia se sentir tão arbitrário, estúpido e sem critérios quanto um censor. Do ponto de vista da pornochanchada, a Censura representava uma imitação malfeita da avacalhação e esculhambação que ela fazia na tela com tanto (seria esta a expressão adequada?) esmero. Xingavam-se, precisavam-se. Como irmãs siamesas, uma não poderia sobreviver sem a outra.

Voltemos à propaganda de cigarro no começo da sessão de Laranja mecânica porque, invenção da Censura, a pornochanchada é invenção que só se fez porque instrumentalizada pela propaganda.

A frase que conclui a imagem do fumante cercado de mulheres — “riqueza é como mulher, só não se preocupa quem já tem o bastante” — é uma idiotice encaixável em qualquer das nossas pornochanchadas. O homem olha para a câmera, desinteressado nas mulheres em volta. Olha como se quisesse só ostentar o que tem de sobra. Seu olhar é de zombaria e menosprezo. As mulheres, com sorrisos e gestos em câmera lenta, também se exibem mais para o espectador que para o fumante ao lado delas. Nenhuma diferença entre o que se vê aqui e o que se vê numa das “mensagens de interesse educativo” da Censura. Numa pornochanchada o movimento teria sido irregular e trêmulo, a dicção do locutor afetada, o machão com o cigarro e as mulheres oferecidas teriam expressões debochadas; em lugar do dourado e das linhas sóbrias, teríamos muito provavelmente um contraste desagradável; em lugar de referências a Nova York e ao luxo da Park Avenue, teríamos uma ruela suja de uma cidade não identificada. Tais diferenças são superficiais porque tanto a propaganda de bons modos como a chanchada grosseira usam o sexo para representar a conquista do poder: mais poderosos são os homens que conseguem o maior número possível de mulheres, ou as mulheres que depois de muitos homens, já experimentadas, se instalam numa espécie de palácio de governo para controlar e educar jovens de ambos os sexos para os maus costumes: censurar, autocensurar, agredir os outros, agredir a si mesmo. A propaganda vende não propriamente o produto que anuncia, o cigarro, mas um modo de se comportar em que o cigarro possa se inserir. A propaganda de cigarro e a pornochanchada não vendem o sexo nem vendem por meio do sexo mas por meio do embrutecimento do sexo, da repressão do sexo, de sua substituição pelo cigarro ou por uma fantasia impotente e sadomasoquista. O que está em jogo é uma relação agressiva, onde um dos parceiros deve obrigatoriamente comer o outro, onde um dos parceiros deve derrotar sexualmente o outro. O fato de a propaganda de cigarro ter sido aceita como natural, bem-educada e simples, e a repetição destes mesmos ideais numa pornochanchada ter sido reprovada por grosseira e intolerável é especialmente significativo para a compreensão do ponto comum entre os diferentes e aparentemente antagônicos dialetos cinematográficos falados pela parcela da sociedade que naquele momento ia ao cinema.

Piscina, sol, seis mulheres para um homem só, um maço de cigarros como um edifício no meio de uma avenida, eis a grosseria comportada da propaganda. Logo depois, a contrapropaganda berrava deselegante e debochada as mesmas coisas, desmontando as boas aparências e revelando a grosseria sem retoques. A Censura atacava na pornochanchada não o que ela estava dizendo, mas o maldizer, a gíria, o dialeto. Para o governo militar, que via as pessoas comuns como incultas e broncas, a forma mal-acabada da pornochanchada equivalia a um desmonte dos privilégios das elites militares e econômicas que impunham: a grosseria deve ser civilizada. O espectador defendia na pornochanchada principalmente a grosseria da composição que parecia um revide à brutalidade civilizada que batia nele a todo instante com o apelo para consumir mais e para participar da riqueza do país — que não estava, como nunca esteve, ao alcance das pessoas comuns. O tom debochado da pornochanchada devolvia às claras a sensação imprecisa que tomava conta do espectador depois da propaganda do cigarro: a sensação de que do alto do edifício dourado da Park Avenue, da borda da piscina, estavam debochando dele.

Percebida pelo que é de modo mais evidente — uma linguagem inventada pela Censura e instrumentalizada pela propaganda —, a pornochanchada pode então ser vista também como uma desarticulada oposição. Consentida, estimulada, aceita pelo poder, porque inócua. Porque embora oposição defendia visão do mundo igual à da situação, bem assim como o governo militar desejava que a oposição se comportasse.

Atividade política legal, regular, no tempo em que a pornochanchada viveu, praticamente não existia. Depois das cassações de direitos políticos, do fechamento do Congresso e da extinção dos partidos pelos atos institucionais, a propaganda passou a substituir o debate político — não exatamente como hoje, preparando a imagem dos candidatos nos períodos de eleições (que então não se realizavam), ou cantando os governantes para estimular índices de aprovação favoráveis e preparar a reeleição. Não exatamente como hoje (quando governar é antes de mais nada contratar ou montar uma agência de publicidade), a propaganda, então, tinha substituído o debate: ela censurava a conversa política com palavras de ordem, apelos de consumo, lições de (assim se chamava então) moral e civismo. Os partidos políticos eram uma espécie de concessão do governo, que impunha regras bem definidas para a existência de diferentes opiniões. Em lugar de um verdadeiro debate, notas cifradas nos meios de comunicação e pronunciamentos oficiais formulados por meio de filmetes colados nos cinejornais e repetidos umas tantas vezes por dia na televisão. Neles, num dialeto bem parecido com aquele usado na propaganda do cigarro, o governo falava só de progresso e boa ordem. É neste contexto que a desordem da pornochanchada aparece como uma forma de oposição consentida. O filmete colado no cinejornal nesta mesma sessão de lançamento de Laranja mecânica, por exemplo, em que quatro bonecos coloridos sobrevoam o país numa gaivota de papel cantando a alegria de ser brasileiro e a unidade nacional. As boas maneiras (das pessoas filmadas e da câmera de filmar) são o que a pornochanchada procurava desmontar, mesmo sem saber exatamente o que estava fazendo. A cada minuto de fala oficial colada no começo da sessão correspondia hora e meia de violento e debochado desmentido: a má educação, o individualismo, o total descompromisso com o trabalho e o país, a desordem, enfim, era o que podia garantir vida boa. Menos que uma resposta, um gesto bruto entre o esforço de sobrevivência e uma esperteza para tentar levar vantagem na desordem reinante. Uma reação que não resulta das contradições específicas do cinema. Nem na produção brasileira anterior a 1969, nem na produção estrangeira distribuída em nosso mercado (nem mesmo nas chanchadas italianas, que até certo ponto serviram de modelo de produção) podem ser encontrados sinais anunciadores do tom sujo e mal-acabado das pornochanchadas. Elas surgiram do nada criado pela Censura, do vazio que se produziu com a proibição da expressão. Surgiu do arremedo de expressão que a Censura criou para ocultar o vazio: os “assuntos de interesse educativo”.

Março de 1969, outubro de 1969, janeiro de 1970. O registro de nascimento da pornochanchada pode se localizar neste período, entre o decreto-lei 483, de 3 de março de 1969, que tornou obrigatória a exibição de propaganda do governo em cinema e na televisão, a emenda constitucional número 1, de 17 de outubro de 1969, que alterou a redação do parágrafo oitavo do artigo 153 do Capítulo Segundo da Constituição de 1967 (sobre a competência da União para promover a censura de diversões públicas), e o decreto-lei 1077 de 26 de janeiro de 1970, que estabeleceu a censura prévia à imprensa.

Em 3 de março de 1969, “no uso das atribuições que lhe confere o parágrafo primeiro do artigo segundo do Ato Institucional número 5”, o presidente da República, marechal Arthur da Costa e Silva, baixou o decreto-lei número 483, que tornava “obrigatória a inserção de assunto classificado de interesse educativo com duração de pelo menos dois minutos no início dos jornais de atualidades cinematográficas”. Estes dois minutos deveriam ser “produzidos ou adquiridos pelo Instituto Nacional de Cinema, cabendo à Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República fazer a indicação dos assuntos”, diz o decreto-lei e seu artigo segundo. O parágrafo único deste mesmo artigo esclarece que os filmetes seriam distribuídos “através do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal, em cópias positivas e sonoras, sem ônus para os produtores dos jornais de atualidades cinematográficas”. O artigo quinto do decreto-lei 483 prevê ainda a produção de filmes de curta-metragem considerados “de utilidade pública”, igualmente realizados ou adquiridos pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República, e com projeção obrigatória “em todos os cinemas existentes no território nacional”. No final de 1969 começaram a circular os primeiros filmetes, um por semana, colados depois dos letreiros, dentro dos cinejornais, como se fizessem parte do noticiário, e apresentados cinco ou seis vezes por dia, em diferentes horários, em todas as emissoras de televisão. Inaugurava-se um estilo de comunicação que se manteve inalterado durante mais ou menos dez anos, do governo do general Costa e Silva ao final do governo do general João Batista de Figueiredo, quando deixaram de ser distribuídos com regularidade.

Os “assuntos classificados de interesse educativo” eram, em geral, conjuntos de imagens mais ou menos independentes entre si. Planos curtos, de colorido suave, com frequentes e delicados movimentos de zoom. Mais importante o modo de filmar do que a coisa filmada. As imagens eram agrupadas em torno de um tema musical para ilustrar um conceito enunciado no trecho final por uma voz masculina — dicção pausada e paternal. Veiculavam um (aparentemente) ingênuo apelo nacionalista. Vendiam a ideia de um país mágico, de uma terra sem males, de um país para ser adorado e consumido como um cigarro, como um refrigerante, como uma bebida alcoólica, como um automóvel de luxo — consumo relativo, à distância, através de uma televisão a cores. Uma televisão a cores de controle remoto: o país lá, numa caixa, as pessoas olhando de fora, espectadores. A narração concluía os conjuntos de imagens com apelos como “todos juntos, pra frente, Brasil”; ou “Brasil, ame-o ou deixe-o”; ou “um país se faz com o esforço e o trabalho de todos”; ou “Ninguém segura esse país”.[11]

Foram feitos também filmetes para comemorar o Natal, a primavera, o começo do ano letivo, o Dia da Bandeira, o Dia das Mães, o Dia da Criança, o Dia do Soldado (“soldado é o povo armado”), a Semana da Pátria (“meu Brasil, eu gosto de você”) e para dar conselhos de higiene e de boas maneiras. Para demonstrar aos motoristas a necessidade de reduzir a velocidade nas estradas, para ensinar a manter a cidade limpa (“povo civilizado é povo limpo”), para reafirmar a necessidade de obedecer aos mais velhos (“cuide bem de seus velhos, eles merecem”) e sobretudo para afirmar a necessidade de zelar pelo país (“o bem-estar da coletividade depende do trabalho e da participação de todos”). Em alguns casos a voz mansa do locutor era substituída por um coro que cantava em versos as ordens do dia: “Cantemos a uma só voz, o Brasil é feito por nós”; ou “Este é um país que vai pra frente” (verso seguido de um meio-miado meio-latido que se repetia cinco vezes, “uou, uou, uou, uou, uou”); ou, ainda, “Quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser brasileiro”. Em alguns casos, nem a voz mansa nem versos. Só música, como no filmete que comemorou a Semana da Pátria de 1979, onde um marceneiro, um músico, um lavrador, um pedreiro, um vendedor de bilhetes de loteria, um professor, um soldado e um carpinteiro, todos apresentados com letreiros indicando nomes e profissões, se reuniam com seus instrumentos musicais para tocar o Hino da Independência.

Nenhuma informação direta. Só uma propaganda relativa do governo. Os “assuntos de interesse educativo” procuravam criar uma atmosfera favorável ao poder, que aparecia não como uma organização política, representante de determinada parcela da sociedade, mas como uma espécie de zelador da civilidade e da nacionalidade. Para criar esta atmosfera algumas campanhas foram feitas com desenhos animados. Para mostrar, por exemplo, que limpeza leva ao desenvolvimento inventou-se um boneco todo o tempo cercado de moscas, qual uma lata de lixo, o Sugismundo. E com ele, toda uma família de gente suja: a mulher, Dona Sugismunda, o filho, o Sugismundinho, e mais um sugiscachorro. Para “ensinar” as pessoas a consumir menos energia foi igualmente criado um boneco, Gastãozinho, um garoto que ao chegar em casa abria todas as bicas, acendia todas as lâmpadas e ligava todos os aparelhos elétricos, até provocar uma pane de energia, e seu oposto, o Prevenildo. Imagens vivas ou desenhos animados, uma frase breve e conclusiva lida em tom manso, uma canção animada cantada em coro como uma marcha de carnaval ou um hino solene – estas variantes são pouco significativas. O que realmente importa está presente em todas elas: as ordens são passadas com bons modos. Com muito bons modos. Mau comportamento era coisa da deseducada pornochanchada. Maus modos, a sério, só nos cárceres e salas de interrogatórios e torturas dos muitos serviços e operações de repressão do governo. No cinema, na televisão, o governo era mansidão e bons costumes. O lema, a frase ou a canção podem até ser diretos, imperativos, mas a leitura é feita como se não existisse ordem alguma, nenhum comando, como se a voz ali fosse a voz do bom senso. O locutor lê de mansinho, a câmera filma de mansinho, as imagens são ordenadas de mansinho. Nem contrastes fortes no tom da fotografia, nem cortes bruscos na ligação de um plano com o outro, nem ruídos fortes na faixa sonora. Luz de fim de tarde, melodia soando ao longe – um choro, um trecho instrumental de uma canção popular, uma frase lenta de um autor barroco, um andante romântico para comemorar uma data nacional. A imagem e o som suaves ficavam ainda mais suaves com a entrada da voz do explicador. A explicação – muitas vezes repetida, de que o país era o maior do mundo e nele reinava a calma – já tinha sido traduzida no modo de compor o filmete.

No lançamento da pornochanchada O estranho vício do Dr. Cornélio, de Alberto Pieralisi, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1976, o cinejornal Notícias da Semana 76/06, produção de Luiz Severiano Ribeiro, trazia um “assunto de interesse educativo” para incentivar o turismo interno. Para ilustrar a explicação final – “Procure conhecer as belezas típicas e naturais de cada região do Brasil” – no pouco mais do minuto de duração do filmete existem 32 diferentes planos, e em quase todos eles a câmera se movimenta: a floresta amazônica filmada de um avião; um mergulho de zoom numa cachoeira; um pôr-do-sol visto de um barco num rio; um movimento circular em volta de uma árvore; um saveiro com pescadores no meio do mar agitado; vaqueiros conduzindo o gado; outro pôr-do-sol; novas imagens de florestas; montanhas em silhueta contra o céu azul; de novo o mar; de novo um rio, agora com gente ao longe na outra margem; a rua agitada de uma cidade. Não há tempo para ver as imagens. Elas batem rápido, uma, duas, três, quatro, seguidas vezes. O espectador vê apenas uma intensa excitação visual. Não vê os vaqueiros que levam o gado. Nem o gado. Não vê os pescadores. Não vê o saveiro, não vê o mar, nem o rio, nem a floresta. O pedaço de realidade registrado nestas imagens é como que censurado. Serve só como projeção do delírio/ fantasia / alucinação do narrador /censor. Paisagens e pessoas registradas em fotografias em movimento servem só como estímulos abstratos para que a censura, o que não deixa ver, permaneça dando cambalhotas diante dos olhos para assim melhor esconder as pessoas e as paisagens.

[Convém esclarecer: cinema é a projeção sobre o real de uma imagem inventada pelo realizador por meio do registro de fragmentos de aspectos do real para compor uma reflexão (e não um reflexo) da realidade. Não convém imaginar que a câmera é uma registradora ingênua, objetiva e pura da realidade, nem que a função do filme seja a de espelhar ou reconstituir o mundo tal como ele é. Real, realizador, realidade: o cinema é uma realidade/outra, parte da fotografia em movimento de um pedaço do mundo real, e este pedaço, na tela, antes de ser reconhecido pelo espectador como parte de um filme, é reconhecido como um todo à parte, é apanhado como se fosse o próprio real. Mas este pedaço só ganha seu verdadeiro significado quando passa a ser percebido como parte de uma construção cinematográfica. Parte de uma construção que necessita dele para se fazer tanto quanto ele necessita dela para ganhar existência plena. Qualquer que seja o pedaço, para deixar de ser simples reprodução, para deixar de ser apenas um reflexo limitado do mundo exterior apanhado ao acaso, para passar a ser uma expressão, reflexão, livre invenção do realizador, todo pedaço precisa de uma estrutura que o ordene e que por sua vez depende dele para se ordenar. Todo filme é a projeção de um ponto de vista, e não um inventário da realidade imediatamente visível, da aparência primeira de pessoas, paisagens e coisas. No cinema, o mundo tal como ele é serve principalmente para que o realizador projete o mundo tal como ele o percebe, analisa e sonha. O cinema devolve ao mundo uma visão, assombração, imaginação, a imagem do que ele poderia ou deveria ser, ou do que ele efetivamente é por trás das aparências. Uma imagem, uma imaginação que assim transformada em objeto concreto ou virtual, mas de qualquer forma visível como coisa viva de verdade, passa a fazer parte da realidade exterior de onde saiu, e deste modo a interferir, modificar, subverter a realidade — já diversa, já outra desde o aparecimento deste seu novo componente vivo e atuante. O problema do filmete tomado como exemplo acima não está, portanto, no mecanismo de construção utilizado, pois este, conscientemente ou não, se serve de soluções práticas nascidas do trabalho com câmeras, filmes, gravadores, mesas de montagem e de edição de som para pensar em imagens. O problema não está no mecanismo mas no imaginário deformado que se serviu dele não para criar uma reflexão e nem mesmo para produzir um simples reflexo da realidade exterior, mas para cobrir, ocultar, proibir, censurar o mundo visível.]

Há uma evidente estupidez e grosseria no olhar que descobre um vaqueiro vestido de couro, cercado de poeira e conduzindo o gado e não vê nele uma pessoa, mas só uma sombra colorida para cantar a ordem do dia. Estupidez no olhar que descobre o pescador no saveiro e não vê o homem que pesca, mas um colorido para festejar a nacionalidade. É preciso imaginar a realidade como algo abstrato feito só para servir em termos absolutos e dóceis ao poder. Há uma evidente grosseria (disfarçada de gesto bem-educado) nesta ilusão de ótica que se serve de uma imagem, de uma coisa visível e aberta, para cobrir toda e qualquer outra possível imagem que se interesse pelas pessoas e paisagens que vê. O estúpido deste ponto de vista que não se orienta por uma perspectiva humana pode escapar num primeiro instante ao espectador acostumado a identificar a censura com algo escuro, uma venda, um corte, uma bola preta, uma falta de luz. Neste filmete que — inocentemente? — nos convida a conhecer as belezas típicas e naturais do país a Censura se mostra como superfície polida que, parece, ilumina, monta, revela. A compreensão de que mostrar aqui é um modo de censurar se faz mais claro adiante, neste mesmo programa, por contraste, quando a “mensagem de interesse educativo” do governo se confronta com a “mensagem de interesse deseducativo” da pornochanchada. O estranho vício do Dr. Cornélio, por exemplo, conta a história de uma mulher que se casa com um homem muito mais velho esperando livrar-se dele na lua-de-mel, envenenando-o com ostras, para em seguida fugir com o namorado. Conta esta história com maus modos e xingamentos berrados em silêncio (as falas foram apagadas da faixa sonora). A estupidez do sistema aparecia então sem retoques. A imagem do personagem falando, mas muda, sem som, só com o movimento labial, o palavrão censurado, desempenha função idêntica à da movimentada propaganda do governo: elas se mostram aos olhos do espectador como censura, como proibição de ver — pessoas e paisagens, na “mensagem educativa”; palavrão sem som, na “mensagem deseducativa”. São diferentes, bem diferentes entre si, mas estruturalmente iguais. A segunda fingindo ser a negação absoluta da primeira mas traduzindo o que ela costumava dizer em linguagem direta e chula. A primeira se fazendo de inimiga da segunda mas consciente de que ambas agiam igualmente empenhadas em impedir a visão de agir assim como ela age, livre e transformadora, aberta para todos os lados. Convém repetir: os desentendimentos entre a chanchada e a Censura, embora frequentes, foram circunstanciais e as agressões recíprocas, inoperantes. A censura não foi criada pelo governo militar para combater a pornochanchada, que só veio a existir depois dela, nem a pornochanchada se fez como oposição à censura do governo militar. A existência de uma tornou possível a existência da outra.

Foi mais ou menos em junho de 1966, na época em que o marechal Costa e Silva foi indicado para ocupar o lugar do marechal Castelo Branco, que surgiu a ideia de uma Assessoria de Relações Públicas ligada à Presidência da República. Antes da posse de Costa e Silva formou-se um Grupo de Trabalho de Relações Públicas. Este grupo, preocupado com “toda a falta de sintonia entre o governo e o povo”, e preocupado com “o anedotário que começava a surgir em torno do futuro governante, tomou para si a tarefa de cooperar na informação e no esclarecimento da opinião pública, e de formar uma imagem positiva do marechal”. Em entrevista a O Estado de S. Paulo, publicada em 16 de outubro de 1977, o coronel José Maria de Toledo Camargo (em 1966 um dos integrantes do grupo de trabalho e naquele momento chefe da Assessoria de Relações Públicas do governo do general Ernesto Geisel) conta que uma das primeiras decisões do grupo formado em torno da indicação do marechal Costa e Silva foi a de manter sigilo absoluto. Sigilo, “de modo a dar caráter de espontaneidade ao que fosse feito. Se não, não se conseguiria criar imagens pois tudo ruiria sob a impressão de artificialismo. O grupo não deveria permitir o conhecimento de sua própria existência. Para todos os efeitos, deveriam ser reuniões informais de uns poucos amigos”. Os objetivos principais do grupo eram “ativar emocionalmente à grande massa. Criar um símbolo. Fazer nascer a crença, o otimismo e a esperança” e também acentuar a imagem do presidente “no que ela tem de calor humano e simpatia”. E, finalmente, o grupo deveria planejar sua transformação num Serviço Nacional de Relações Públicas. O que se criou, de fato, foi uma assessoria. A Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República. E sua criação durante o governo do marechal Costa e Silva, esclarece o coronel Camargo na entrevista a O Estado de S. Paulo, “está intimamente ligada ao clima de agitação que o país vivia nos idos de 1967 e 68. Havia uma clara movimentação contra o governo, a que se precisava reagir. Definiu-se então uma orientação para esclarecer aquela massa passeante sobre os objetivos do governo”. A orientação era passar uma “educação informal, tratar de temas como a higiene, a saúde e técnicas de trabalho com o objetivo de melhorar as condições de vida, e com isso a força de trabalho”. Tratava-se de fortalecer “o caráter nacional de amor ao trabalho e de patriotismo”, de estimular e “manter a boa vontade e a esperança da massa”.[12]

O que começou a ser pensado em junho de 1966 passou a existir com o decreto-lei 483, de 3 de março de 1969, e especialmente com a emenda constitucional de 17 de outubro de 1969, que deu aparência legal ao estabelecimento de censura prévia a jornais, revistas e livros, que, em resumo, colocava a Censura no poder. O Estado passava a funcionar como um complexo sistema de censura que não se limitava ao serviço especializado em proibir, cortar, truncar — filmes e tudo o mais: censurava-se a vida nacional como um todo. O Estado pensava-se como censura e afirmava (as palavras são de Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, “técnico de censura do Departamento de Polícia Federal” com “diploma de censor federal pela Academia Nacional de Polícia”) que, “contrariamente ao pensamento corrente”, a censura não tem “como seu habitat natural os países em fase de desenvolvimento, politicamente imaturos”. Ela é “filha da democracia e não da ditadura”[13]e tem como “escopo organizar e orientar o povo, disciplinando suas relações entre si e com o Estado”, além de “proporcionar ao indivíduo o máximo de liberdade possível, para que este possa exercer o direito inalienável de escolher a sua diversão e sua cultura, mas, e sobretudo, deve também vigiar essa liberdade, sempre que a conduta do indivíduo seja perniciosa a outrem ou à sociedade”[14] Foi exatamente no momento em que uma extensa campanha de relações públicas começou a martelar na cabeça das pessoas a necessidade de trabalhar com boa vontade, esperança e patriotismo que surgiu a pornochanchada, para gritar debochadamente que se dá bem quem não trabalha e consegue tirar vantagem em tudo, quem em lugar de boa educação tem maus modos e fala grosso. A censura cortava o som: não adiantava, a grosseria continuava na imagem. A censura cortava a imagem: não adiantava, a grosseria continuava na estrutura, no modo de olhar toda e qualquer coisa. Censura e pornochanchada tinham em comum um comportamento debochado. Assim, por exemplo, em abril de 1969, um mês depois do decreto-lei 483, um comunicado oficial do governo anunciava que Antônio Romero Lago, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal desde o início do governo do general Costa e Silva, fora afastado do serviço público. Antônio Romero Lago chamava-se na realidade Hermenegildo Ramirez de Godoy e era foragido da Justiça do Rio Grande do Sul.[15]

Passando da teoria à prática, alguns filmes.

A certa altura de A ilha das cangaceiras virgens (1976), de Roberto Mauro, temos uma briga entre um grupo de cangaceiras e o chefe do bando, o capitão Ferreirão. Para filmar os tapas e arranhões das mulheres no capitão a câmera está a meia altura e a uma certa distância, por trás de uma personagem que não briga e fica torcendo pela vitória das amigas. Na imagem destaca-se a mulher que não entra na briga. Ela gesticula muito e, nervosa, pula a todo instante agitando a minissaia. Como a câmera vê a cena de baixo, o que aparece em primeiro plano é a calcinha da mulher. A briga está longe e fora de foco (como a mulher na cena de Laranja mecânica em que Alex invade a casa do escritor). Em primeiro plano, a calcinha (tal como no filme de Kubrick estava a máscara de Alex, que deixara a mulher nua no fundo da cena para surrar o escritor). O que realmente importa é a calcinha: a cangaceira que não entrou na briga fica a um palmo do nariz do espectador, ajeitando a calcinha apertada. A briga, longe, ninguém vê — os personagens que se arranham e se empurram estão pequeninos no quadro. Grande mesmo, em destaque, está a bunda da mulher por baixo da minissaia. Noutra cena deste mesmo filme três mulheres prendem uma tabuleta na porta de um hotel. Uma sobe a escada, as outras duas ficam embaixo. No chão também fica a câmera, ao pé da escada. Pregar a tabuleta lá em cima dura pouco tempo, a cena propriamente dita é a descida da escada. O que o espectador vê não é a tabuleta com o nome do hotel que ficou lá em cima, mas sim a bunda imensa, deformada pela angulação da câmera.

Na prática a pornochanchada se mostrava assim. O gesto que o personagem faz dentro do quadro pode ser simples, nada grosseiro em si. Não importa. A grosseria está no olhar. A câmera ensina o espectador a ver o mundo de um ponto de vista escrachado — para usar uma expressão típica da época da pornochanchada. Um escracho. As pessoas iam ao cinema para participar de um ritual de grosseria, espécie de missa oficiada por um conjunto de celebrantes fixos e bem definidos: o machão, a virgem, o homossexual, a prostituta, o velho impotente, a velha cafetina. Às vezes eles apareciam fantasiados de patrões e empregadas domésticas, de burocratas e secretárias, de filho da patroa e de mulatas, de cabeleireiros ou costureiros e de madames, ou mesmo de cangaceiros e cangaceiras. Mas são sempre os mesmos tipos.

E o que fazem em cena estes heróis e anti-heróis?

Num episódio de Os mansos (1973) – A b… de ouro, de Pedro Carlos Rovai – o herói sonha que uma bunda entra voando pela janela do seu quarto, batendo asas como uma borboleta enquanto ele tenta inutilmente apanhá-la. No dia seguinte, no trabalho, reconhece seu sonho na mulher do patrão, que não se interessa pela mulher e só pensa em ganhar mais dinheiro com as ações na Bolsa de Valores.

Num episódio de Cada um dá o que tem (1975) – O despejo, de Adriano Stuart – um casal de namorados é atacado por quatro assaltantes no instante em que o rapaz tentava convencer a moça a fazer sexo com ele dentro do carro. Os assaltantes decidem violentar não a moça, mas o rapaz – que na cena seguinte aparece com gestos femininos, plumas na cabeça, véu sobre os ombros e o rosto pintado com maquiagem semelhante à usada por Ney Matogrosso no conjunto Secos e Molhados.

Num episódio de Como era boa nossa empregada (1973), de Vitor di Mello e Ismar Porto – Lula e a copeira -, o herói, um estudante aparentemente esforçado e desinteressado em coisas de sexo, monta um sofisticado sistema de lunetas, periscópios e binóculos para poder ver de seu quarto, de sua mesa de estudos, mulheres nuas nos apartamentos vizinhos ou a empregada nua no chuveiro.

Em A virgem e o machão (1974), que José Mojica Marins assinou com o pseudônimo de J. Avelar, o herói fica sentado diante de um aparelho de televisão que transmite o que se passa no quarto em que o machão se encontra com a virgem. De olho na televisão, o herói agarra e agita o rabo do gato no seu colo como se estivesse se masturbando.

Em O homem da cabeça de ouro (1976), de Alberto Pieralisi, o herói, depois de tentar sem sucesso conquistar a garota, vai para o quarto sozinho, com batom, pó-de-arroz, perfume, revistas pornográficas e uma calcinha de mulher. Espalha tudo pela cama, escolhe a melhor página da revista e se masturba.

Em A banana mecânica (1974), de Braz Chediak, o herói, Doutor Ferrão, senta-se à beira da piscina de um hotel para um encontro com o rival: esperam passar as mulheres para conferir a contabilidade, ver quem esteve com maior número de mulheres. Ou então o Dr. Ferrão passeia pela praia seguido por um bando de mulheres. Na faixa sonora, no lugar do ruído da praia, um barulhento cacarejar de galinhas.

Mas, para evitar possíveis mal-entendidos com a redução das cenas a suas linhas mais evidentes nos resumos acima: a pornochanchada sugeria mais do que mostrava ou dizia. O sonho do herói de A b… de ouro não aparece na tela. O que Lula de Como era boa a nossa empregada espia através de suas lunetas e periscópios, também não. Nem a televisão do herói de A virgem e o machão mostra o que se passa no quarto. Nada realmente se vê, nada realmente se ouve. As ações são contadas pelos personagens. Contadas, mas não mostradas pela câmera. Ou porque a incapacidade de narrar corretamente deslocava para os diálogos informações sem as quais a imagem perde o sentido, ou porque a Censura não permitia que estas ações fossem mostradas em imagens, ou ainda porque o jeito de falar, a modulação da voz, a pontuação da frase, passava uma grosseria bem maior que a que poderia ser conseguida com a direta visão da cena. O que importava não era ver, mas ocultar para deformar.

Em Ainda agarro esta vizinha (1974), de Pedro Carlos Rovai, o conquistador observa da janela de seu apartamento a futura conquista no andar de baixo. Ele come um omelete. Ela tem um sorvete na mão. O que ele diz para ela — “Vamos trocar? Eu te dou os meus ovos e você me deixa chupar o seu sorvete” — ganha outro significado graças à dicção debochada. Em As moças daquela hora.... (1974), de Paulo Porto, o homossexual aconselha a mocinha virgem que vai visitar o namorado no circo a ter cuidado com a tromba do elefante. Em Café na cama (1973), de Alberto Pieralisi, o machão convida a mocinha virgem para ir ver o seu pintinho de cabeça vermelha (e mais tarde aparece mesmó um pinto com a cabeça e o bico pintados de vermelho). Em Luz, cama, ação! (1976), de Cláudio MacDowell, a virgem reclama que embora convidada para uma pescaria ainda não conseguira ver a vara de pescar. Em Um varão entre as mulheres (1975), de Vitor di Mello, um tímido vendedor de livros conquista a freguesa solteirona ao lhe oferecer um livro sobre Picasso. Em Bacalhau (1976), de Adriano Stuart, a mulher que todos imaginavam já devorada pelo peixe volta satisfeita nadando para praia e conta sorridente: “0 bacalhau me comeu”, o que leva o costureiro homossexual a se atirar n’água gritando: “Também quero bacalhau”. Em Secas e molhadas (1975), de Mozael Silveira, o herói vai à cozinha, coloca dois ovos na frigideira e pergunta para a mulher onde ela enfiou a linguiça dele.

Não importa o que se fala, mas a pronúncia arrastada e mole com que se fala, o destaque a uma palavra na frase, uma sílaba mal pronunciada ou uma falha no som que ajudava a dar um duplo sentido ao que não se conseguia ouvir com clareza. Não ouvir parecia natural. Não era mesmo possível ouvir, ler ou ver com clareza naquele tempo de censura. O melhor de um filme, um livro, música, jornal, peça de teatro, o melhor da vida estava em outro lugar. Fora arrancado dali pela censura. Bom era o que não se via. Tudo estimulava a prestar atenção nas entrelinhas. Tudo parecia ter um duplo sentido. Bastava ajudar com um jogo de palavras, que começava na porta do cinema, nas frases coladas aos títulos. O cartaz de O homem da cabeça de ouro, de Alberto Pieralisi, perguntava: “Será que você tem uma cabeça tão privilegiada quanto a dele?”. O de Cada um dá o que tem (1975), de Adriano Stuart, John Herbert e Sílvio Abreu, prosseguia dizendo que “nunca deram tanto em tão pouco tempo”. Eu dou o que ela gosta (1975), de Braz Chediak, vinha acompanhado de um subtítulo, “O que ela gosta não é mole”. O cartaz de Como é boa nossa empregada, de Ismar Porto e Vitor di Mello, acrescentava: “Ela faz tudo, lava, passa, cozinha, arruma a cama…” O de Mulher, mulher (1979), de Jean Garret, prometia desde o trailer mostrar “uma mulher, sua sexualidade, seus homens, seu cavalo…” Um varão entre as mulheres (1975), de Vitor di Mello, acrescentava que “o varão não é mole”. O jogo de palavras começava no cartaz, prosseguia nos diálogos e, vez por outra, ia até a canção-tema. Em Amada amante (1978), de Cláudio Cunha, por exemplo, a música começa cantando as belezas e vantagens do Rio, que tem “mulherzinha pra cantar, coqueiro pra trepar e sorvete pra chupar” e pouco a pouco vai embaralhando as palavras.

Música feita especialmente para uma pornochanchada, no entanto, é uma exceção. Elas usavam uma faixa de um disco qualquer, encaixada nos momentos em que não existem diálogos para cobrir os silêncios e acompanhar os letreiros de apresentação. A reprodução de um disco era solução menos cara do que a montagem de ruídos com ligação direta com a cena — e do ponto de vista de produção, a pornochanchada (mesmo depois que começou a dar dinheiro, por insegurança talvez) procurava gastar o mínimo possível. Pegava uma melodia qualquer, do disco mais à mão. A utilização de discos não impede que a música se integre com a imagem, é verdade, mas a pornochanchada não se preocupava em ligar uma coisa com a outra. Um dos exemplos de associação “sofisticada” entre som e imagem numa pornochanchada se encontra em Pesadelo sexual de um virgem (1976), de Roberto Mauro. Um estudante obrigado a decorar A divina comédia se masturba diante do retrato da empregada. Na tela aparece primeiro a cara debochada do herói e depois o retrato da empregada, ao lado de um gravador, sobre a mesa de cabeceira. O gravador é ligado, a imagem permanece sobre o retrato da empregada, e ouvimos o tema que Elmer Bernstein fez para O homem do braço de ouro (The man with the golden arm, de Otto Preminger, 1956). A sugestão da masturbação não vem só da música. Vem da imagem mesmo, aproximações e afastamentos da zoom do retrato da empregada, mais e mais rápidos, até deixar de ser possível perceber o retrato — na tela, apenas o movimento, o vai e vem da zoom, A divina comédia e O homem do braço de ouro.

Com maior frequência, um disco qualquer, assim como fez Mozael Silveira com uma gravação de In the heart of Texas para sonorizar Secas e molhadas (1975). A música é um meio-termo entre o que poderia ser uma rumba e um desses ritmos híbridos que orquestras norte-americanas costumam apresentar como música latino-americana. Ela aparece nos letreiros determinando o tempo dos cartões. Como a gravação tem a duração média de uma faixa dos discos comerciais de então, os long plays, temos mais ou menos três minutos de letreiros. A equipe é reduzida e, passados os nomes dos intérpretes, técnicos, pessoas e empresas que colaboraram com a produção, não há mais nada a dizer. São poucos cartões, e cada um deles permanece na tela muito além do necessário para a leitura, para seguir a duração da música. Terminados os letreiros, já na primeira imagem, volta a mesma gravação de In the heart of Texas. De novo, do princípio. Ao longo da ação ela se alterna com três outras faixas, ao que tudo indica do mesmo disco, e aparece e desaparece sem qualquer outra função além da cobertura dos silêncios entre os diálogos. Funciona como ruído, em volume mais baixo quando os personagens dizem alguma coisa, em volume mais alto, quando não existem falas. A solução adotada durante os letreiros de apresentação se inverte: não é mais a duração da música que determina o tempo da imagem mas a imagem que determina a duração da música: a gravação se interrompe bruscamente se por acaso a cena termina antes dela. Não seria difícil, não implicaria em investimento maior ou em trabalho mais complicado, suavizar as entradas e saídas da música ou selecionar fragmentos musicais que (pela duração ou pela musicalidade) se encaixassem mais adequadamente nas imagens. Mas, guiada pelo instinto ou consciência de que bom acabamento deveria ser evitado, a pornochanchada escolhia a solução mais grosseira, a mais de acordo com o modelo de narração inventado pela Censura: em lugar de um corte cinematográfico, um outro, seco e besta como se tivesse sido feito por alguém interessado em não deixar que a música, a fala, a imagem, a conversa seguissem francas e abertas. A má qualidade era uma atração para o público audiovisualmente educado pela censura. O mau acabamento era uma vingança (inconsciente e nada eficaz, mas vingança) contra a propaganda oficial, que cantava o superpaís do milagre econômico, do mar de 200 milhas, da Transamazônica, da Ponte Rio-Niterói, da maior hidrelétrica do mundo, do maior futebol do mundo e de outras coisas assim, igualmente gigantescas e maiores do mundo mas longe, muito longe da realidade do espectador.

Em Pesadelo sexual de um virgem, por exemplo, o herói abandona a cena e se volta para o espectador para comentar: “O diretor certamente é um bicha, prefere mostrar um português barrigudo em primeiro plano deixando a mulata seminua no fundo da imagem”. Quase no final é a empregada que se volta para o espectador e desabafa enquanto vai para o quarto com um homem: “Afinal tive uma oportunidade nesta droga de filme”. A pornochanchada cuidava com esmero de sua má qualidade, chamava atenção para ela, reafirmava que a coisa ruim na tela gostaria de ser ainda pior. Onde este elogio/xingamento não se fazia assim, de modo declarado, aparecia subentendido na solução canhestra adotada para imitar o modelo. No momento em que mostra o herói frustrado se masturbando na cama, O homem da cabeça de ouro finge que filma assim como em Hollywood se fazia uma cena de sexo. Movimentos sinuosos da câmera sobre uma mulher (no caso, uma fotografia de revista pornográfica) e um homem se alternam num ritmo que cresce pouco a pouco com a diminuição do tempo de cada plano na tela. No fim, os olhos e a boca entreaberta do homem, antes do corte para a manhã seguinte, o herói de bruços, nu mas protegido pelos lençóis. Impossível dizer se a imitação é ruim porque quer funcionar como uma paródia que zomba do que imita ou se é ruim porque o imitador não soube sequer imitar e produziu apenas uma careta de zombaria e de desprezo por si mesmo e pelos espectadores.

O cinema norte-americano, o cinema europeu e mesmo o cinema brasileiro de boa aceitação pelo público serviram de modelo ou de referência, ou de ideal inatingível (porque parecia um poder civilizado). Numa quase tradução, Tubarão (Jaws, 1975, de Steven Spielberg) vira Bacalhau (com um subtítulo entre parênteses, Bacs, para, aos olhos do espectador brasileiro, ficar mais parecido com filme estrangeiro). Laranja mecânica, ainda relativamente censurado, deu origem a Banana mecânica (1974), de Braz Chediak. Emmanuelle (1973), de Just Jaeckin, também relativamente censurado, inspirou Emmanuelle tropical (1977), de J. Marreco, Afilha de Emanuelle (1978), de Oswaldo Oliveira, e Emmanuello… o belo (1978), de Nilo Machado. Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto, transformou-se ern Seu Florindo e suas duas mulheres (1978), de Mozael Silveira. Como era gostoso o meu francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos, inspirou o título de Como era boa a nossa empregada (1972), de Vitor di Mello e Ismar Porto. Os filmes de Kung Fu produzidos em Hong Kong inspiraram um personagem de As massagistas profissionais (1976), de Carlo Mossy, o chinês Fung Ku, e inspiraram a história de Kung Fu contra as bonecas (1976), de Adriano Stuart. O exorcista (The exorcist, 1973, de William Friedkin), por exemplo, foi lembrado na história de Pesadelo sexual de um virgem (1976), de Roberto Mauro, e no título de O exorcista de mulheres (1974), de Tony Vieira. Antes disto foram chanchadas italianas (algo parecidas com as nossas) que inspiraram a construção dos primeiros filmes em episódios, em histórias rápidas que dispensam uma estrutura mais elaborada porque ficam na tela só o tempo de uma anedota — entre outras exibidas aqui em 1967, 1968 e 1969: Ideia fixa (l’Idea fissa, 1964), de Gianni Puccini e Mino Guerrini; Esses nossos maridos (I nostri mariti, 1966), de Lugi Filippo d’Amico, Luigi Zampa e Dino Risi; Os italianos e as mulheres (Gli italiani e le donne, 1962), de Mario Girolami; A segunda esposa (Letti sbagliati, 1965), de Steno; Os complexos (I complessi, 1965), de Dino Risi, Franco Rossi e Luigi Filippo d’Amico; Três noites de amor (Tre notti d’amore, 1964), de Renato Castellani, Luigi Comencini e Franco Rossi; A noite do prazer (Le piacevoli notti, 1966), de Armando Crispino e Luciano Lucignani; e Vejo tudo nu (Vedo nudo, 1969), de Dino Risi. Cinema italiano, norte-americano, francês e mesmo o brasileiro: a pornochanchada foi buscar apoio em qualquer filme que obteve uma boa resposta de público. Parafraseando o que Glauber Rocha escreveu na Estética da fome, talvez seja possível dizer que onde houver alguém, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço da grosseria, aí existe um germe da pornochanchada. O cinema estrangeiro tinha e não tinha importância. Repetia-se o mecanismo da chanchada, mas, ao mesmo tempo, ele era o mesmo e diferente daquele usado quando a chanchada de carnaval parodiava o cinema feito lá fora. Na década de 70 o cinema estrangeiro (em alguns momentos também o brasileiro) era só um espaço de prestígio e só por um motivo interessava à pornochanchada: não exatamente como estilo ou história a ser imitada. Mais importante era aproveitar as sobras da promoção feita no lançamento do produto estrangeiro. Repetia-se o mecanismo cinematográfico que nas décadas de 40 e 50 sustentou as chanchadas de carnaval e mesmo os então chamados “filmes sérios”, versões brasileiras de melodramas norte-americanos ou europeus. A força da propaganda do filme da grande indústria do audiovisual servia então como marketingindireto para o subproduto produzido aqui, que, por sua vez, porque subdesenvolvido, reafirmava a qualidade do cinema estrangeiro — servia de promoção direta ao cinema que se fazia lá fora, este sim, aos olhos do público e da pornochanchada, cinema de verdade.

Um dos modelos parece ter sido mesmo o da chanchada italiana, que trouxe para o mercado brasileiro a ideia de anedotas grosseiras e breves: um homem do interior, que não acredita na fidelidade das mulheres a seus maridos, casa-se com uma galinha. Um sujeito míope sai do banheiro nu e sem os óculos e confunde a própria nudez refletida no espelho com a vizinha do apartamento em frente. Exemplos estrangeiros foram considerados, sim. No entanto, mais forte que qualquer influência recebida do estrangeiro (que deu principalmente uma fórmula ajustável às condições precárias impostas pela desordem da Censura e do mercado), mais forte foi a influência de um filme brasileiro mesmo, que sugeriu um modelo de construção dramática: Os paqueras (1969), de Reginaldo Faria. Não é justo apontar esta comédia até certo ponto ingênua como inspiradora deste conjunto de filmes grosseiros. Ao fazer esta afirmação é preciso dizer logo que não existem grandes semelhanças de estilo entre Os paqueras e o que veio depois. Mas, certamente, o primeiro a atender àquela necessidade (então ainda não muito claramente identificada) de reagir pelo deboche foi este. O herói de Os paqueras é um solteirão mulherengo — mais tarde o espectador ficará sabendo que ele se casou um dia e tem uma filha que não mostra a ninguém. Ao lado dele, um jovem aprendiz de solteirão mulherengo. História, mesmo, não existe. Apenas um conjunto de situações soltas. Numa delas o herói é apanhado em flagrante na cama com a amante. O marido invade a casa com a polícia. Saem todos para a delegacia e na porta do edifício os vizinhos vaiam o marido enganado, aplaudem a mulher e carregam em triunfo o conquistador até o carro da polícia. Vários outros episódios se sucedem até o instante em que o herói e seu jovem seguidor se apaixonam e de um certo modo se regeneram. Mas aí, nesta anedota do conquistador carregado em triunfo, surgiu um tipo capaz de representar a insatisfação popular, de liderar não uma oposição mas uma desordem popular contra o sistema. No cinema, com entusiasmo bem maior que o dos vizinhos na porta da casa do marido enganado, as pessoas aplaudiram o personagem bem-sucedido com as mulheres, preguiçoso, de maus modos. Viram nele o extremo oposto do que era exigido pelo poder. Viram nele um avanço de sinal, um descompromisso, um cuspir pela janela, um palavrão gritado para o céu, o lixo jogado na rua: os maus modos, o franco deboche contra um poder que educadamente debochava de toda gente.

O primeiro longa-metragem de Reginaldo Faria se transformou num sucesso de público. Foi o bastante. Pouco depois apareceram Ascensão e queda de um paquera (1969), de Vitor di Mello, A ilha dos paqueras (1970), de Fauzi Mansur, e Quando as mulheres paqueram (1972), de Vitor di Mello. Havia alguma coisa no ar. Talvez a palavra paquera — quem sabe? Alguma coisa no ar, um espaço, embora a Censura apertasse. E assim, desorganizadamente, aos trancos, as pornochanchadas foram se fazendo, imitando-se umas às outras. Personagens e situações começaram a se definir. Adiante o paquera deixou de ser apenas o sujeito de olho na mulher do próximo para se transformar numa espécie de espectador que, não convidado para a festa, passava a se comportar como agente passivo, agente secreto, espião: espiava a mulher nua pelo buraco de fechadura, pelo binóculo, pela luneta; espiava por cima do decote, por baixo da saia, pela janela do chuveiro. Amada amante (1978), de Claudio Cunha, por exemplo, tem a sua história a todo instante interrompida por uma espécie de entreato. Um paquera examina pela luneta as janelas do edifício em frente à procura de uma mulher nua enquanto a amante o espera na cama. Sem ver uma mulher nua no apartamento do vizinho ele não consegue se interessar pela que está no quarto com ele. O paquera inventado pela pornochanchada é um tipo bem assim: de tanto espiar acostumou-se à vida passiva de espião. Em Amada amante, quase dez anos depois de sua invenção, o paquera já nem existe como personagem. Aparece só nos entreatos. Daí em diante, nem aparece mais. Pouco a pouco, em torno do paquera foram surgindo outros personagens que logo saltaram para o primeiro plano. Mas ainda assim, mesmo tendo deixado de ser um personagem visível, o paquera continuou presente. Na câmera. Por fora da cena mas ali. Narrador. Ponto de vista de onde a história é contada. O poder convidava então as pessoas comuns a agir como paqueras, como espectadores, acompanhando a festa do país grande e em ordem unida tal como um paquera vê uma mulher nua no apartamento no outro lado da rua. No lugar do periscópio/binóculo/telescópio, a televisão.

Nenhuma pornochanchada se propôs realmente a discutir esta questão. Pelo menos, não assim como se propôs Arnaldo Jabor em Toda nudez será castigada (1973), especialmente no Patrício interpretado por Paulo César Pereio (que mais adiante viveria personagem idêntico em Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, realizado em 1974 mas liberado pela Censura somente em 1978). Jabor viu na peça de Nelson Rodrigues “a perfeita representação do que se passava então no país: uma tentativa de dissimular a desordem e o desespero dos seres humanos sob o pretexto de manter a boa educação. Uma tentativa estúpida (e trágica) de reinstaurar virtudes antigas, de enfiar a marteladas na cabeça de todo mundo a ideia de que as consciências podem ser resumidas aos sete pecados capitais ou aos dez mandamentos, e os homens podem ser divididos entre os bons e os maus”. Para Jabor a peça de Nelson apontava o caminho para “lutar contra um tipo de pensamento que tenta hipocritamente provar que existem homens melhores que outros, quando na verdade o que ocorre é que alguns têm mais poder que outros”.[16] As pornochanchadas atravessaram essa mesma questão sem se dar conta dela. Tocaram no assunto sem saber do que estavam falando. Mas o espectador aprendera a conviver com a censura, a interpretar meias palavras (mesmo lá onde não havia grande coisa para interpretar), e leu a pornochanchada com uma reação bronca, de igual para igual, contra a censura. Não é por simples acaso que o palavrão tirado da faixa sonora e compreendido pelo movimento dos lábios do personagem filmado em primeiro plano tornou-se um dos mais eficazes efeitos cômicos da pornochanchada. O discurso populista do poder durante a ditadura de Getúlio Vargas, e nos primeiros anos da abertura democrática de 1946, inventou o malandro da chanchada de carnaval, herói falador que preenchia o vazio de sua conversa com palavras empoladas, dicção e gestos apaixonados, e uma pose de mando — especialmente naqueles momentos em que, sentindo-se ameaçado, apelava para as imunidades das pessoas importantes perguntando com ar aparentemente zangado: “Você sabe com quem está falando?” Já o discurso autoritário do poder durante a ditadura militar inventou o machão da pornochanchada, herói que trocou a conversa prolixa e em tom de quem fala em praça pública pelo conciso palavrão gritado em voz alta e lido em silêncio e em câmera lenta. Entre 1930 e 1945 o rádio e mais alguma coisa apanhada no cinema estrangeiro (os musicais norte-americanos, o tipo falador e malandro do mexicano Cantinflas), na censura do DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, contribuíram para a definição do malandro da chanchada de carnaval. Mas o que, muito provavelmente, mostrou mesmo o que ele deveria ser foi a retórica dirigida aos trabalhadores do Brasil, corrente na grande e na pequena autoridade política para garantir seus privilégios. Depois de 1964 a televisão, a propaganda e mais alguma coisa apanhada no cinema estrangeiro contribuíram para a invenção do machão da pornochanchada. Mas o que com toda a certeza de fato mostrou o que ele deveria ser foi a desarticulação grosseira da Censura.

No começo da sessão de cinema, colados nos cinejornais, os chamados assuntos de interesse educativo afirmavam: “Todos somos responsáveis pelos problemas da coletividade, como educação, trânsito e alimentação”. Recomendavam: “Com trabalho e imaginação criadora todo homem pode contribuir para a riqueza cultural do Brasil”. Ensinavam: “Se o tomate está caro, compre massa de tomate”. A pornochanchada, logo depois, traduzia estes conselhos numa linguagem deformada, feia, grotesca. Erotismo não existe numa pornochanchada. Pornografia, a rigor, também não. As histórias (e as imagens usadas para contá-las) são feitas só de grosseria. O ato sexual é uma demonstração de força e implica necessariamente num vencedor e num vencido: o experiente conquistador come a virgem, a velha prostituta come o donzelo. Os mais fortes estão no poder. Os jovens devem aprender com eles a se servir da força bruta: o sexo, franca pancadaria, guerra suja, distorção. Forma grotesca, se pudéssemos imaginar um grotesco (se é que faz sentido dizer assim, imaginar um grotesco) bárbaro, primitivo, inculto. O gesto da mulher que ajeita a calcinha enquanto torce pelas amigas que brigam com o capitão Ferreirão não é um gesto erótico. O ponto de vista escolhido pela câmera para ver a mulher que desce a escada depois de pregar a tabuleta do hotel lá em cima deforma. A pornochanchada enfeia a mulher. Quando a câmera estica o olho para ver os seios da secretária por dentro do decote amplo, ou quando se arrasta pelo chão por baixo da saia da empregada, o que importa não é um possível interesse erótico provocado pela imagem do que está meio encoberto, pela nudez relativa que se completa apenas na imaginação. O que importa é a grosseria da construção da cena. A mulher não é desejável, é feia e desprezível. É comida, devorada, levada para a cama só porque esta parece a melhor forma de menosprezá-la. O sexo gordo, feio, distorcido e de dimensões imensas, o plano mal construído, a imagem indefinida por um erro de exposição, defeito ou sujeira na lente – erros de realização? resultados de uma incompetência técnica? falhas resultantes de problemas econômicos? opção pelo grotesco? que importa? – todas estas coisas tornaram-se imprescindíveis para a construção de um ritual em sua essência masoquista: elas representavam a censura, que deste modo, por transversas vias, se tornava um objeto de consumo popular.

O espectador ia ao cinema procurar só a confirmação na tela de que vivia num beco sem saída. À primeira vista não faz muito sentido esta reação. Mas quando se retira das pessoas a possibilidade de se relacionar afetiva e efetivamente com a sua realidade, que mais pode existir além da emoção embrutecida e de uma doida sensação de que a grosseria faz parte inseparável de nosso modo de ser? Que mais pode existir além da sensação de que a civilização e o desenvolvimento são atributos do estrangeiro (da Nova York dos cigarros dourados, por exemplo) e de que o grosso e o mal-educado, sim, são coisas nossas? No final da década umas tantas produções europeias de características abertamente pornográficas chegaram ao mercado brasileiro e passaram pela Censura sob o disfarce de filmes de interesse educativo sobre o sexo. Mas estes filmes, com fantasias eróticas ingênuas, sem a grosseria à flor da pele das pornochanchadas, não despertaram interesse. Depois da abertura política uma invasão de filmes pornôs europeus e norte-americanos tomou conta dos cinemas do Rio de Janeiro e de São Paulo (pois logo que a lei se tornou menos arbitrária exibidores e distribuidores trataram de impetrar mandatos de segurança para garantir a exibição de filmes pornográficos estrangeiros, confiantes na maior tecnologia dos países desenvolvidos). Mas, de novo, histórias de homens e mulheres interessados apenas em sexo, em se libertar de um contexto moralista preconceituoso onde o sexo é pecado, histórias com infinitas cenas de sexo mostradas na tela com os possíveis detalhes não tiveram público ou repercussão semelhante à das pornochanchadas que jamais mostraram uma cena de sexo mesmo. O que levou as camadas populares para as pornochanchadas, ao contrário do que disse certa vez Pedro Rovai, não foi a repressão sexual nas camadas populares, foi a repressão política.

Como muito bem sintetizou Joaquim Pedro de Andrade, a pornochanchada dava “um retrato do que estava se passando socialmente no país”. O choque que se produzia nos cinemas “quando um trailer de pornochanchada se exibia para uma plateia conquistada pelas grandes produções americanas” dava uma boa imagem do que se passava no país: “0 choque é tão grande com aquele tipo de troço que aparece na tela, tão feio, tão esquisito, que as pessoas têm uma reação de repulsa, de irritação (…) Se a pornochanchada é feia, é porque é feio o nível de vida, o nível de moral, de transação entre as pessoas que curtem aquilo. Portanto, uma boa parte da população de uma cidade como o Rio de Janeiro é tão feia quanto aqueles filmes. E é ridículo querer partir para combater os filmes. Você deve partir para combater esta feiúra”.[17]

A feiúra como um meio de protestar contra a feiúra? A feiúra no cinema como uma conspiração contra a ordem instituída que impedia conversas às claras?

O poder falava num dialeto que as pessoas comuns não conseguiam entender: maximização da produtividade, otimização dos meios de produção, aquecimento ou desaquecimento da economia, implantações, implementações, recolhimentos restituíveis, overnaites, praime reites, mercados futuros, índices de redução da taxa de contenção da inflação — uma ininteligível gíria para explicar um milagre econômico que jamais chegou ao consumidor da pornochanchada. Ele, que ouvia em silêncio do lado de fora do cinema todos estes palavrões, respondia durante a projeção com o palavrão silencioso, voz interior, leitura do movimento labial do personagem. Em silêncio, porque nem mesmo no escuro da sala do cinema o consumidor de pornochanchada estava livre da vigilância e dos palavrões do governo. No filmete colado no cinejornal, na tela dividida em três partes, rotativas de um jornal, tubos de ensaio de um laboratório de química, automóveis nas ruas, estudantes numa sala de aula, um trator trabalhando a terra, operários montando trilhos numa via férrea, o Palácio da Alvorada, o edifício do Congresso em Brasília e uma orquestra sinfônica — tudo isto para dizer no final que “o bem-estar depende do trabalho e da participação de todos”. Logo depois da propaganda do governo, a propaganda da pornochanchada: as secretárias que fazem de tudo, as mulheres que fazem diferente, os machões que roubam as calcinhas, os paqueras que fogem com as calças na mão desmentiam na prática o lema do poder: na vida é cada um por si e o governo contra todos.

Num banco de jardim, o machão é interrompido por um pivete que, mal vestido e com cara de fome, pede uns trocados para comprar um sanduíche. O machão consulta o relógio e diz que não vai dar trocado nenhum: quase meio-dia, não era hora de comer sanduíche; come sanduíche, perde o apetite, acaba não almoçando. A terra não é do homem, é de Deus e do Diabo. Os pobres, os fracos, os bem-comportados, os que trabalham, os que têm fome, os que não têm poder, que se danem. O mundo é dos espertos. Na praia, sol de verão, deitado numa toalha com um desenho de uma mulher nua, o herói vive de artesanato ou de arrumar festinhas. Namoradas, nenhuma com mais de 18 anos. Assim é o Bilu de Eu transo, ela transa (1972), de Pedro Camargo. Quando é preciso trabalhar, o herói da pornochanchada se disfarça de alguma coisa. De jornalista, como em Gente que transa… os imorais (1974), de Sílvio Abreu, repórter que faz sucesso ao contar a história de um homem que agrediu a mãe a dentadas: “Comeu a mãe e gostou”. Se o herói da pornochanchada é mesmo obrigado a trabalhar, fica rico e se transforma no patrão, como o Flávio de Café na cama (1974), de Alberto Pieralisi, passa a dar ordens: a secretária deve usar saias curtas, sentar-se na ponta da poltrona e imitar a saudação nazista com a perna direita. Quem insiste em ser virtuoso e honesto acaba mal, como a ingênua virgem do segundo episódio (A bela da tarde) de As mulheres que fazem diferente (1974), de Adnor Pitanga, Lenine Ottoni e Claudio MacDowell. Por equívoco do porteiro do hotel, ela, que procura um emprego de secretária, é enviada ao quarto de um homem que aguarda uma prostituta. Reclama, grita, tenta fugir. Acaba presa como prostituta. Já a verdadeira prostituta, enviada por equívoco ao quarto do patrão à procura de secretária, ganha um novo freguês e o emprego de datilógrafa.

Propaganda antes, propaganda depois. O governo e a pornochanchada reduziam a expressão a apelos de venda de um (manso ou grosseiro, dá no mesmo) mau comportamento. Por isto mesmo, porque analfabetizou-se também com a propaganda, a pornochanchada logo voltou a se apoiar nela.

Nos letreiros de apresentação de Como nos livrar do saco (1974), de César Ladeira Junior, depois dos cartões com os nomes dos intérpretes e técnicos, aparece uma extensa lista de agradecimentos. Lojas comerciais (listas com os respectivos endereços), pessoas, autoridades, empresas e secretarias de Estado que com sua colaboração tornaram possível a realização. Nos letreiros de Um soutien para o papai (1976), de Carlos Alberto de Souza Barros, um cartão agradece a colaboração de uma firma comercial que gentilmente permitiu a filmagem no interior de sua fábrica. Trata-se, num caso e noutro, de apresentar direta compensação publicitária aos grupos ou indivíduos que participaram da produção com dinheiro ou com a cessão gratuita de cenários e objetos de cena ou ainda com alojamento e alimentação para a equipe. No caso particular de Um soutien para o papai a compensação atende às duas partes: à fábrica de soutiens, que exibe os seus modelos, e ao espectador da pornochanchada, que se diverte com o pedaço de seio que sobra por fora do soutien ou se entrevê por baixo do tecido transparente. Compensações publicitárias idênticas existem mais evidentes em A virgem e o machão, em Secas e molhadas, em Café na cama, em Com as calças na mão, mais discretas em Luz, cama, ação!, em Um varão entre as mulheres, em Amada amante. Propaganda indireta dentro de um filme não é uma prática exclusiva das chanchadas pornôs, mas nelas as listas de agradecimentos são particularmente longas e destacadas. Quando não se está seguro de poder chegar aos cinemas, o melhor é ter o custo coberto durante o processo de produção. Quando as primeiras pornochanchadas surgiram, esta coisa sempre complicada que é levar um filme feito aqui aos cinemas estava ainda mais complicada, a censura somando-se às dificuldades criadas pelo mercado. Tais dificuldades foram as principais facilidades encontradas pela pornochanchada para se fazer: elas não se apresentavam para os exibidores como um filme brasileiro. Às vezes, nem mesmo como um filme. Não preparavam o lançamento, bastava uma qualquer semana vaga entre dois filmes estrangeiros, nem era preciso gastar em publicidade: a promoção vinha da censura. Tudo parecia acontecer de modo espontâneo, por livre escolha do espectador. Mais tarde, interessados, porque o público aumentava, o exibidor (a Atlântida Cinematográfica, por exemplo, co-produtora, entre outros, de O estranho vício do Dr. Cornélio, 1975, de Alberto Pieralisi, e de Quando as mulheres querem provas, 1975, de Claudio MacDowell) e uma ou outra distribuidora estrangeira (a CIC, por exemplo, co-produtora de Motel, 1975, de Alcino Diniz) passaram a participar da produção. Adiante, final dos anos 70, a grosseria procurou se tornar menos malfeita (afirmação relativa, exagero para ser tomado como afirmação relativa).

Os primeiros exemplos desta grosseria mais “civilizada” podem ser encontrados em Luz, cama, ação! (1976), de Claudio MacDowell, e em Com um grilo na cama (1976), de Gilvan Pereira, esta também uma chanchada pornô feita em co-produção com a Atlântida. Na essência nada mudou. Os mesmos personagens e situações, mas as imagens não. MacDowell conta a história da filmagem de uma pornochanchada. Pereira, a história de um machão que fica impotente depois do casamento. Luz, cama, ação! se realiza em dois níveis: primeiro temos a aventura de uma equipe de cinema, narrada sem o grotesco habitual das pornochanchadas. Depois, as cenas do que esta equipe produz para uma chanchada chamada O corno virgem, e então as grosserias de sempre. Em Com um grilo na cama o machão conta a história de um herói que depois do casamento não conseguia se interessar por mulher alguma. Antes ele vivia correndo atrás de todas as mulheres (conseguira conquistar até mesmo a jovem que a tia moralista vigiava de perto). Uma historinha igual a outras contadas em pornochanchadas, mas aqui as corridas trôpegas da lente zoom para dentro dos decotes e para baixo das minissaias cedem lugar a (quase) bem-comportados passeios de câmera sobre cartões-postais com reproduções de desenhos, pinturas e esculturas de nus (no momento em que o machão agarra a mocinha no quarto), ou flores de cactos (quando o machão agarra o mocinha na praia, aproveitando-se da distração da tia moralista). Existem cenas de sexo num elevador, dentro de um carro, por trás das pilastras de um viaduto em construção, por baixo da mesa de uma festa de aniversário. Mas nestes momentos, toda educação e bons modos, a câmera sai de lado envergonhada. não entra no elevador ou no carro — fica na porta, fica do lado de fora, não se estica para ver o que se passa do outro lado da pilastra, não espia o que se passa por baixo da mesa, fica sobre o bolo de aniversário. A ação continua grosseira, os diálogos continuam broncos e cheios de palavrões mas a imagem começa a se mover com uma fingida educação. Estes sinais de educação surgiram bem no instante em que Pedro Carlos Rovai defendia no semanário Movimento a vocação de comédia popular da pornochanchada. Neste mesmo depoimento ele afirmava que a pornochanchada “poderia levar o cinema brasileiro ao esgotamento se toda a produção de bilheteria estiver baseada só nela”; e que ele queria “se aprofundar em direção à comédia de costumes, com uma linguagem simples que o público entenda. Linguagem simples não quer dizer medíocre, pode ser uma linguagem apropriada, exata, sóbria”.[18] É como se, nova-rica, a pornochanchada começasse a se aburguesar para frequentar os salões de maneira mais apropriada.

Algo mudava. Os cartões-postais, as flores de cactos e o bolo de aniversário sobre a mesa de Com um grilo na cama são os sinais mais evidentes de uma vontade presente também em outras pornochanchadas do final dos anos 70. Às vezes na tentativa de compor uma história, como em As granfinas e o camelô (1977), de Ismar Porto, onde três jovens ricas apostam que podem transformar um camelô ignorante num cavalheiro e amante ideal no período de um mês; outras na tentativa de adotar a aparência de aventura policial (inspirada nas séries de televisão Kojak, Police Woman, Columbo, Hawai 5-0, Canon, entre outras) em Belas e corrompidas (1978), de Fauzi Mansur, Escola penal de meninas violentadas (1977), de Antônio Meliande, ou Presídio de mulheres violentadas (1977), de Polo Galante. Algo mudava, é certo, e talvez o mais interessante de todos os sinais de mudança é o que se pode observar no primeiro dos três episódios de Gente fina é outra coisa (1977), de Antônio Calmon. Chama-se A guerra da lagosta e conta a história de um nordestino recém-chegado ao Rio trabalhando na casa de um casal rico como mordomo e chofer. Quando sai para passear com o cachorro da casa, colete e calça listrada de mordomo, os muitos desocupados que se espalham pela praça riem dele. Zombam, xingam, apelidam o nordestino de “babá de cachorrinho de madame”. Depois, saem de cena e só voltam a aparecer quando a história já está acabando. O nordestino abandona o emprego, briga com o patrão e na porta da rua dá uma bofetada na cara dele. Os desocupados, então, mudam de atitude: elogiam o rapaz, aplaudem, chegam respeitosos, passam a chamá-lo de “bacana”, saúdam o nordestino satisfeitos como nunca. Um quase nada, mas um intento de dar algum sentido à agressão dispersa das primeiras pornochanchadas. Ou um intento de voltar a um dos pontos de partida, refazer a cena em que os vizinhos vaiam o marido enganado, aplaudem a mulher infiel e carregam nos braços até o carro da polícia o conquistador de Os paqueras.

Imaginemos algo como uma briga de irmãs, tudo se resolvendo em família. Num certo instante as irmãs começam a ceder, a propor um entendimento relativo. Foi mais ou menos o que se passou nesse instante em que a Censura e a pornochanchada procuravam ser um pouco menos mal-educadas. A primeira com bolas pretas sobre os nus em vez de proibição total, a segunda com cartões-postais e bolo de aniversário em vez de franca grosseria.

Com as bolas pretas usadas para liberar o filme de Stanley Kubrick, temos também um sinal do desaparecimento do mundo da pornochanchada. Começava na vida política brasileira um novo período de relativa abertura, a censura e a opressão da ditadura militar mudavam de tom. Não desapareciam. Mas mudavam de tom. E aquele particular tipo de deboche deixou de ser a resposta adequada, aceita e estimulada pela repressão ou consequência dela. Menos presente o impulso que a criara, a pornochanchada começava a perder sua identidade e razão de ser. No malfeito, no miserável, no seu jeito sujo, reprimido, grosseiro, existia algo que fazia dela uma coisa à parte no cinema, um sinal do tempo. Tentando eliminar o seu malfeito técnico, dramatúrgico, estrutural, ela se tornou igual a qualquer outra chanchada pornô feita não importa onde, subproduto que circula à margem do mercado mas de modo oficial, mais ou menos confinado a salas decadentes, voltadas exclusivamente para os consumidores de filmes de sexo explícito. O desaparecimento da pornochanchada não foi imediato. Ela durou por muito tempo ainda depois das bolas pretas que liberaram Laranja mecânica, até pelo menos a metade dos anos 80 (entre outros: Bacanal, 1980, de Antônio Meliande; Aluga-se moças, 1981, de Deni Cavalcanti; Mulher objeto, 1981, de Sílvio Abreu; Karina, objeto de prazer, 1981, de Jean Garret; Senta no meu que eu entro na tua, 1984, de Ody Fraga) convivendo com pomôs de sexo explícito, alguns deles realizados pelos mesmos diretores mas assinados com pseudônimos. A pornochanchada assim como existiu entre o ato institucional número 5 e a abertura desapareceu, mas deixou marcas espalhadas pelo audiovisual, às vezes no humor da televisão, às vezes na publicidade, outras num filme que, à procura de público mais amplo, inclui uma cena de sexo em que os amantes se agridem sexualmente como se estivessem numa luta livre, num vale-tudo, numa competição em que apenas um deles pode sair vencedor — e em que o cinema sai sempre derrotado. A dimensão desta derrota pode ser avaliada no resultado de uma pesquisa feita no Rio de Janeiro, em 1998, por solicitação da distribuidora Riofilme. Uma consulta realizada em porta de cinema, nas estações de metrô de Botafogo e Carioca e nos campi da PUC, da Uerj e da UFRJ apontou como principal causa de rejeição ao cinema brasileiro o fato de se produzirem dominantemente pornochanchadas. Muito tempo depois das últimas pornochanchadas, e então ainda se recuperando dos anos da ação devastadora na cultura e na educação imposta pelo governo Collor, o cinema brasileiro trazia carimbada em sua imagem, fotograma por fotograma, uma bola preta como a usada certa vez pela Censura, a marca da pornochanchada — sinal de que, embora não mais na prática, continuávamos vivendo em teoria em plena relatividade.

25 anos depois:

Escrito em 1979 para a coletânea Anos 70, este texto foi revisto em 1986, para ser incluído em O cinema dilacerado, e revisto e atualizado para a presente edição. As correções feitas nestas duas releituras não alteram sua essência, mas procuram eliminar vazios hoje mais difíceis de serem preenchidos pelo leitor.

Impossível recompor o processo na memória e afirmar com precisão se a estrutura que organiza o texto com estes vazios se fez assim planejada ou espontaneamente.

Talvez seja consequência direta do trabalho jornalístico. Desde a metade dos anos 60 vinha escrevendo regularmente em jornais, lidando com essa escrita essencialmente inacabada e feita para o tempo presente; discutindo o filme no instante mesmo em que o filme se encontrava em exibição; propondo ao leitor um encadeamento entre o filme, o texto sobre o filme e os outros textos do jornal. Escrito pouco depois do relativo abrandamento da censura, aprofundando observações feitas em jornal no lançamento de cada um dos filmes, o texto se dirigia ao leitor mais ou menos como uma notícia de jornal.

Talvez tenha sido uma construção conscientemente feita para reafirmar que o texto crítico não é (apenas, não é principalmente) o que comunica a conclusão de determinada análise, mas sim o que gera um espaço crítico em torno dele, dentro dele, a partir dele. Desde a metade dos anos 60 a repressão do poder a toda e qualquer forma de pensar conduzira a crítica a revigorar este seu pedaço de obra aberta, deflagradora de um processo que vai além dela. A crítica, de certo modo, se constrói mesmo com espaços abertos, para o leitor, aí, no vazio do texto, participar ativamente do processo; fala tanto da obra com que dialoga quanto de um modo de se relacionar criativamente com qualquer outra obra.

Com toda certeza, publicado entre o final de 1979 e começo de 1980, o texto se propõe com certo quê de urgência, de discussão feita para o tempo presente — no que não se difere muito da reflexão que todos procurávamos produzir então.

Buscando um equilíbrio entre a manutenção da estrutura original, porque de certo modo ela desenha um dos aspectos da década, e a necessidade de preencher certos vazios, convém lembrar:

que hoje não vamos mais ao cinema assim como o fazíamos antes do vídeo, antes do DVD, antes da internet, antes do multiplex;

que desde sempre a ideia de pornografia no cinema esteve associada a qualquer coisa suja, escatológica, proibida, grosseira;

que o grotesco da pornochanchada possivelmente aparecia mais grotesco ainda diante do barroco das tradicionais salas de exibição, várias delas então ainda em funcionamento, com seus espelhos, tapetes, lustres, colunas e escadarias, uma arquitetura de aparência solene, entre o palácio e o templo, que antecipava o cenário das produções da grande indústria; que pouco depois da pornochanchada os filmes pornográficos se instalaram por algum tempo em grandes salas de cinema e, se não contribuíram diretamente para isso, pelo menos acompanharam a decadência destes espaços enquanto o negócio de cinema se deslocava para os shoppings, a caminho dos multiplex.

Preencher vazios do texto significa abrir novos vazios, para pensar os anos 70 com olhos de hoje e melhor analisar o cinema de então através de seu contracampo. Para tanto seria conveniente lembrar também o debate de cinema de abril de 1975. O debate foi o primeiro do ciclo organizado pelo Teatro Casa Grande que discutiu também teatro, literatura, música, televisão, artes plásticas, jornalismo e publicidade. Umas tantas perguntas do público sobre o som ruim nos cinemas e uma em especial sobre o possível efeito nocivo da pornochanchada no desenvolvimento do cinema brasileiro refletem o sentimento de parte dos espectadores. A resposta de Leon Hirszman (na mesa comigo e com Alex Viany) sobre a pornochanchada expressa um sentimento semelhante àquele que desenvolvia na análise dos filmes. Para Leon o cinema brasileiro não ficara ruim por causa das pornochanchadas; elas nasceram de um tipo de pressão da censura e de um tipo de solicitação do público e procuravam mais uma sugestão de pornografia que pornografia propriamente dita: “0 que acontece nelas é que, em lugar do erotismo ou de pornografia, o que existe é uma grosseria de relações, uma grosseria de tratamento entre as pessoas” .

o público de cinema dividido entre igual intensidade de entusiasmo e de irritação diante da pornochanchada sugere investigar em que medida ela contribuiu para aumentar a rejeição ao cinema brasileiro e em que medida os preconceitos contra os nossos filmes contribuíram para aumentar a rejeição à pornochanchada. É possível supor que a imagem negativa que se construiu em torno do filme brasileiro — que seria por natureza incompreensível e de má qualidade técnica — identificou na pornochanchada o requinte do malfeito: não apenas filmes de má qualidade mas o próprio mal, o que exigia uma reação extrema como a que ocorreu. É igualmente possível supor que a regular produção de pornochanchadas e a quantidade de espectadores que tais filmes reuniram tenham gerado uma generalização simplória de que tudo no cinema brasileiro, do produtor ao espectador passando por tudo o mais, era grosseiro, nocivo, inaceitável e exigia uma mobilização para extinguir de vez a atividade como a que se montou em jornais e revistas especialmente entre o começo dos anos 80 e a metade dos anos 90.

Seria conveniente ainda investigar mais rigorosamente o período em que a pornochanchada surgiu: as notícias (na imprensa ou censuradas e circulando nas entrelinhas) da invasão das salas comerciais pelo cinema pornográfico nos Estados Unidos (History of the blue movies, 1971, de Alex de Renzi; Deep throat, 1972; e Devil in Miss Jones, 1972, ambos de Gerard Damiano), e na Europa (Emmanuelle, 1973, de Just Jaeckin).

E investigar também outros possíveis e mais distantes antecedentes da pornochanchada, além dos citados no texto. Investigar por que a chanchada da ditadura Vargas se vestia de ingenuidade e a da ditadura militar, de grosseria. Investigar pelo menos parte das soluções usadas em tempos anteriores ao da pornochanchada para fugir ao bloqueio da censura e circular no mercado brasileiro. Lembrar, por exemplo, os inúmeros filmes com cenas destrip-tease, como os distribuídos pela Horus Filmes e exibidos regularmente entre 1965 e 1973 na sala programada pela distribuidora em sociedade com o circuito Darze, o Cineac Trianon, na Avenida Rio Branco, no Rio. A memória registra a utilização de pelo menos dois filmes brasileiros, Barravento e Cinco vezes favela, como suportes para a aprovação do programa pela censura. Na fachada os títulos apareciam pequeninos, escondidos por baixo de letreiros de letras bem grandes e com frases idênticas às que seriam adiante usadas pelas pornochanchadas para agarrar o espectador na porta do cinema. O filme de Glauber se transformava em A praia dos desejos eróticos; o de Diegues, Leon, Joaquim, Marcos e Borges em algo assim como As incríveis bacanais na favela. Os filmes eram efetivamente exibidos, mas três ou quatro cenas de strip-tease que pertenciam ao exibidor eram acrescentadas no final ou começo de cada rolo.

Finalmente, talvez convenha ainda examinar melhor o período final da pornochanchada, a tentativa de se aburguesar e a busca de reconhecimento. Dois anos depois da publicação de Anos 70 o Departamento de Informação e Documentação Artísticas da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo publicava O imaginário da Boca, pesquisa de Inimá Simões “sobre a produção mais recente, de 1978 a 1980, particularmente no universo da pornochanchada”, da Boca, espaço “entre edifícios descuidados do antigo bairro de Santa Efigênia”, ruas ocupadas “por distribuidoras e produtoras, frequentadas por profissionais de cinema, intelectuais e jornalistas”. Concentrado na produção paulista, a pesquisa ouve diretores, produtores, intérpretes e técnicos (Antônio Galante, Ody Fraga, Aldine Muller, Zilda Mayo, Rajá de Aragão, Jean Garret, entre outros) e, ponderando as respostas obtidas, faz um comentário que parece resumir bem precisamente os becos sem saída — nada relativos — abertos a quem se propôs a realizar pornochanchadas. Diante da pesquisa “o profissional de cinema se via na contingência de se ‘explicar’, segundo algumas formas básicas: desprezo pelo próprio trabalho, numa posição claramente defensiva; preocupação em evoluir até uma posição harmoniosa com a visão mais acadêmica de cultura; e finalmente, há os que assumiram a postura de homens solitários (como os mocinhos do faroeste), em luta constante contra os obstáculos — dificuldade de conseguir dinheiro, hostilidade dos meios intelectuais, indiferença da imprensa etc. Três alternativas do indivíduo e seu modo de ser em relação à cultura estabelecida”.

/comentário de José Carlos Avellar /

Notas

  1. A classe operária vai para o paraíso (La classe operaria va in paradiso), de Elio Petri;Sopro no coração (Souffle au couer), de Louis Malle; Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor; Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti), de Giuliano Montaldo; Mimi, o metalúrgico (Mimi, metallurgico ferito nel’onore), de Lina Wertmuller; Os garotos virgens de Ipanema, de Oswaldo Oliveira; Queimada (Queimada), de Gillo Pontecorvo; A aventura é uma aventura (L’ aventure cest l’aventure), de Claude Lelouch; A rebelde (La califa), de Alberto Bevilacqua; e Cama com música (Bedroom mazurka), de John Hilbard. Toda nudez será castigada foi novamente liberado, embora com muitos cortes, em agosto de 1973. Todos os outros foram liberados entre novembro de 1979 e junho de 1980, depois da efetivação do Conselho Superior de Censura, criado em novembro de 1968 mas efetivamente constituído em junho de 1979.
  2. Comunicados da Polícia Federal à redação do Jornal do Brasil. Especialmente entre 1972 e 1974, as proibições impostas pela Censura eram levadas à redação diretamente por policiais ou militares. Parte dos comunicados trazia simplesmente a assinatura Polícia Federal, como os dois aqui reproduzidos, mas vários destes comunicados traziam a assinatura do inspetor Costa Sena, do general Nilo Canepa, do general Antônio Bandeira e do coronel Moacir Coelho.
  3. O ato institucional número 5 foi revogado em 31 de dezembro de 1978, dez anos depois de sua edição, em 13 de dezembro de 1968. A declaração do general João Batista de Figueiredo foi feita pouco depois de sua eleição no Congresso, no dia 15 de outubro de 1978, divulgada por rádios e televisões, reproduzida na primeira página do Jornal do Brasil do dia seguinte. João Batista de Figueiredo tomou posse em 15 de março de 1979.
  4. Filme faz apologia do terror, afirma general, notícia publicada em O Estado de S. Paulo, 7 de abril de 1982, primeiro caderno, página 22.
  5. O decreto-lei 20.493 de 24 de janeiro de 1946 criou o Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública do Ministério da Justiça.
  6. Trata-se da propaganda de lançamento dos cigarros Benson & Hedges no Brasil, exibida nos cinemas e nas televisões em setembro de 1978.
  7. Instituto Nacional do Cinema, Informativo SIP, edição do Setor do Ingresso Padronizado, dirigido por Alcino Teixeira de Mello. Embrafilme, Informações sobre a indústria cinematográfica brasileira, edição da Divisão de Promoção e Propaganda da Embrafilme, coordenada por Helio Contreiras.
  8. Pedro Carlos Rovai, entrevista ao jornal Movimento, janeiro de 1976.
  9. De acordo com a transcrição publicada em O Estado de S. Paulo de 6 de agosto de 1975.
  10. Pedro Carlos Rovai, entrevista ao jornal Movimento, janeiro de 1976.
  11. No primeiro ano de produção a Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República produziu 45 filmetes. Os dois primeiros tiveram como tema o Natal; os dois seguintes, o Ano Novo. Futebol e férias foram os temas dos filmetes números 5 e 6. Em fevereiro, dois filmetes sobre o carnaval. Em março, a volta às aulas foi o tema dos dois primeiros e o aniversário do golpe militar, o tema dos dois seguintes. Ao longo do ano seguiram-se filmetes sobre a Páscoa, o papel dos jovens na sociedade, a participação de todos na sociedade, Tiradentes, os jogos universitários em Brasília, o trânsito nas cidades, as relações entre pai e filho e entre professor e aluno, a Semana da Pátria, o Dia da Bandeira, a Aeronáutica, o Exército, o Dia da Criança, o Dia da Árvore, o papel do jovem na sociedade, o papel do pedreiro, do amolador de facas, do gari, do carpinteiro, do bombeiro, e a importância de doar sangue. E a partir do Campeonato Mundial de futebol no México, um filmete com o tema Ninguém segura esse país.
  12. A imagem oficial retocada para o consumo, entrevista do coronel José Maria de Toledo Camargo a Gilnei Rampazzo, O Estado de S. Paulo, primeiro caderno, página 8. Na entrevista, o coronel Camargo conta que a criação do Grupo de Trabalho de Relações Públicas da candidatura Costa e Silva foi “uma proposta feita pelo coronel Ernani d’Aguiar e levada ao marechal pelo general Jaime Portela”; que para acentuar a imagem do marechal “no que ela tem de calor humano e simpatia e de comunicação com a massa” foram definidas, “entre as providências consideradas imediatas: suspender o noticiário social em torno do marechal; rarear suas visitas a coquetéis e recepções mundanas, evitando atitudes que possam ser tidas como ostentação; de quando em quando passear só ou com a esposa ou com os netos pelas ruas centrais dos bairros (Copacabana e Tijuca) onde moram, respectivamente, ele e seu filho”. Cabe notar que, paralelamente à Assessoria Especial de Relações Públicas, criaram-se a Operação Bandeirantes, os organismos de repressão do DOI-Codi, a rede nacional de televisão por satélite. E ainda que 1969 e 1970 foram os anos em que ocorreram os sequestros de diplomatas de Estados Unidos, Alemanha Ocidental, Japão e Suíça, cuja libertação se deu em troca da soltura de presos políticos.
  13. Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, Censura & liberdade de expressão, Editau, Editora e Distribuidora do Autor Ltda. São Paulo, 1975, página 27.
  14. Idem, página 93.
  15. Como conta a revista Realidade, em sua edição de junho de 1968: Foragido da polícia do Rio Grande do Sul, acusado de mandar matar dois homens em São Borja, no final da década de 40, Hermenegildo Ramirez de Godoy mudou seu nome para Antônio Romero Lago e refugiou-se no Paraguai, onde se tornou amigo de Alfredo Stroessner. De volta ao Brasil na metade dos anos 50 com sua nova identidade, trabalhou no Instituto Nacional de Imigração e Colonização, na Superintendência de Reforma Agrária e, finalmente, por indicação do general Riograndino Kruel, foi levado à direção do Serviço de Relações Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública e em seguida à direção do Serviço de Censura.
  16. Arnaldo Jabor, folheto de divulgação de Toda nudez será castigada, Ipanema Filmes, Rio de Janeiro, 1973.
  17. Joaquim Pedro de Andrade em depoimento a Marcelo Beraba e Ayrton Tury para o programa da retrospectiva organizada em agosto de 1976 pelo Cineclube Macunaíma, O cinema de Joaquim Pedro de Andrade, página 9.
  18. Pedro Carlos Rovai, entrevista ao jornal Movimento, janeiro de 1976.

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