1999

A selvageria culta

por Philippe Descola

Resumo

Quando descobrem os ameríndios das terras baixas da América do Sul, os europeus ficam mais espantados com a selvageria dos homens do que com a selvageria do lugar. Guerras incessantes e sem motivos aparentes, o canibalismo ritual, a poligamia, tudo isso impressiona os observadores desconcertados que penam para reconhecer nessas práticas um dispositivo social do qual o Velho Mundo não oferecia equivalente. Já a natureza não parece suscitar nenhum assombro particular. Nenhuma surpresa diante das florestas densas e sempre verdes, nenhuma recriminação ao calor úmido do clima tropical, nenhuma inquietude diante de uma fauna desconhecida. Em vez disso, o sentimento dominante é o que um andarilho poderia exprimir ao descobrir uma verde campina europeia na primavera.

Ora, curiosamente, é a incapacidade dos europeus de compreender a vida social dos ameríndios que vai dar à natureza tropical um estatuto de alteridade exótica que se perpetua até hoje. Porque o melhor meio de resolver o enigma desses homens é concebê-los como inteiramente submetidos aos decretos de uma natureza de que não souberam se distanciar. Assim, se,por um lado, os ameríndios manifestam sinais de humanidade, já que possuem usos que lhes são particulares, línguas próprias, regras sociais e técnicas eficazes,os extravasamentos de violência a que se entregam parecem, por outro, tão inexplicáveis que precisamser encarados como expressão de uma bestialidade natural. Para os europeus da época, a guerra intestina reafirmaassim uma associabilidade absoluta que só pode ser interpretada pela naturalização dos homens que a ela se entregam. Assim, é a anarquia aparente da vida social dos ameríndios, essa gente “sem fé, sem lei e sem rei”, que vai remetê-los por alguns séculos ao estado natural. Conforme o humor dos filósofos que brandem tais argumentos em seus debates, os índios encarnam seja a harmonia de uma Idade de Ouro já desaparecida em outros lugares, sejam os horrores de uma natureza animal e feroz.

Nada disso reflete o real desenvolvimento dos ameríndios. Ele que é bem representado pela relação que mantiveram com a natureza. Uma sutil harmonia, assim como observada em meio às populações indígenas da Amazônia e das Guianas, que souberam por em prática estratégias de uso dos recursos que, se transformavam de maneira duradoura seu ambiente natural, não subvertiam com isso seus princípios de funcionamento nem punham em risco suas condições de reprodução. Com efeito, baixas densidades de população, combinadas com técnicas sofisticadas de cultura e de caça seletiva, permitiram que os ameríndios explorassem esse ecossistema frágil por milhares de anos sem comprometê-lo. Até porque a domesticação das plantas nas terras baixas da América do Sul é antiqüíssima. De fato, estima-se que a batata-doce, a mandioca e o inhame americano tenham sido domesticados há cerca de 5 mil anos, e a taioba Xanthosoma sem dúvida bem mais cedo. No total, várias dezenas de espécies foram domesticadas na América do Sul tropical, algumas das quais, como a mandioca, comportam centenas de variedades.

De acordo com isso estão as complexas cosmogonias elaboradas pelos índios da região. Elas que integram de tal modo vida natural e social que é impossível afirmar onde acaba uma e onde começa outra. Humanos e não-humanos em pé de igualdade, enfim.

Nada do dualismo estanque que vigora no Ocidente desde a instituição da modernidade e que, aliás, é muito útil à razão instrumental que governa o mundo atual. A mesma que, sem espanto, desmata sete milhões de hectares de floresta amazônica por ano.


Quando descobrem os ameríndios das terras baixas da América do Sul, os europeus ficam mais espantados com a selvageria dos homens do que com a selvageria do lugar. Guerras incessantes e sem motivos aparentes, o canibalismo ritual, a poligamia, tudo isso impressiona os observadores desconcertados que penam para reconhecer nessas práticas um dispositivo social do qual o Velho Mundo não oferecia equivalente. Já a natureza não parece suscitar nenhum assombro particular. Nenhuma surpresa diante das florestas densas e sempre verdes, nenhuma recriminação ao calor úmido do clima tropical, nenhuma inquietude diante de uma fauna desconhecida. Em vez disso, o sentimento dominante é o que um andarilho poderia exprimir ao descobrir uma verde campina europeia na primavera.

Basta pensar nas descrições bucólicas de André Thevet em As singularidades da França Antártica. Quando chega ao cabo Frio, em 1555, acha o lugar “muito agradável e fértil”; embrenhando-se na mata Atlântica, encontra “uma região plana coberta de árvores diferentes das de nossa Europa, rica em lindos rios com águas maravilhosamente límpidas e em peixe” (Thevet, 1983 [1557], p. 42). Ao chegar à baía do Rio de Janeiro alguns dias depois, pensa em Homero: “Só tivemos de nos recrear e descansar na relva verde, como os troianos depois de tantos naufrágios e tempestades, quando encontraram a boa dama Dido” (ibidem. p. 44). A ilha de Villegaignon “é agradabilíssima, por ser coberta de uma grande quantidade de palmeiras, cedros, paus-brasil, arbustos aromáticos que verdejam o ano todo” (ibidem).

Na mesma época, mas alguns milhares de quilômetros mais a oeste, Juan de Salinas Loyola faz os mesmos comentários. Em 1557, ele é um dos primeiros conquistadores a alcançar o piemonte dos Andes para explorar a alta Amazônia. Assim como hoje, era uma região de floresta impenetrável, afogada pela chuva, com um relevo acidentado difícil de percorrer em seus sobe-e-desce enlameados. Descrevendo o vale de Chinchipe, o vê apesar de tudo como uma “região com vales de vista agradável e clima ameno”, a terra em toda parte é “muito fértil em todos os tipos de alimentos e frutas, como são nas Índias Ocidentais” (Jiménez de la Espada, 1965, p. 197). Tais apreciações são comuns em todos os relatos dos exploradores das terras baixas da América do Sul tropical até o fim do século XVI. Encontramos neles descrições fiéis e detalhadas da fauna e da flora, mas raramente a expressão de uma distância em relação a um ambiente natural que tivesse sido julgado estranho ou monstruoso.

Ora, curiosamente, é a incapacidade dos europeus de compreender a vida social dos ameríndios que vai dar à natureza tropical um estatuto de alteridade exótica que se perpetua até hoje. Porque o melhor meio de resolver o enigma desses homens aparentemente desprovidos de instituições políticas é concebê-los como inteiramente submetidos aos decretos de uma natureza de que não souberam se distanciar. Encontramos ilustrações dessa tendência desde as primeiras crônicas. É o caso de Américo Vespúcio, por exemplo, que passa perto de um mês com os indígenas da costa da Venezuela, entre os quais pratica uma verdadeira observação participante (ver Gerbi, 1978, pp. 50-60). Florentino culto e imbuído do humanismo da Renascença, considera os autóctones uma variedade da espécie humana que merece ser estudada. No entanto, uma característica da vida social dos ameríndios o deixa em grande perplexidade: a guerra intestina e seus dois corolários, o canibalismo e a escravidão doméstica. A intensidade e a permanência dos enfrentamentos bélicos, assim como as cenas de antropofagia ritual, fazem Vespúcio duvidar do caráter verdadeiramente humano dos ameríndios. Ele compreende muito bem que as guerras deles não são motivadas por um desejo de conquista territorial ou de hege monia política, como acontecia na Europa. Mas não percebe que a guerra é uma instituição social original, necessária para a construção das identidades, e a interpreta, portanto, como o resultado de um modo de vida espontâneo e natural, alheio a todas as normas conhecidas da civilização. Vespúcio inaugura assim um preconceito que vai dominar por muito tempo a reflexão filosófica sobre os “selvagens”: por um lado, os ameríndios manifestam sinais de humanidade, já que possuem usos que lhes são particulares, línguas próprias, regras sociais e técnicas eficazes, mas os extravasamentos de violência a que se entregam parecem, por outro lado, tão inexplicáveis que têm de ser encarados como expressão de uma bestialidade natural. Para os europeus da época, a guerra intestina atesta assim uma a-socialidade absoluta que só pode ser interpretada pela naturalização dos homens que a ela se entregam. Assim, é a anarquia aparente da vida social dos ameríndios, essa gente “sem fé, sem lei e sem rei”, que vai remetê-los por alguns séculos ao estado natural. Conforme o humor dos filósofos que brandem tais argumentos em seus debates, os índios encarnam seja a harmonia de uma Idade de Ouro já desaparecida em outros lugares, sejam os horrores de uma natureza animal e feroz.

Expulsos da cena da humanidade por falta de instituições políticas visíveis, os ameríndios são logo incorporados, porém, à história natural. É o que mostra o Sumario de la historia de las lndias, publicado em 1526 por Gonzalo Fernández de Oviedo. Nessa enorme empresa de descrição da natureza americana, Oviedo oferece um catálogo dos animais e das plantas do Novo Mundo, organizado em torno da velha divisão pliniana entre os animais terrestres, aquáticos e voláteis. Oviedo abre espaço nesse bestiário para os autóctones, considerados uma espécie viva particular à América. Não contesta de forma alguma sua humanidade, mas consideraos como naturalista e os descreve com os mesmos termos e as mesmas categorias que emprega em seu quadro da fauna e da flora. De fato, Oviedo se interessa pelas características físicas dos índios, por sua alimentação, seu hábitat, seus costumes sexuais, mas se revela incapaz de discernir suas instituições sociais. Dessa espécie muito particular de homens, só percebe a parte animal, a única que consegue apreender num universo em que as formas sociológicas e políticas do Ocidente não vigem.

Logo depois da Conquista, e bem antes das grandes sistematizações, como a de Acosta, as duas características distintivas da antropologia naturalista dos ameríndios já parecem firmemente estabelecidas: esses homens representam uma variedade da humanidade totalmente à parte, porque estão fora do social; em compensação, são parte integrante de um mundo natural novo que se deve converter em objeto de conhecimento. Instaura-se assim, desde o fim do século XVI, uma visão muito particular da conexão entre os índios tropicais e seu ambiente: enquanto certos autores europeus se tornavam propagandistas de uma imagem idealizada do Selvagem, que vive dos frutos presenteados por uma natureza generosa, sem ter de trabalhar, certos espíritos menos otimistas ressaltavam, ao contrário, sua existência miserável, sua constituição débil, sua propensão à guerra e ao canibalismo; resumindo, sua submissão demasiado exclusiva a uma natureza tida como ingrata. Ora, os ecos dessa antiga ambivalência se fazem ouvir até hoje. Ao determinismo geográfico ou sociobiológico de certas correntes da etnologia contemporânea, que consideram as culturas indígenas da América do Sul tropical inteiramente determinadas pelas especificidades de seu ambiente ou de seu patrimônio genético, se opõe a moda romântica do New Age, que vê nos índios da Amazônia uma espécie de prato-ecologistas, não mais os “filósofos nus” de Montaigne, mas os precursores do movimento de conservação da natureza. Vamos nos deter alguns instantes sobre essa estranha permanência na história das ideias, de modo a medir melhor o abismo que separa tais estereótipos da maneira como os próprios ameríndios utilizam e representam seu meio.

Fora certas obras – como as de Oviedo, de Thevet ou de Jean de Léry, notadamente -, os relatos dos primeiros cronistas foram na maior parte das vezes ignorados por seus contemporâneos. Mas tiveram ampla difusão no século XVII e sobretudo no XVIII, e encontramos na pena de Buffon, de Cornelius von Paw ou de Voltaire a maioria das informações verídicas ou imaginárias veiculadas pelas descrições do século XVI e completadas pela extensa documentação reunida pelos viajantes naturalistas que visitaram a América do Sul no século XVIII. Com efeito, esse período vai consagrar definitivamente a ideia de que os indígenas das terras baixas da América do Sul devem ser estudados como uma espécie natural, assim como a flora e a fauna tropicais. Uma boa síntese dessa perspectiva é encontrada na obra de Buffon, que lança os fundamentos científicos de uma antropologia naturalista em que o homem aparece como o ponto final do continuum dos seres vivos. De acordo com Buffon, o homem se diferencia do animal pela linguagem, pela reflexão e pela faculdade de invenção, mas essa distinção admite na verdade vários graus: assim, o homem selvagem produz poucas ideias, sendo portanto comparável ao animal, na medida em que “[…] um não tem alma e o outro dela não se serve” (Buffon, 1833-4, t. IX, p. 154). Por não explorar a superioridade natural que a funda, a qualidade do homem pode se perder, acontecimento que se produziu em certas variedades da espécie humana que por regressão voltaram a um estágio próximo da animalidade, como é o caso, segundo Buffon, dos ameríndios. Como explicar esse retorno ao estado natural? Buffon não pode apoiar-se aqui nos excessos climáticos nem nas características biológicas próprias dos autóctones, pois é monogenista e supõe que o povoamento dos ameríndios se fez tardiamente por migrações marítimas: portanto, a selvageria dos ameríndios não é consubstancial à sua espécie. A única explicação dessa suposta incapacidade que teriam os ameríndios para sair de seu estado primitivo seria a pobreza e o apequenamento do meio natural em geral. “Há […] algo contrário à ampliação da natureza viva no Novo Mundo; há obstáculos ao desenvolvimento e talvez à formação dos grandes germes; os mesmos que, pelas suaves influências de outro clima, receberam sua forma plena e sua extensão inteira se apequenam sob o céu avaro e nesta terra vazia, em que o homem, em pequeno número, era esparso, errante” (ibidem, t. XI, p. 370).

Os ameríndios sofrem essa lei da estagnação do mesmo modo que as outras espécies animais, e neles ela adquire a forma de uma quase impotência sexual: “Não se deve procurar mais longe a causa da vida dispersa dos selvagens e de seu distanciamento da sociedade: a mais preciosa centelha do fogo da natureza lhes foi recusada, eles carecem de ardor por suas fêmeas e, por conseguinte, de amor por seus semelhantes” (ibidem, p. 371). Em outras palavras, a suposta a-socialidade dos ameríndios se torna o resultado de uma natureza biológica degenerada em consequência das severas limitações impostas por um ambiente desprovido, ele próprio, de força genésica. Nessa redução da cultura ao biológico, já vemos despontar as teses que toda uma corrente da antropologia norte-americana contemporânea desenvolveu acerca dos índios da Amazônia.

Cabe a Alexander von Humboldt, grande naturalista e notável etnógrafo, o mérito de ter invalidado totalmente a teoria da degenerescência dos ameríndios e a ideia concomitante de que constituem uma espécie uniforme. A crítica de Humboldt às teses de Buffon e de Cornelius von Paw funda-se em suas observações empíricas; percorrendo as Américas, ele observa índios cuja aparência agradável e a indiscutível robustez desmentem as especulações sobre o amesquinhamento da espécie na zona tórrida. Seus estudos minuciosos de antropologia física levam-no a tomar consciência da enorme variedade somática dos ameríndios, a que se acrescentam uma evidente heterogeneidade linguística e importantes variações no nível de desenvolvimento cultural que o deixam ainda mais perplexo por se manifestarem em regiões como a bacia do Orenoco, em que o meio é, de resto, muito homogêneo (Humboldt, 1850, p. 20). Humboldt nota um fenômeno da mesma ordem no domínio botânico e deduz daí, contra a teoria dos climas, que condições ecológicas similares não geram necessariamente espécies animais e vegetais idênticas (ibidem, pp. 220-3).

Esse enfoque possibilista contrasta fortemente com o determinismo de princípio dos filósofos, mas não altera em nada o fato de Humboldt continuar a considerar os ameríndios muito mais como naturalista do que como etnólogo. Claro – e ao contrário de Buffon, que indistintamente considerava os autóctones americanos como selvagens-, Humboldt distingue de forma cuidadosa diferentes graus na evolução cultural do continente. Mas, se sua admiração pelas civilizações Azteca e Inca é perceptível, não hesita, por outro lado, em situar certas tribos da floresta tropical “[…] no nível mais baixo do aviltamento bestial” (ibidem, p. 21). O que interessa a Humboldt nessas formas elementares de humanidade são seus mecanismos de adaptação ao ambiente – a geofagia, as técnicas de colheita, o hábitat arborícola -, que ele compara com os das plantas e dos animais. Quanto mais os homens são primitivos, mais seus métodos de subsistência se aproximam dos procedimentos naturais; exemplo disso são os Warao do delta do Orenoco, cuja alimentação é baseada quase inteiramente na colheita da palmeira Mauritia flexuosa, à maneira, nota o sábio, de certos insetos que só colhem uma porção particular de uma flor (ibidem, p. 13). Com Humboldt, todavia, uma brecha decisiva se abre na espessa cortina de preconceitos que vela os ameríndios; ele resgata uma grande parte dos indígenas do continente do domínio naturalista, só deixando submetido a ele os povos da floresta tropical, condenados para sempre a só existir para os sábios como um capítulo da história natural.

Os trabalhos de Humboldt não exercem, aliás, uma influência imediata. De fato, sabe-se que Hegel vai dar à tese da América impotente sua formulação mais célebre e mais tardia. Em seus cursos sobre a filosofia da história, empreende mostrar a parte de determinação do meio natural sobre o curso da história universal, sendo esta entendida como evolução da consciência de si do Espírito absoluto. O ambiente de cada povo influi, efetivamente, sobre a maneira como ele vai encarnar seu Espírito, porque toda evolução implica que o Espírito se erga contra a natureza. Quando o espírito se submete à natureza, e quando a natureza é imperfeita, resultam daí populações como os ameríndios; de fato, eles são “[…] como crianças inconscientes que vivem o dia de hoje, privados de qualquer reflexão e de qualquer intenção superior” (Hegel, 1965, p. 234). Sua imaturidade psicológica e política é o produto direto da imaturidade geográfica do Novo Continente: “[…] a América sempre se mostrou e ainda se mostra impotente, tanto do ponto de vista físico como do ponto de vista moral […] também entre os animais encontramos a mesma inferioridade que se nota entre os homens” (ibidem, p. 232). Assim, na mesma época em que Alexander von Humboldt começava a publicar suas admiráveis descrições naturalistas e etnográficas do Novo Mundo, Hegel continuava a perpetuar contra toda verossimilhança a tese, popularizada por Buffon, de um amesquinhamento da natureza americana, tese que, de início, provavelmente se baseava nos relatos tendenciosos dos jesuítas do Paraguai (ver Gerbi, 1960).

Antes de encerrar esse breve panorama dos preconceitos naturalistas projetados pelos ocidentais sobre os índios da Amazônia, fazem-se necessárias algumas palavras sobre o período contemporâneo. É sabido que no século XIX a Alemanha se tornaria um importante foco de estudos americanistas. Sem dúvida por não terem um império colonial próprio, os naturalistas alemães voltam-se para a América do Sul, em particular para a zona tropical. Influenciados pela filosofia das Luzes, continuadores dos ideólogos franceses, combinam o rigor das observações empíricas com uma visão romântica da natureza primordial, simbolizada pela Urwald do Amazonas e do Orenoco (ver Taylor, 1984). O corpus etnográfico que vão acumular no curso de suas expedições vai constituir a principal fonte de referência sobre os índios da Amazônia até o início do século XX. Mas, a despeito dessa acumulação de conhecimentos factuais, os índios das florestas continuam a ser vistos como “povos naturais”, que ainda não se desprenderam de um ambiente de que são como que apêndices impotentes. Vou dar apenas dois exemplos.

Cerca de quarenta anos depois de Hegel ter desenvolvido sua tese sobre a debilidade do homem americano e de Humboldt haver introduzido uma perspectiva possibilista em sua análise da adaptação dos ameríndios a seu meio, Adolf Bastian vai fazer uma síntese dos dois pontos de vista. Como Hegel, ele pensa que cada povo encarna uma manifestação do Espírito em função do meio geográfico em que evolui. Mas integra também as aquisições da antropologia humboldtiana, quando procura mostrar que condições ecológicas idênticas não geram necessariamente respostas adaptativas similares. Bastian é o criador da noção de área cultural (Kulturlander), uma ferramenta tipológica que vai adquirir grande importância na antropologia moderna e que ele vai aplicar à análise das variações culturais dos povos ameríndios, de modo a distinguir um pequeno número de áreas culturais diferenciadas sob o efeito dos meios naturais. Nesse sentido, Bastian é um precursor do projeto levado a cabo por Julian Steward nos anos 40 de nosso século com o fim de estabelecer uma classificação das áreas culturais da América do Sul de acordo com parâmetros ecológicos.

No entanto, os difusionistas se apegam igualmente à incidência dos fatores ambientais sobre o desenvolvimento cultural. Assim, Alfred Vierkandt ordena as sociedades em duas categorias, segundo as quais são capazes ou não de invenção autônoma: os Kulturvölker têm a faculdade de se desenvolver por si mesmos, ao passo que os Naturvölker sofrem passivamente a difusão das características culturais. Para Vierkandt, os índios da Amazônia representam o protótipo dos povos naturais, completamente submetidos às imposições do ambiente e incapazes por si mesmos de progresso tecnológico. Vê-se que, independentemente das inflexões teóricas e dos progressos do conhecimento etnográfico, o velho preconceito naturalista continua a se perpetuar ao longo do século XIX: vestígio dos albores da humanidade ou selvagem congênito, o índio das florestas continua a ser percebido como um prolongamento que pouco se diferencia do meio em que evolui, como “um animal de primeira linha”, para retomar uma fórmula de Buffon.

Característico da antropologia alemã no século XIX, o enfoque naturalista dos índios da Amazônia se torna no século seguinte apanágio da escola americana de ecologia cultural. Pode-se sem dúvida considerer Friedrich Ratzel, o fundador da antropogeografia, o pivô dessa transição. De fato, o difusionismo de Ratzel é temperado por sua teoria das áreas marginais, zonas geográficas que ficaram fora das grandes correntes de circulação das ideias e dos objetos, nas quais o rigor das condições naturais impede qualquer evolução endógena da civilização. A Amazônia ocupa lugar de destaque entre essas áreas marginais, como um isolat em que constrangimentos ecológicos insuperáveis mantêm os autóctones num nível de desenvolvimento embrionário.

Ora, a despeito de sua crítica ao difusionismo, Julian Steward adota uma perspectiva análoga no monumental Handbook of South American Indians, de cuja edição se encarrega entre 1946 e 1949. Procurando estabelecer uma tipologia evolucionista das culturas sul-americanas em função de seus hábitats, Steward utiliza as noções de áreas culturais e de área marginal, diretamente filiadas à tradição alemã e reformuladas por difusionistas americanos como Kroeber e Lowie. Mas, onde os difusionistas viam uma correspondência ou uma compatibilidade entre um tipo de ambiente e um nível de desenvolvimento cultural, Steward postula uma relação de determinação necessária. É assim, por exemplo, que ele tenta explicar as diferenças na evolução sociocultural dos Andes e da Amazônia levando em conta as variações nas potencialidades agrícolas de um e de outro hábitat. A seu ver, a ecologia da bacia Amazônica introduz um limite insuperável no nível do desenvolvimento que os autóctones podem alcançar, ao contrário da região andina, onde terras mais férteis permitiram uma sedentarização e uma concentração do hábitat humano, condições constitutivas da emergência do Estado. É com base em postulados desse tipo que são fundadas todas as análises antropológicas contemporâneas que interpretam as características socioculturais das sociedades amazônicas como respostas adaptativas aos constrangimentos do ecossistema da floresta tropical. Assim, múltiplas tentativas foram feitas para mostrar como instituições tão diferentes quanto a guerra, a poligamia, os tabus alimentares ou as classes etárias eram produtos da adaptação a uma raridade de proteínas animais na bacia Amazônica. Pretendeu-se, assim, ver nos conflitos internos de certas sociedades ameríndias um dispositivo comportamental que favorecia a maximização do patrimônio genético dos grandes guerreiros. Conquanto formuladas agora na linguagem científica da ecologia ou da biologia, tais proposições lembram muito, como se vê, os antiquíssimos preconceitos que faziam dos ameríndios apêndices impotentes de um ambiente ingrato ou joguetes inconscientes de uma natureza animal. Ora, a realidade é muito diferente, porque o ambiente que os ameríndios percebem e utilizam tem muito poucas relações com esse paradigma da natureza imperiosa ou benevolente que costumamos ver na floresta tropical.

Comecemos por recordar que a fisionomia atual da floresta amazônica é em parte resultado de vários milênios de ocupação humana, que a transformaram profundamente; produzida pelos ameríndios ao cabo de uma longa elaboração cultural, essa natureza só é virgem na imaginação ocidental. Esse fenômeno, por muito tempo desconhecido, de antropização indireta do ecossistema florestal foi muito bem descrito nos estudos que William Balée consagrou à ecologia histórica dos índios Kaapor do Maranhão (Balée, 1994). Graças a um minucioso trabalho de identificação e de contagem, ele pôde estabelecer que as plantações abandonadas havia mais de quarenta anos eram duas vezes mais ricas em espécies silvestres úteis do que as porções vizinhas de floresta primária, da qual no entanto não se distinguiam à primeira vista. Os Kaapor, de fato, plantam numerosas espécies não domesticadas que depois prosperam nos terrenos aban donados em detrimento das espécies domesticadas, que desaparecem rapidamente com a falta de cuidados. Os campos de cultivo em atividade ou abandonados há pouco tempo também atraem animais predadores que, aí defecando, disseminam as sementes das plantas silvestres de que se alimentam. Ao fio das gerações e do ciclo de renovação dos campos de cultivo, uma porção não desprezível da floresta se transforma num pomar cujo caráter artificial os Kaapor reconhecem, sem que, entretanto, esse efeito tenha sido buscado. Os índios medem, assim, muito bem a incidência dos antigos terrenos de cultivo sobre a caça, sendo as zonas de forte concentração de plantas silvestres comestíveis as mais frequentadas pelos animais, o que influi a longo prazo na demografia e na distribuição da caça. Estima-se que, na atualidade, cerca de 12% das florestas da Amazônia brasileira sejam antropogênicos, mas é bem provável que a proporção tenha sido muito mais elevada antes do desflorestamento maciço que há décadas afeta a região. Certos especialistas chegam até a afirmar que no momento da Conquista já não existia floresta climática, isto é, que nunca tivesse sido afetada pela presença humana (Denevan, 1992). Nessa região, portanto, a natureza é na verdade muito pouco natural, podendo ao contrário ser considerada o produto cultural de uma manipulação muito antiga da fauna e da flora. Embora sejam invisíveis para um observador desprevenido, as consequências dessa antropização estão longe de ser desprezíveis, notadamente no que diz respeito à taxa de biodiversidade, a cujo respeito foi possível mostrar que era mais elevada nas porções de floresta antropogênicas do que nas porções de floresta não modificadas pelo homem.

Lembremos igualmente, como se ainda fosse necessário, que as populações indígenas da Amazônia e das Guianas souberam pôr em prática estratégias de uso dos recursos que, se transformavam de maneira duradoura seu ambiente natural, não subvertiam com isso seus princípios de funcionamento nem punham em risco suas condições de reprodução. Os estudos de ecologia e de etnoecologia realizados nos últimos trinta anos mostraram ao mesmo tempo a fragilidade dos diversos ecossistemas amazônicos e a diversidade e extensão dos saberes e das técnicas desenvolvidos pelos ameríndios para tirar partido de seu ambiente e adaptá-lo às suas necessidades. Com efeito, sabe-se que os solos da região amazônica são pobres, ácidos e frágeis, com exceção dos grandes vales aluviais do Amazonas e de seus principais afluentes. Portanto, a floresta só pode se perpetuar graças ao depósito de matéria orgânica que ela mesma produz ao se decompor: na Amazônia, uma árvore jovem só pode crescer sobre o cadáver de uma árvore morta.

Baixas densidades de população, combinadas com técnicas sofisticadas de cultura e de caça seletiva, permitiram que os ameríndios explorassem esse ecossistema frágil por milhares de anos sem comprometer o equilíbrio. Porque a domesticação das plantas nas terras baixas da América do Sul é antiquíssima, e muitos compatriotas meus, que ainda acreditam que os índios da região vivem da colheita, ficam surpresos quando lhes digo que o início do neolítico na França e na Amazônia são quase contemporâneos. De fato, estima-se que a batata-doce, a mandioca e o inhame americano tenham sido domesticados há cerca de 5 mil anos, e a taioba Xanthosoma sem dúvida bem mais cedo. No total, várias dezenas de espécies foram domesticadas na América do Sul tropical, algumas das quais, como a mandioca, comportam centenas de variedades. Acrescentemos que a difusão precoce dessas plantas cultivadas na África, no Sudeste da Ásia e na Oceania transformaram profundamente os regimes alimentares e os ecossistemas de subsistência dessas regiões. Assim, a introdução da batata-doce na Nova Guiné provocou, no século XVIII, uma revolução profunda nos sistemas econômicos, ao permitir a intensificação da criação de porcos e o desenvolvimento dos intercâmbios cerimoniais, que constituem o sinal distintivo das sociedades das terras altas da Papuásia.

A essa experimentação biotecnológica constante sobre o vivente somou-se a aplicação de técnicas agronômicas sofisticadas. A mais simples, em aparência, a cultura itinerante sobre queimadas, é também a mais adequada à fragilidade dos solos tropicais, na medida em que permite tirar proveito da fina camada de húmus beneficiada pelas cinzas das queimadas. Além disso, a plantação em policultura, na qual são misturadas plantas de diferentes alturas, protege por algum tempo os solos dos efeitos destruidores do clima, de maneira análoga aos diferentes estratos arborescentes da floresta. Ao cabo de três ou quatro anos, todavia, as fortes chuvas e a radiação solar eliminam todos os elementos nutritivos do solo e a plantação é abandonada. A floresta coloniza a clareira e se reconstitui naturalmente ao cabo de uns trinta anos. Ao contrário dessa técnica tradicional perfeitamente adequada à ecologia da floresta tropical, o desmatamento maciço empreendido para abrir plantações e pastagens não permite que a floresta se regenere. O solo se degrada rapidamente por erosão e laterização, tornando-se impróprio a qualquer cultura permanente. A frente de colonização desloca-se então mais para a frente, deixando atrás de si uma savana estéril. Mais de 7 milhões de hectares de floresta desaparecem assim a cada ano na Amazônia.

Lembremos sobretudo que os índios da Amazônia, longe de serem joguetes ou protetores de uma natureza estranha, souberam integrar o ambiente à sua vida social, de tal modo que os humanos e os não-humanos são tratados em pé de igualdade. De fato, a maioria das cosmologias da região não fazem distinções nítidas entre a natureza e a sociedade, mas conferem a muitas plantas e animais os principais atributos da humanidade. Em outras palavras, e ao contrário do dualismo mais ou menos estanque que, em nossa visão moderna do mundo, governa a distribuição dos humanos e dos não-humanos em dois domínios ontologicamente distintos, as cosmologias amazônicas exibem uma escala de seres em que as diferenças entre os homens, as plantas e os animais são de grau, não de natureza.

Darei uma ilustração a partir da minha experiência etnográfica entre os Jivaro Achuari da Amazônia equatoriana. Os Achuari dizem que a maioria das plantas e dos animais têm uma alma (wakan) similar à dos humanos, uma faculdade que os insere entre as “pessoas” (aents) na medida em que lhes assegura a consciência reflexiva e a intencionalidade, que os torna capazes de sentir emoções e permite que troquem mensagens com seus pares e com os membros de outras espécies, entre elas os homens. Essa comunicação extralinguística torna-se possível pela aptidão atribuída ao wakan de transmitir, sem mediação sonora, pensamentos e desejos para a alma de um destinatário, modificando assim, às vezes sem que este saiba, seu estado de espírito e seu comportamento. Os humanos dispõem para tanto de uma vasta gama de encantamentos mágicos, os anent, graças aos quais podem agir à distância sobre seus congêneres, mas também sobre as plantas e os animais, assim como sobre os espíritos e sobre certos artefatos.

No espírito dos Achuari, a habilidade técnica é indissociável da capacidade de criar um meio intersubjetivo em que as relações regradas de uma pessoa a outra se desenvolvem: entre o caçador, os animais e os espíritos senhores da caça, e entre as mulheres, as plantas cultivadàs e a personagem mítica que gerou as espécies cultivadas e até hoje continua a garantir sua vitalidade. Longe de se reduzir a prosaicos lugares provedores de comida, a floresta e os campos de cultivo são teatros de uma sociabilidade em que, dia após dia, os índios vêm agradar seres que somente a diversidade da aparência e a ausência da linguagem distinguem na verdade dos humanos. Todavia, as formas dessa sociabilidade diferem conforme se trate de plantas ou de animais. Donas das plantações a que consagram grande parte de seu tempo, as mulheres se dirigem às plantas cultivadas como a uma criança, que convém conduzir com mão firme à maturidade. Essa relação maternal toma como modelo explícito a tutela que Nukui, o espírito das plantações, exerce sobre as plantas que criou outrora. Por sua vez, os homens consideram a caça como um cunhado, relação instável e difícil, que requer o respeito mútuo e a circunspecção. Os parentes por aliança formam, de fato, a base das alianças políticas, mas também são os adversários mais imediatos nas guerras de vingança. A oposição entre con sanguíneos e afins – as duas categorias exclusivas que governam a clas sificação social dos Achuari e orientam suas relações com o Outro – repete-se assim nos comportamentos prescritos para com os não-humanos. Parentes pelo sangue no caso das mulheres, parentes por aliança no dos homens, os seres da natureza se tornam parceiros sociais plenos.

Mas será que se pode falar aqui de seres da natureza, a não ser por comodidade de linguagem? Existe um lugar para a natureza numa cosmo logia que confere aos animais e às plantas a maioria dos atributos da humanidade? Pode-se, de resto, falar de espaço selvagem a respeito dessa floresta quase não aflorada pelos Achuari e que, no entanto, eles descrevem como um imenso jardim cultivado com cuidado por um espírito? O que chamamos natureza não é aqui um objeto a socializar, mas o sujeito de uma relação social; prolongando o mundo familiar, ela é verdadeiramente doméstica até em seus redutos mais inacessíveis (ver Descola, 1986).

Isso significa que os Achuari não reconheceriam nenhuma entidade natural no meio que ocupam? Não exatamente. O grande continuum social que mistura humanos e não-humanos não é inteiramente inclusivo e alguns elementos do ambiente não se comunicam com ninguém, por falta de uma alma própria. A maior parte dos insetos e dos peixes, as ervas, os musgos e as samambaias, os seixos e os rios permanecem exteriores tanto à esfera social como ao jogo da intersubjetividade; em sua existência maquinal e genérica, corresponderiam talvez ao que chamamos de “natureza”. Por acaso seria legítimo, em vista disso, continuar a empregar essa noção para designar um segmento do mundo que, para os Achuari, é incomparavelmente mais restrito do que o que nós mesmos assim entendemos? Além do mais, no pensamento moderno, a natureza só tem sentido em oposição às obras humanas, quer chamemos estas de cultura, sociedade ou história, na linguagem da filosofia e das ciências sociais, quer de espaço antropizado, mediação técnica ou ecúmena, numa terminologia mais especializada. Uma cosmologia em que a maioria das plantas e dos animais é incluída numa comunidade de pessoas que compartilham, totalmente ou em parte, as faculdades, os comportamentos e os códigos morais comumente atribuídos aos homens, não corresponde de forma alguma aos critérios de tal oposição.

Os Achuari não constituem um caso excepcional no mundo amazônico. Algumas centenas de quilômetros mais ao norte, por exemplo, na floresta da Colômbia oriental, os índios Macuna apresentam uma versão ainda mais radical de uma teoria do mundo decididamente não dualista (Árhem, 1996). Como os Achuari, os Macuna categorizam os humanos, as plantas e os animais como “pessoas” (masa), cujos principais atributos – a mortalidade, a vida social e cerimonial, a intencionalidade, o conhecimento – são em tudo idênticos. As distinções internas a essa comunidade do vivente repousam nas características particulares que a origem mítica, os regimes alimentares e os modos de reprodução conferem a cada classe de ser, e não na maior ou menor proximidade dessas classes com relação a um paradigma de plenitude definido pelos Macuna. A interação entre os animais e os humanos é igualmente concebida sob a forma de uma relação de afinidade, conquanto ligeiramente diferente do modelo achuari, já que o caçador trata a caça como cônjuge em potencial, e não como um cunhado. As categorizações ontológicas são todavia muito mais plásticas do que entre os Achuari, devido à faculdade de metamorfose reconhecida a todos: os humanos podem se tornar animais, os animais, se transformar em humanos, e o animal de uma espécie, se converter em animal de outra espécie. A ascendência taxionômica sobre o real é, portanto, sempre relativa e con textual, pois a troca permanente das aparências não possibilita a atribuição de identidades estáveis aos componentes vivos do meio.

A sociabilidade imputada aos não-humanos pelos Macuna é também mais rica e complexa do que aquela que os Achuari lhes reconhecem. Tal como os índios, os animais vivem em comunidades, em suas casas enormes que a tradição situa no coração de certas corredeiras ou dentro de morros precisamente localizados; eles cultivam mandioca, movimentam se em canoas e se consagram, conduzidos por seus chefes, a rituais tão elaborados quanto os dos Macuna. A forma visível dos animais não passa, na verdade, de um disfarce. Quando retornam para suas casas, despojam-se de sua aparência, põem vestimentas de plumas e ornamentos cerimoniais e voltam a ser ostensivamente as “pessoas” que não haviam deixado de ser enquanto nadavam nos rios e corriam pela floresta.

Diversas cosmologias análogas à dos Achuari e à dos Macuna foram descritas nas regiões florestais das terras baixas da América do Sul (por exemplo, Brown, 1986; Grenand, 1980; Jara, 1991; Reichel-Dolmatoff,1976; Van der Hammen, 1992; Viveiros de Castro, 1986; Weiss, 1975). A despeito das diferenças em sua organização interna, todas essas cosmologias têm como característica comum não fazer distinções ontológicas taxativas entre os humanos, de um lado, e um bom número de espécies animais e vegetais, de outro. A maioria das entidades que povoam o mundo são ligadas umas às outras num vasto continuum animado por princípios unitários e governado por um regime idêntico de sociabilidade. As relações entre humanos e não-humanos aparecem, de fato, como relações entre uma comunidade e outra, em parte definidas pelos constrangimentos utilitários da subsistência, mas que podem assumir uma forma particular a cada tribo e servir assim para diferenciá-las. É o que mostra claramente o exemplo dos Jucuna, vizinhos dos Macuna na Amazônia colombiana (Van der Hammen, op. cit.). Como as outras tribos do Noroeste amazônico, os Jucuna desenvolveram associações preferenciais com certas espécies animais e certas variedades de plantas cultivadas que lhes servem de alimentos privilegiados, porque sua origem mítica e, no caso dos animais, suas casas comuns se situam nos limites do território tribal. Cabe aos xamãs locais a tarefa de supervisionar a regeneração ritual dessas espécies, que em compensação são proibidas pelas tribos dos Tukano, que rodeiam os Jucuna. Assim, incumbe a cada grupo tribal a responsabilidade de zelar sobre as populações específicas de plantas e de animais das quais ele se alimenta, e essa divisão de tarefas contribui para definir a identidade local e o sistema das relações interétnicas em função da relação com conjuntos diferenciados de não-humanos.

Se a sociabilidade dos homens e a sociabilidade das plantas e dos animais apresentam analogias, é porque suas formas respectivas de organização coletiva se revelam intercambiáveis: de fato, muitos povos da Amazônia representam as relações entre os humanos com base no modelo das relações simbióticas entre espécies observadas no âmbito de seu ecossistema, ao passo que descrevem as inter-relações entre as plantas e os animais servindo-se dos processos e das categorias explícitas que estruturam sua própria vida social. Os Secoya, por exemplo, crêem que os índios mortos percebem os viventes sob dois avatares contrastantes: eles vêem os homens como um passarinho, semelhante à oropendola, e as mulheres como papagaias amazonas (Belaunde, 1994). Organizando a construção social e simbólica das identidades sexuais, essa dicotomia se apoia em características etológicas e morfológicas próprias das duas espécies, cuja função “totêmica”, no sentido lato do termo, se torna patente desse modo, já que são descontinuidades naturais entre não-humanos que permitem sobredeterminar uma descontinuidade natural entre humanos, dando-lhe ao mesmo tempo uma significação social. Já os Iaguá da Amazônia peruana elaboraram um sistema de categorização das plantas e dos animais baseado nas relações entre espécies, conforme sejam definidas por diversos graus de parentesco consanguíneo, pela amizade ou pela hostilidade (Chaumeil & Chaumeil, 1992). O uso de categorias sociais para definir relações de proximidade, simbiose ou competição entre espécies naturais é ainda mais interessante aqui por estender-se largamente ao reino vegetal. Assim, as grandes árvores mantêm uma relação de hostilidade: elas se provocam em duelos fratricidas para ver qual se vergará primeiro; é igualmente uma relação de hostilidade a que prevalece entre a mandioca-amarga e a mandioca-doce, a primeira tentando contaminar a segunda por sua toxicidade. As palmeiras, em compensação, mantêm rela ções mais pacíficas, de tipo avuncular ou de primos, conforme o grau de semelhança das espécies.

A diversidade dos índices classificatórios empregados pelos ameríndios para dar conta das relações entre os organismos indica suficientemente a plasticidade das fronteiras na taxionomia do vivente. Porque as características atribuídas às entidades que povoam o cosmos dependem menos de uma definição prévia de sua essência do que das posições relativas que ocupam umas em relação às outras em função das exigências de seu metabolismo, notadamente de seu regime alimentar. A identidade dos humanos – vivos e mortos – com as plantas, os animais e os espíritos é inteiramente relacional, e portanto sujeita a mutações ou a metamorfoses de acordo com os pontos de vista adotados. Com efeito, cada espécie, em sentido amplo, apreenderia as outras espécies em função de seus critérios próprios, de sorte que um caçador, em condições normais, não notará que sua presa animal se vê como um ser humano, nem que vê a ele como uma onça. Do mesmo modo, a onça vê o sangue que lambe como garapa de mandioca; o macaco-aranha, que o japim imagina caçar, para o homem não passa de um gafanhoto, e as antas, que a cobra pensa ser sua presa preferida na realidade são seres humanos. Graças à troca permanente das aparências gerada por esses deslocamentos de perspectiva, os animais se consideram de boa-fé dotados dos mesmos atributos culturais dos humanos: os tufos de penas de sua cabeça são para eles cocares, sua penugem, uma tanga, seu bico, uma lança, e suas unhas, facas. O extremo relativismo perceptivo das cosmologias amazônicas gera uma ontologia, batizada de “perspectivismo” por Eduardo Viveiros de Castro 0996), que nega aos humanos o ponto de vista de Sirius, afirmando que múltiplas visões do mundo podem coabitar sem se contradizer. Ao contrário do dualismo moderno, que ostenta uma multiplicidade de diferenças culturais sobre o fundo de uma natureza imutável, o pensamento ameríndio enxerga o cosmos inteiro como animado por um mesmo regime cultural, diversificado não tanto por naturezas heterogêneas, mas antes por maneiras diferentes de uns apreenderem os outros. O referente comum das entidades que habitam o mundo não é, portanto, o homem como espécie, mas a humanidade como condição.

O que concluir dessas considerações sobre a filosofia ameríndia do ambiente? Primeiro, que é ilusório pensar que poderíamos nos inspirar diretamente nas concepções da relação com os não-humanos ainda em vigor em certas partes da Amazônia para modificar nossa relação com a natureza. Porque nenhuma experiência histórica é transponível, e mal se vê como, no âmbito de um pensamento dualista como é o nosso há vários séculos, poderíamos voltar a concepções que fazem das plantas e dos animais pessoas dotadas de uma alma e de uma vida social. Os partidários mais decididos da deep ecology reivindicam, é verdade, a outorga dos direitos intrínsecos aos animais, às plantas e a certos elementos da paisagem, mas nenhum deles se dispõe a admitir que as onças, os caititus ou os macacos levam uma vida dupla sem que os homens saibam e que por trás da ilusão de seu avatar animal se escondem seres dotados de uma cultura idêntica à nossa. Fazendo da natureza um objeto frágil – cujo controle não seria mais assegurado pelo capitalismo predador de outrora, e sim pelas técnicas racionais de gestão dos recursos, próprias do gerenciamento moderno -, os movimentos de proteção da natureza não questionam de modo algum as fundações da cosmologia ocidental, mas antes contribuem para reforçar o dualismo ontológico típico da ideologia moderna. A natureza passa a ser uma fonte rara cujo custo de renovação deve ser internalizado nos cálculos econômicos; quanto à diminuição da biodiversidade, ela parece ser pelo menos tanto uma ameaça de empobrecimento dos estoques genéticos de cultivares ou de espécies selvagens capazes de serem úteis ao homem como um empobrecimento da diversidade do mundo.

A ideia de proteção do ambiente traz em si, porém, sem dúvida de forma não intencional, os fermentos de uma dissolução do dualismo que por tanto tempo marcou nossa visão de mundo. Porque a sobrevivência de um conjunto sempre crescente de não-humanos, agora mais bem protegidos dos prejuízos causados pela ação humana, se toma cada vez mais subordinada a essa mesma ação humana, isto é, aos dispositivos de proteção e de prevenção elaborados no âmbito de convenções nacionais e internacionais. Em outras palavras, o dualismo entre natureza e sociedade não é mais estanque, na medida em que as condições de existência do panda, da baleia-azul, da camada de ozônio ou da Antártida em breve serão tão “naturais” quanto são hoje as condições de existência das espécies selvagens nos zoológicos ou dos genes nos bancos de dados genéticos. A maneira paternalista como encaramos a proteção da natureza provavelmente se modificará em igual medida e, com ela, a ideia de que o governo dos homens e o governo das coisas pertencem a esferas separadas.

Outra conclusão, mais imediata, concerne ao papel que as populações tribais devem desempenhar na preservação do ambiente. Trata-se não apenas de não mais excluir esses povos das políticas e dos projetos de preservação relativos a seus territórios, como se fez por tanto tempo, mas também, e sobretudo, de escutar o que eles têm a nos dizer de seu meio natural e de respeitar suas opções de modo de vida no presente e no futuro. Entre a predação cega que se abate sobre numerosas regiões da Amazônia, a utopia mística de certas correntes “New Age” e a ecologia gerencial dos movimentos de proteção do ambiente, outra voz deve se fazer ouvir. A de Davi, por exemplo, esse xamã Yanomami que me precedeu aqui mesmo há algumas semanas, quando declarou: “Nós não utilizamos o termo ‘meio ambiente’, é uma expressão de outra gente, é uma expressão dos brancos. O que vocês chamam de ‘meio ambiente’ é o que sobra do que vocês destruíram” (citado por Albert, 1993, p. 366). Observação de terrível lucidez, que desnuda a boa e a má consciência do Ocidente em sua relação com uma natureza-objeto constantemente dividida entre um discurso conservacionista e um discurso produtivista. Uma observação que seria um equívoco desprezar, porque traz em si a crítica de nossas mais caras ilusões, e ao mesmo tempo um apelo a ouvir melhor a abundante diversidade do mundo e dos que o relatam.

Tradução de Eduardo Brandão

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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