2010

A razão niilista

por Antonio Cicero

Resumo

Em A vontade de poder Nietzsche pergunta: “Que significa o niilismo?”. E responde: “Que os valores supremos estão perdendo o seu valor”. Em A gaia ciência ele descreve o niilismo como a desconfiança e a negação dos valores supremos. Tal etapa constituiria uma segunda etapa do niilismo. A primeira etapa – “niilismo em si” – consiste na depreciação da vida real em nome da postulação fictícia e da valorização de um mundo suprassensível superior a ela.

Para Nietzsche, não há metafísica que não julgue e não deprecie o mundo sensível em nome de um mundo suprassensível. Nesse sentido, a metafísica lhe aparece como essencialmente niilista.

E como se chega à segunda etapa, que podemos chamar de “niilismo para si”? Em A vontade do poder, Nietzsche especula que a moralidade cristã acaba por se voltar contra o próprio Deus cristão. É que a valorização da veracidade, que faz parte dessa moral, alimenta uma vontade da verdade que acaba por se revoltar contra a falsidade e o caráter fictício das interpretações cristãs do mundo e da sua história. A partir disso, negam-se todos os valores supremos. É a morte de Deus. Quando se diz que Deus está morto, sugere-se não somente o fim do império do Deus das religiões, mas de todo elemento transcendente. Não há entidade superior. Nada é realmente verdadeiro, nada realmente bom.

Além desse modo passivo de niilismo para si, que representa decadência e constitui um retrocesso do poder do espírito, há outro niilismo para si. Trata-se do que Nietzsche chama de “niilismo ativo”, que representa o aumento do poder do espírito. “Antes desejar o nada do que nada desejar”, diz Nietzsche.

Para Heidegger, Nietzsche, embora tendo reconhecido o niilismo como um movimento da história ocidental moderna, não foi capaz de pensar essencialmente sobre o nada, não foi sequer capaz de levantar essa questão, que ele não superou a metafísica, de modo que o seu conceito de niilismo acabou sendo, ele mesmo, segundo Heidegger, niilista.

É certo que toda construção intelectual faz uso da razão; porém esta não se reduz a nenhuma das suas construções intelectuais; a nenhum dos entendimentos que torna possíveis. Ela é sempre crítica também em relação a eles. A razão crítica representa, portanto, a defesa do direito de ser das mais diversas construções, formas, ideias e poemas. É esse o sentido da afirmação moderna do caráter em primeiro lugar crítico – logo, negativo – da razão. É para tanto que ela exerce o papel daquilo que Nietzsche chamava de “niilismo ativo”, e que ele próprio julgava, em determinado momento, representar. Esse niilismo é sempre imprescindível à filosofia teórica, de modo que não devemos, seguir Nietzsche quando este fala de havê-lo superado. Como pensa Heidegger, a grande tradição tratadística basicamente ignora o que ele chama de “ser”. É certo que assim seja. O ser, no sentido heideggeriano, não é assunto da filosofia ou da lógica, mas da poesia e da arte. O trabalho da filosofia não é tratar do ser, mas mostrar a necessidade de se salvaguardar a abertura do espaço em que a arte e a filosofia – as produções do espírito – livremente se dediquem ao ser.


Não é possível falar de niilismo sem lembrar, em primeiro lugar, Nietzsche, que tantas páginas impressionantes dedicou a este assunto. “Que significa o niilismo?”, pergunta Nietzsche em A vontade de poder. E responde: “Que os valores supremos estão perdendo o seu valor”[1]. Assim também, em A gaia ciência, por exemplo, ele descreve o niilismo como

a desconfiança de que há uma oposição entre o mundo em que até há pouco estávamos em casa com nossas venerações – em virtude das quais talvez aguentássemos a vida – e outro mundo em que somos nós mesmos: uma desconfiança inexorável, radical, profundíssima sobre nós mesmos, que está continuamente submetendo a nós, europeus, de modo cada vez mais incômodo ao seu poder e que facilmente poderia colocar a próxima geração ante a terrível alternativa: ou vocês abolem as suas venerações ou – a si próprios! A segunda opção seria o niilismo – mas não seria a primeira também niilismo?[2]

Na verdade, o niilismo nesse sentido, isto é, a desconfiança e a negação dos valores supremos, constitui uma segunda etapa do niilismo. A primeira etapa – chamemo-la de “niilismo em si” – consiste na depreciação da vida real em nome da postulação fictícia e da valorização de um mundo suprassensível superior a ela. É o que faz a metafísica platônica, por exemplo. Platão, como se sabe, postula que o que nós chamamos de «mundo real”, o mundo que nos é dado pelos sentidos e no qual agimos, não passa de um simulacro do mundo verdadeiramente real, que é o mundo das ideias eternas universais e imutáveis e, em primeiro lugar, da ideia do bem: do bem em si. “O pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje”, diz Nietzsche, “foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito do bem em si”[3]. Por quê? Porque ele desvaloriza o mundo real. O mundo sublunar em que vivemos é tanto menos dotado de realidade e valor, quanto mais se afaste desse mundo ideal.

Para Nietzsche, de uma maneira ou de outra, é assim que opera toda metafísica. Não há, segundo ele, metafísica que não julgue e não deprecie o mundo sensível em nome de um mundo suprassensível. Nesse sentido, a metafísica lhe aparece como essencialmente niilista.

Pois bem, segundo Nietzsche, o Cristianismo é um platonismo vulgar, um “platonismo para o ‘povo”‘, como diz[4]. Trata-se, portanto, de niilismo para o povo. “O conceito cristão de Deus” – afirma em O anticristo, cujo subtítulo é “maldição ao cristianismo”:

Deus como deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foram alcançados na Terra; talvez represente o nadir na evolução descendente dos tipos divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Deus como fórmula para toda difamação do “aquém”, para toda mentira sobre o “além”! Em Deus o nada divinizado, a vontade de nada canonizada! […][5].

O nada divinizado: que maior degradação do mundo real pode ser concebida? Tal é a primeira etapa do niilismo, na Europa.

E como se chega à segunda etapa, que podemos chamar de “niilismo para si”, isto é, o niilismo que já se considera como tal? Em A vontade do poder, Nietzsche especula que a moralidade cristã acaba por se voltar contra o próprio Deus cristão. É que a valorização da veracidade, que faz parte dessa moral, alimenta uma vontade da verdade que acaba por se revoltar contra a falsidade e o caráter fictício das interpretações cristãs do mundo e da sua história. Descobre-se que não se tem o menor direito de pressupor um ser transcendente ou um em si das coisas, que fosse ou divino ou a encarnação da moralidade. A reação contra a ficção de que “Deus é a verdade” é: “Tudo é falso”.

A partir disso, negam-se todos os valores supremos. É a morte de Deus. Quando se diz que Deus está morto, sugere-se não somente o fim do império do Deus das religiões, mas de todo elemento transcendente. O domínio do transcendente se torna nulo e vazio. O niilista nega Deus, o bem, a verdade, a beleza. Não há entidade superior. Nada é realmente verdadeiro, nada realmente bom. Se antes a vida real era desvalorizada em nome dos valores supremos, agora os próprios valores supremos são desvalorizados, sem que se tenha reabilitado a vida real. Desmente-se o mundo metafísico, sem se crer no mundo físico. Todos os antigos fins do ser se tornam supérfluos. Nega-se qualquer finalidade ou unidade ao mundo. A vida não tem propósito. Nada vale a pena. No limite, dá-se uma negação de toda vontade, o taedium vitae. A vida é inteiramente depreciada.

Mas é preciso dizer que, além desse modo passivo de niilismo para si, que representa decadência e constitui um retrocesso do poder do espírito, há outro niilismo para si. Trata-se do que Nietzsche chama de “niilismo ativo”, que representa o aumento do poder do espírito. Ele afirma que “seu máximo de força relativa, o (espírito) alcança como força violenta de destruição: como niilismo ativo”[6]“Antes desejar o nada do que nada desejar”, diz Nietzsche. É sem dúvida nesse sentido que ele classifica a si próprio como o primeiro niilista europeu perfeito, isto é, em suas palavras, “o primeiro niilista europeu que já viveu em si o niilismo até o fim, já o deixou atrás de si e o superou”. Para Nietzsche, o niilismo ativo e perfeito era um passo necessário, lógica e psicologicamente. para o advento daquilo que o superaria, que seria a transvaloração de todos os valores. Assim, ele acreditava que o triunfo do niilismo era inevitável no momento em que escrevia, pois os próprios valores correntes chegariam no niilismo à sua conclusão lógica. Era necessário experimentar o niilismo para se poder compreender o verdadeiro valor desses “valores”. Mais cedo ou mais tarde, dizia ele, precisaremos de novos valores”[7].

Sabemos que, para Nietzsche, esses valores deveriam surgir a partir da afirmação da vontade de poder, que se manifesta também na afirmação do eterno retorno. Não vou aqui entrar nessa questão porque quero me ater ao niilismo. O nada já é um assunto vasto demais. Adianto apenas que, neste ponto, parece-me definitiva a crítica de Heidegger que se encontra no volume “O niilismo europeu”, da obra que dedicou ao autor de Assim falou Zaratustra. Segundo ela, longe de superar a metafísica moderna da subjetividade, inaugurada por Descartes, Heidegger pensa que o conceito da vontade de poder faz parte dela, talvez como seu último e mais radical produto.

De todo modo, também para Heidegger, toda a metafísica ocidental resulta niilista, uma vez que abandona a questão do ser. Ao final de “Introdução à metafísica”, ele se pergunta: “Mas onde está a operar o niilismo autêntico?”. E responde:

Onde as pessoas se prendem aos entes corriqueiros e supõem que basta tomar o ente como até hoje se fez, como o ente que ele, afinal, é mesmo. Com isso, porém, rejeita-se a questão do ser e trata-se o ser como um nada (nihil) que também, em certo sentido, ele é. No esquecimento do ser tratar somente dos entes – isso é o niilismo. O niilismo assim compreendido é que é o fundamento para aquele niilismo que Nietzsche expôs no primeiro livro de “A vontade de poder”. Na questão do ser ir expressamente até a fronteira do nada e incluí-la na questão do ser é, por outro lado, o primeiro e único passo frutífero para a verdadeira superação do niilismo[8].

Quando Heidegger diz que, de certo modo, ele é um nada, entende-o exatamente no sentido de que ele, não sendo ente nenhum, não é, evidentemente, nada do que a metafísica ou a linguagem corriqueira toma como ser.

Assim devemos entender a afirmação de que “no esquecimento do ser tratar somente dos entes – isso é o niilismo”. Por isso, a questão do ser se encontra “na fronteira do nada”, isto é, na fronteira daquilo que, para a metafísica, nada é. Devemos ir até esse ponto, se pretendemos superar o niilismo. Só então podemos deixar de pensar o ser como um universal ou uma transcendência vertical e sim como ele deve ser pensado, isto é, como uma singularidade absoluta. Trata-se então do mistério que se dá ao se ocultar. Longe de ser um ente privilegiado, ele consiste no outro dos entes, que é o fundamento sem fundo, ou fundamento abissal, do qual não se pode dar a razão, e que se oferece a pensar como o nada.

Entende-se assim que a posição teórica através da qual o pensador abstrai de tudo o que não constitui o seu objeto jamais é capaz de alcançar o ser. O positivismo, que se recusa a falar do que não é suscetível de ser dado positivamente, constitui o ápice do niilismo.

Para Heidegger, é exatamente porque Nietzsche, embora tendo reconhecido o niilismo como um movimento da história ocidental moderna, não foi capaz de pensar essencialmente sobre o nada, no sentido em que acabo de indicar e porque não foi sequer capaz de levantar essa questão, que ele não superou a metafísica, de modo que o seu conceito de niilismo acabou sendo, ele mesmo, segundo Heidegger, niilista.

EXCURSO 1: OS ESTILOS NA FILOSOFIA

Mas, antes de prosseguir, consideremos por um momento a história da filosofia, do ponto de vista estilístico. Podemos distinguir pelo menos quatro importantes gêneros de discurso filosófico escrito, no Ocidente: o tratadístico, o ensaístico, o dialógico e o aforístico. Talvez pudéssemos adicionar o epistolar como um quinto, mas creio que este se dá sobretudo como um modo do discurso ensaístico. O mesmo se pode dizer de memórias ou confissões, como as de Agostinho. Em princípio, qualquer um deles pode ser feito em prosa ou em verso.

Exemplo clássico do gênero tratadístico é Aristóteles; do ensaístico, Sêneca (simultaneamente epistolar); do dialógico, Platão; do aforístico, Epíteto.

De modo geral, enquanto o tratado é escrito em linguagem técnica, é sistemático e tende a ser demonstrativo, valendo-se principalmente da lógica e da dialética, o ensaio é escrito em linguagem corrente ou literária, é digressivo e tende a confiar na persuasão, de modo que se aproxima da retórica e da literatura. Pode-se dizer que é basicamente entre o polo tratadístico e o polo ensaístico que transitam os dois outros gêneros. O tratado, por ser especializado, é predominante na academia. Prestando-se melhor a métodos construtivos, o gênero tratadístico foi, de acordo com a tradição aristotélica, geralmente empregado em obras de metafísica. Já o ensaístico tende a ser preferido exatamente pelos autores não acadêmicos e antimetafísicas.

Descartes, como se sabe, é tido como o pai da filosofia moderna. Suas obras filosoficamente mais influentes, o Discours de la méthode e as Meditationes de prima philosophia, parecem, pela sua forma – inclusive pelos seus próprios nomes -, mais próximas do ensaio do que do tratado. Para além da influência de Montaigne, de quem ele era leitor, isso se deve sem dúvida ao fato de que ele quer se diferenciar de determinada tradição tratadística: a da escolástica. No fundo, porém, tanto pelo conteúdo quanto pelo método, seus escritos constituem obras muito mais próximas da tradição tratadística. E, de fato, ele acaba por recorrer ao tratado no seu Principia philosophiae.

De todo modo, o fato é que a grande tradição filosófica da modernidade clássica pode ser considerada como predominantemente tratadística. Assim são Spinoza, Leibniz, Locke, Berkeley (por trás das primeiras aparências), Hume (idem, e não só no Treatise, mas também no Essay), Kant, Fichte, Shelling, Hegel.

É claro que o ensaio filosófico jamais deixou de ser cultivado, frequentemente referindo-se de maneira irônica ou agressiva em relação a esta ou àquela filosofia tratadística. É o caso de Montaigne em relação à escolástica, Pascal em relação a Descartes, Jacobi tanto em relação a Spinoza quanto a Fichte, e Nietzsche e Kierkegaard em relação ao idealismo alemão. Pascal, Jacobi e Kierkegaard atacavam a metafísica a partir das exigências da religião. Montaigne e Nietzsche, não: mas todos, inclusive Montaigne, se preocupavam sobretudo com a ética, com o comportamento moral dos homens, mesmo quando se consideravam antimoralistas, como Nietzsche.

O sentido da digressão que acabo de fazer sobre o estilo em filosofia é perguntar se não é apenas a metafísica; mas, de maneira geral, a filosofia tratadística, sistemática, lógica, teórica que necessariamente tem parte com o niilismo: mais especificamente, com o niilismo ativo, no sentido de Nietzsche.

Ao elogiar o estilo ensaístico, em seu ensaio “Der Essay als form”[9], Theodor Adorno desconfia da ambição tratadística (1) de começar ex nihilo, a partir de uma tabula rasa; (2) de pressupor a prioridade do método; (3) de separar rigidamente forma e conteúdo; (4) de desprezar o transitório para buscar o atemporal; (5) de confiar na abstração etc.

Ora, essas características pertencem necessariamente ao pensamento filosófico maximamente ambicioso e radical, isto é, ao pensamento filosófico maximamente dotado de (malgré Nietzsche) vontade de poder. Consideremos cada uma delas.

  1. Para o pensamento filosófico, começar ex nihilo significa, no fundo, não pressupor senão os seus próprios recursos. A exigência da tabula rasa significa a recusa, por ele, de qualquer pressuposto ou preconceito que não tenha subsistido à crítica, isto é, à razão, por ele representada.
  2. O método, que é, ex definitione, o caminho para o conhecimento, está necessariamente presente, implícita ou explicitamente, em todo empreendimento cognitivo. Ele se encontra, portanto, tanto no ensaio quanto no tratado filosófico. A diferença é que, enquanto o ensaio é capaz de ignorá-lo, o tratado, exatamente por sua ambição de examinar todo pressuposto e preconceito, tematiza-o explicitamente. Ao fazê-lo, o tratado não pode deixar de manifestar a prioridade – prioridade cronológica – que cabe ao método, em virtude precisamente de ser o caminho para o conhecimento.
  3. A separação entre forma e conteúdo é consequência da pretensão de universalidade da razão, que é capaz de se manifestar através de diferentes formas particulares, porém não admite confundir-se com nenhuma delas, já que, se o fizesse, estaria a limitar a si própria. Em última análise, semelhantes autolirnitações implicam autocontradições performativas. Por isso, a razão considera acidentais as formas particulares – por exemplo, as diferentes línguas – através das quais se manifesta.
  4. Da mesma pretensão à universalidade deriva a indiferença pelo transitório, que é necessariamente particular. Lembremo-nos das palavras famosas de Aristóteles: “Há uma ciência que contempla o ente enquanto ente e o que a ele cabe enquanto tal. E ela não é idêntica a nenhuma das que chamamos particulares: pois nenhuma das demais considera universalmente sobre o ente enquanto ente, mas, tendo dividido alguma parte dele, elas contemplam os acidentes desta”.
  5. A confiança na abstração é manifestação de confiança na própria razão, pois a abstração é um dos atos fundamentais da razão.

Talvez, ao contrário do que pensa Heidegger, a metafísica não tenha esquecido o ser, mas simplesmente ocorra que o ser – no sentido heideggeriano – não diga respeito nem a ela, nem à filosofia sistemática, nem à lógica.

Neste ponto vale a pena lembrar a admiravelmente clara interpretação do fenômeno do esquecimento do ser dada por Étienne Gilson, que chama a atenção para o fato de que a relação entre “ser” e “ente” não é recíproca:

“Ente” é concebível, “ser” não é. Não é possível conceber um “é”, salvo pertencente a alguma coisa que é, ou existe. Mas o inverso não é verdade. O ente é perfeitamente concebível separado da existência atual; a tal ponto que a primeiríssima e mais universal de todas as distinções no reino do ente é aquela que o divide em duas classes, a do real e a do possível. Mas o que é concebê-lo como meramente possível senão concebê-lo como separado da existência atual? Um “possível” é um ente que ainda não recebeu, ou que já perdeu, seu próprio ser. Uma vez que o ente é pensável à parte da existência atual, enquanto a existência atual não é pensável separado do ente, os filósofos não farão mais que ceder a uma das inclinações fundamentais da mente humana, ao estabelecer o ente, menos a existência atual, como o primeiro princípio da metafísica[10].

***

Na digressão sobre o estilo na filosofia, citei F. H. Jacobi, que criticou a filosofia de Spinoza e a de Fichte. Do mesmo modo que Pascal, ele acreditava que a pura filosofia levava ao ceticismo. Numa obra sobre Hume, Jacobi conta que leu a Ética, de Spinoza, tentando encontrar uma formulação mais clara da versão cartesiana da prova ontológica da existência de Deus. Ele a encontrou, mas, ao fazê-lo, percebeu – como Pascal antes dele – que essa prova não valia para o Deus de Abraão, de Isaac ou de Jacó, mas somente para o Deus dos filósofos, que não passava de uma abstração[11].

O Deus de Spinoza, por exemplo, ou a substância infinita, não se reduz a nenhum ente particular. Em carta a Moses Mendelssohn, Jacobi, explicando o sistema de Spinoza, diz que, para este,

o primeiro – não apenas nas coisas extensas ou nas pensantes, mas o que é primeiro em umas e nas outras, e igualmente em todas as coisas -, o ser original [das Ur-Seyn], o real onipresente e imutável que, ele mesmo, não pode ser nenhuma propriedade, mas do qual tudo o mais é apenas uma propriedade que ele tem, esse único e infinito ser de todos os seres [dieses einzige unendliche Wesen aller Wesen], Spinoza chama Deus, ou a substância[12].

E continua:

Esse Deus não pertence, portanto, a nenhuma espécie de coisas, e não é nenhuma coisa separada, individualmente diferente. Assim a ele não pode convir nenhuma das determinações que distinguem as coisas individuais; tampouco uma consciência ou um pensamento próprio e particular, ou uma extensão, figura ou cor própria e particular; ou o que quer que se possa nomear que não seja puro elemento original [Urstoff], pura matéria, substância universal[13].

Finalmente, no que nos interessa, Jacobi cita um famoso trecho da carta 1 de Spinoza e o comenta:

Determinatio est negatio, seu determinatio ad rem justa suum esse non pertinet. [A determinação é negação, ou seja, a determinação não pertence à coisa segundo o seu ser]. As coisas individuais, portanto, na medida em que existem somente de certo modo determinado, são non-entia [não entes]; e o ser infinito indeterminado é o único verdadeiro ens reale, hoc est, est omne esse et praeter quod nullum daturesse [ente real, ou seja, é todo o ser, além do qual nenhum ser é dado][14].

Jacobi entende que, para Spinoza, tudo o que é finito é concebido como uma limitação ou negação do infinito (determinatio est negatio). Só a substância infinita, que não se reduz a ente particular nenhum, é inteiramente positiva, não possuindo limitação, determinação, negação alguma. Com efeito, na carta XXXVI, Spinoza afirma que “uma vez que ‘determinado’ não denota nada de positivo, mas apenas a limitação da existência da natureza concebida como determinada; segue-se que aquilo cuja definição afirma a existência não pode ser concebido como determinado”[15]. Tal é a substância ou Deus, um ente “que é absolutamente indeterminado”[16].

Lembro que Spinoza havia explicado, no Tratado sobre a reforma do entendimento, que o emprego de uma expressão negativa, como “indeterminado”, para Deus ou a substância, que nada tem de negativo, deve-se ao fato de que “as palavras fazem parte da imaginação”, de modo que as coisas “que só estão no intelecto, e não na imaginação”, costumam receber denominações negativas. Exemplos são “incorpóreo”, “infinito” etc.[17]

Para Jacobi, contudo, independentemente da terminologia spinozista, a verdade é que tal indeterminação não é concebível senão através da abstração – da negação – de toda determinação, de modo que o summum reale é, enquanto tal, o summum abstractum. Trata-se, portanto, segundo ele – que chegou à conclusão de que toda filosofia puramente racional daria no mesmo resultado -, do mais puro niilismo.

* * *

A verdade é que, de fato, quando maximamente ambiciosa e radical, a filosofia é niilista, no sentido de Jacobi. Por quê? Porque, quando maximamente ambiciosa e radical, ela busca o absoluto: o absoluto ontológico e/ ou o absoluto epistemológico. ”Absoluto”, de absolutum, isto é, ab alio solutum significa em primeiro lugar o que é solto, livre, desligado e independente de outra coisa: o que é por si[18]. Assim é, por exemplo, a substância, segundo Spinoza, já que ele a define como “aquilo que é em si e é concebido por si: isto é, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa, partir da qual deva ser formado”[19].

Deixemos Spinoza de lado por um momento. Na metafísica clássica, o conceito do absoluto é obtido por diversos caminhos. No fundo, porém, eles não passam de diferentes versões de uma teologia negativa. O conceito do absoluto, consistindo no conceito do não relativo, é obtido exatamente através da abstração de todo o relativo. Não é necessário fazer um grande esforço analítico para compreender que, necessariamente, tudo o que é par­ ticular, tudo o que é contingente, tudo o que é temporal, tudo o que é empírico, tudo o que é finito, tudo o que é definido, tudo o que é determinado é relativo; e, uma vez que comumente chama-se de “positivo” precisamente aquilo que é definido, determinado etc., segue-se que tudo o que é positivo é relativo.

Desse modo chegamos a algo que é aparentemente – mas apenas aparentemente – oposto à substância de Spinoza. Se todo positivo é relativo, então o absoluto é negativo, ou a negatividade é absoluta. Não tendo nada de particular, acidental, contingente, temporal, empírico, finito, definido, determinado, positivo, o absoluto é universal, necessário, atemporal, transcendental, infinito, indefinido, indeterminado – e negativo. Trata-se de um absoluto negativo ou de uma negatividade absoluta.

Na verdade, a oposição entre esse resultado e o de Spinoza é apenas aparente. Este chama o caráter absolutamente indeterminado da substância – do absoluto – de “absolutamente positivo”, em oposição ao determinado, que sofre a negação; como vimos, poderíamos chamar o mesmo caráter absolutamente indeterminado do absoluto de “absolutamente negativo”. Ora, é o rnráter indeterminado, logo, inapreensível, do absoluto que autoriza a chamar de “niilista” qualquer das duas formulações.

EXCURSO 2: HEGEL

A identidade última do positivo e do negativo no indeterminado lembra o primeiro – e, do ponto de vista do seu autor, mais pobre – momento da Ciência da lógica de Hegel, que pretendia justamente chegar ao absoluto determinado, uma vez que tivesse aufgehoben – incorporado e superado – o absoluto indeterminado. Na verdade, trata-se de um momento insuperável não só de Hegel, mas de toda a filosofia.

“Em sua imediaticidade indeterminada”, diz ele,

[o ser] é igual apenas a si mesmo e também não é desigual a outra coisa, des­ tituído de distinção interna ou externa. Através de qualquer determinação ou conteúdo que o diferenciasse internamente ou que o supusesse como diferente de outra coisa, ele perderia sua pureza. Ele é indeterminação e vazio puros. – Não há nada nele a ser contemplado, se é que se pode aqui falar de contemplação; ou então ele é só essa pura e vazia contemplação mesma. Tampouco há algo nele a ser pensado, ou então ele é do mesmo modo só esse puro pensamento. O ser, o imediato indeterminado é na verdade nada, e não mais nem menos que nada[20].

Na Enciclopédia, Hegel afirma que “o ser puro constitui o começo porque é tanto puro pensamento quanto o imediato indeterminado, simples, que pode ser o primeiro começo, mas nada mediado e mais determinado”[21]. Hegel, como foi dito, pretende superar esse absoluto indeterminado. A verdade, porém, é que sua tentativa é um – diga-se a verdade: grandioso – fracasso: e é um fracasso desde o começo.

Segundo ele, a verdade do ser e do nada é o devir, pois o que é a verdade não é nem o ser nem o nada, mas que o ser passa – ou melhor, já passou – ao nada e o nada ao ser[22]. Ora, isso já é inaceitável, pois não pode haver trânsito efetivo do nada ao ser ou vice-versa. Se o ser é conceitualmente[23] o mesmo que o nada, e o nada, o mesmo que o ser, então só uma ilusão pode levar alguém a falar de transição, pois o mesmo não transita ao mesmo.

Prevendo essa possível objeção, Hegel afirma que

tão correta quanto a unidade de ser e nada é porém também que são absolutamente distintos – que um não é o que o outro é. Apenas, uma vez que a diferença aqui ainda não se determinou, pois justamente ser e nada são ainda o imediato, ela é, como se encontra neles, o indizível, a mera opinião[24].

Contudo, a verdade é que essa diferença jamais se torna mais precisa. Ela não é capaz de superar o status de doxa, opinião, imaginação, ilusão. O tornar-se não pode ser a identidade do ser absoluto e do nada absoluto justamente porque ele é diferente tanto de um quanto de outro, que são idênticos. O ser absoluto é conceitualmente idêntico ao nada absoluto, e isso basta. Por essa razão, resulta ininteligível a explicação de Hegel para a coagulação do tornar-se no estar aí (Dasein) ou no ser determinado:

O tornar-se contém em si o ser e o nada, e de tal maneira que esses dois simplesmente se transformam um no outro e se superam mutuamente. Com isso, o tornar-se se demonstra como inteiramente inquieto, mas incapaz de se manter nessa inquietação abstrata; pois na medida em que ser e nada se esvanecem no devir e só isto é o seu conceito, ele próprio é um esvanecente, feito um fogo que se consome em si mesmo enquanto devora o seu material. Mas o resultado desse processo não é o nada vazio, mas o ser idêntico à negação, que chamamos estar aí (Dasein) […][25]

Ora, como dissemos, se o ser é idêntico ao nada, não há de tornar-se um o outro. Isso significa que, dado que o devir é o elo entre o momento do ser-nada e o momento do estar aí (Dasein), isto é, do ser determinado, pode declarar-se insatisfatória a passagem crucial do primeiro para o segundo capítulo da Lógica. Isso não significa que não haja uma diferença fundamental entre o ser ou o nada absoluto e o ser determinado. Muito pelo contrário: trata-se de uma diferença crucial. O que a insuficiência da derivação hegeliana significa é que o conceito de ser absoluto ou o absoluto abstrato não pode ser reduzido a uma representação inadequada do ser determinado. Assim, desde o primeiro passo não se realiza a pretensão hegeliana de que o absoluto abstrato não passe da mais pobre das definições do absoluto, destinada a ser relativamente superada por todos os significados subsequentes revelados pela Lógica.

Mas quero voltar ao indeterminado, tal como ele se encontra num ponto muito anterior da história da filosofia. Refiro-me ao que é considerado o primeiro texto filosófico preservado: a sentença do filósofo Anaximandro de Mileto. Ela diz:

Princípio[… ] dos entes [é] o ápeiron [“infinito”, “ilimitado”, “indefinido”, “indeterminado”][…] A geração é para os entes a partir das coisas em direção às quais também a corrupção deles se gera segundo o necessário. Pois eles dão justiça e reparação uns aos outros pela injustiça, segundo a ordem do tempo[26].

Substantivando o adjetivo, “infinito” ou “ilimitado”, Anaximandro transforma-o em to ápereiron, to ápeiron, “o infinito”, “o ilimitado”, “o indefinido”, “o indeterminado”, do qual faz o princípio negativo de tudo o que é peperasménon: “positivo”, “finito”, “limitado”, “definido”, “determinado”. Usarei aqui a palavra “indeterminado” (referente à ausência de determinação tanto quantitativa quanto qualitativa) como sinônimo de ápeiron. Não se trata de um princípio entre outros. Em fragmento citado por Hipólito, Anaximandro diz que o ápeiron é eterno e sem idade.

Não se deve pensar que ele consista numa substância primordial, a partir da qual se tenha formado o mundo. Não há por que pensar que consista numa substância ou elemento. O ápeiron é simplesmente o indeterminado. Também não há por que pensar, como Simplício, que se trate de “outra natureza qualquer ilimitada”. Toda natureza é, ao menos qualitativamente, limitada, isto é, determinada. Não seria possível determinar o indeterminado sem que ele deixasse de ser o que é.

Para Anaximandro, pois, o princípio absoluto do determinado é o indeterminado. Que quer dizer isso?

Dizer que o princípio absoluto do determinado é o indeterminado significa, em primeiro lugar, que o determinado provém do indeterminado e para ele retorna: “a geração é para os entes a partir de coisas em direção às quais também a corrupção deles se gera”.

O indeterminado é aquilo para o qual os entes determinados vêm e para o qual voltam. Já o determinado é derivado do indeterminado, do qual não passa de um fragmento, momento ou aspecto.

Contra semelhante tese, seria possível produzir um argumento (dotado de certo sabor bergsoniano) segundo o qual tudo o que é indeterminado o é em relação a algo determinado, de modo que (fazendo abstração da física quântica) não há nada que seja em si indeterminado. Quando dizemos, por exemplo, que a causa do fenômeno é indeterminada, isso não significa que exista uma coisa em si indeterminada que cause o fenômeno F, mas sim que essa causa é indeterminada para nós, que atualmente a desconhecemos.

Nada impede que possamos vir a conhecê-la, e nesse caso ela se revelará tão determinada quanto o fenômeno de que constitui a causa. Em outras palavras, o indeterminado é aquilo que é indeterminado para nós em dado momento, ou porque ainda não se determinou, ou porque já perdeu a sua determinação para nós.

Ora, pode-se reconhecer isso e, no entanto, sem contradição, afirmar que o determinado é, em última instância, produzido pelo indeterminado, ou seja, pelo que é indeterminado para nós em dado instante, e que esse indeterminado não apenas cerca o mundo determinado como se esconde no seu cerne, assim como cerca e se esconde no cerne de cada ente, de cada parte e de cada partícula de cada parte de cada ente determinado que se encontre no mundo. De fato, penso que é precisamente por esse caminho que deve ser interpretado o sentido da palavra ápeiron. É claro que se pode indefinidamente estender o campo do determinado, mas a incomensurabilidade entre o finito e o infinito – infinito não apenas em extensão, mas em profundidade e no tempo – significa que, em última análise, o determinado nunca será mais que um aspecto infinitésimo do indeterminado. Nesse sentido, o indeterminado é o que ainda não foi determinado. Não há nada no indeterminado que seja, em princípio, indeterminável ou incognoscível. Isso significa que o indeterminado não se confunde com o irracional, e Anaximandro manifesta ainda essa conclusão não só ao afirmar que a relação do determinado com o indeterminado se dá “segundo o necessário”, mas também ao se referir à “ordem do tempo”. Por outro lado, o ápeiron não pode ser inteiramente esgotado, pois é, ex definitione, infinito.

Anaximandro foi, segundo uma tradição relatada por Diógenes Laércio, “o primeiro a desenhar o perímetro da terra e do mar”[27]. Aproximadamente cem anos depois desse feito, Heródoto declarou, em suas Histórias, que ria “ao olhar os circuitos da terra já desenhados por muitos, e nenhum razoavelmente explicativo: eles desenham o oceano a correr em torno da terra, sendo esta circular como se feita com um compasso, e tendo feito a Ásia igual à Europa”[28].

Kirk e Raven especulam que Heródoto deve ter visto mapas feitos por Hecateu, a partir do modelo de Anaximandra[29]. De qualquer modo, o oceano cerca a terra no escudo de Aquiles, descrito na Ilíada por Homero. Para Tales, o primeiro filósofo, a terra, que é, em última análise, feita de água, flutua sobre o oceano. Nesse caso, o oceano está para a terra como o ápeiron para o peperaménos, isto é, como o indeterminado para o determinado. Segundo Agatêmera[30], Anaximandro foi o primeiro a desenhar o mapa-múndi numa tábula. É provável, porém, que ele houvesse traçado mapas também no chão de terra batida, como, muito mais tarde, Arquimedes fez com os seus círculos. Teríamos então o chão ilimitado como equivalente do indeterminado e o chão limitado, circunscrito pelo traçado, como equivalente do determinado. A analogia permite perfeitamente conceber como Anaximandro entende a relação entre o indeterminado e o determinado. O mapa pode ser apagado e retraçado muitas vezes, lá, onde Anaximandro o traçava, ou alhures. De todo modo, ele pode, enquanto determinado (dotado da forma F), ser modificado (passar a ter a forma F); ele não existia antes de ser traçado; ele deixará de existir um dia; ele poderia jamais ter sido traçado. Já o indeterminado não pode, enquanto tal, ser modificado (justamente por não ser dotado de nenhuma forma que possa ser modificada); ele sempre foi e sempre será pressuposto pela existência do determinado, e não há possibilidade de que não seja assim. Com efeito, é no indeterminado que se encontra a possibilidade do determinado, é a partir do indeterminado que ele vem a existir, e é para o indeterminado que ele passa ao deixar de existir. Em oposição ao determinado ou à forma, é com a não forma, isto é, com o movimento ou a mudança, que ele se identifica.

Em segundo lugar, dizer que o princípio absoluto do determinado é o indeterminado significa também que nada de determinado – consequentemente, nada de particular ou positivo – pode ser o princípio absoluto. A afirmação do caráter indeterminado ou negativo do princípio absoluto não equivale a negá-lo, ou seja, não equivale negar a vigência de todo e qualquer princípio absoluto A negação da vigência de todo e qualquer princípio absoluto não passaria de um princípio absoluto do qual decorreria a negação da sua própria vigência, quer dizer, não passaria de um paradoxo estéril e auto­ destrutivo. Anaximandro não é sofista nem relativista, e tampouco se deixa embaraçar pelas aporias em que estes incorrem. Afirmar o caráter negativo do princípio absoluto significa impedir que ilusoriamente se ponha no lugar do princípio absoluto – no lugar do absoluto – qualquer positividade, qualquer ente (divino ou não), qualquer forma, ideia ou poema concebível: significa impedir, portanto, que se ponha, no lugar do absoluto, qualquer princípio particular ou positivo. Assim, dado que a fonte inesgotável e surpreendente dos entes, formas e poemas – a saber, a fonte eidopeica e epopeica, que também se pode chamar de poesia – é precisamente o ápeiron, ou o indeterminado, que é o absoluto, decorre daí que, em princípio, nem o conjunto de formas naturais nem o conjunto de formas culturais jamais podem estar fechados ou prontos[31].

De toda maneira, é nesse contexto que se deve entender a última parte do enunciado de Anaximandro. Repito-o por inteiro, grifando a parte em questão:

Princípio[…] dos entes [é] o ápeiron [“infinito”, “ilimitado”, “indefinido”, “indeterminado”] [… ] A geração é para os entes a partir das coisas em direção às quais também a corrupção deles se gera segundo o necessário. Pois eles dão justiça e reparação uns aos outros pela injustiça, segundo a ordem do tempo.

A maior injustiça é que algo peperasménon, ou determinado, usurpe o lugar do absoluto, lugar que pertence ao ápeiron, isto é, ao indeterminado; ou que o ápeiron, ou indeterminado, ou seja, o absoluto, seja reduzido a algo peperasménon, a algo determinado e relativo. Isso se cumpre de diferentes maneiras. Uma delas é pelo fechamento do conjunto de formas naturais ou culturais.

Quanto às formas naturais, é claro que não é possível, senão ilusoriamente, fechar o seu conjunto, quer dizer, impedir a produção de novas formas ou a extinção de formas antigas. Não se poderia, por exemplo, impedir a evolução das espécies. Entretanto, a ilusão do fechamento das formas naturais pode ser sustentada por muito tempo, pois em geral a “ordem do tempo” em que se torna percepúvel a produção de novas formas naturais ou a extinção das antigas é lenta em relação à vida humana. Ademais, as no­ vas formas se produzem a partir da determinação enclítica, ou melhor, parenclítica, exercida pelo indeterminado sobre as formas já determinadas, de modo que as novas formas se apresentam imediatamente como um desvio ou uma perversão das já existentes. De novo, o exemplo da evolução é esclarecedor: a nova espécie é tomada como uma monstruosidade, como uma exceção que não chega a alterar o conjunto constante de formas naturais. De qualquer maneira, a maior parte das culturas toma as formas naturais já existentes como eternas.

O caso das formas culturais é diferente. Normalmente, uma formação cultural particular, assim como cada um dos costumes, instituições e objetos de que ela se compõe, consiste em algo que foi construído, com grande sacrificio, contra a natureza. Trata-se de uma configuração constantemente ameaçada, em face da hostilidade da natureza, de outras culturas, dos seus conflitos internos e das tendências centrífugas dos indivíduos que a compõem. Não admira que, uma vez atingido algum equilíbrio, inevitavelmente precário, ela tenda a buscar manter-se idêntica a si mesma, evitando tudo o que possa desestabilizá-la: por exemplo, toda forma nova. Dado que toma as formas naturais como eternas, ela quer, portanto, identificar com elas as suas formas culturais, tentando “naturalizar” os seus costumes e instituições. Por isso, à medida que se encontre em seu poder fechar o conjunto das formas culturais admissíveis, ela o faz, classificando como “bárbara”, proibindo ou mesmo tornando inconcebível a produção de qualquer forma que não considere natural. Do mesmo modo, séculos depois de Anaximandro, Platão, que, tendo horror à sociedade aberta de Atenas, da qual era cidadão, ansiava pela restauração de uma sociedade fechada como a da antiga Esparta, e de Creta ou a do Egito, que ele idealizava, explicou detalhadamente as medidas que deveriam ser tomadas, uma vez que tal sociedade fosse atingida, para evitar qualquer novidade. Referindo-se aos pensamentos humanos e às naturezas das almas, ele diz que, “se forem cultivados por leis e se, por alguma fortuna divina, estas ficarem inalteradas por muitos e longos tempos, de modo que ninguém tenha lembrança nem jamais tenha ouvido falar de que elas tenham sido, algum dia, diferentes do que são agora, então a alma inteira as reverencia e teme mudar qualquer uma das coisas estabelecidas”[32].

Mas o fechamento do conjunto de formas naturais e culturais não é a única maneira de fazer que o determinado usurpe o lugar do absoluto, lugar que pertence ao indeterminado. Outra maneira é a das religiões monoteístas, como o judaísmo e, depois dele, o cristianismo e o islã, por exemplo, que transformam um deus pessoal e/ ou um conjunto particular de prescrições, sancionadas por uma casta de sacerdotes ou uma Igreja, no absoluto. O platonismo faz algo equivalente a isso, na filosofia. Ora, os gregos não tomavam nenhum de seus deuses como absoluto, nem mesmo Zeus: basta ler os poemas homéricos para verificá-lo. Anaximandro é capaz de conceituar o ápeiron porque, sendo culturalmente grego, está livre dessa idolatria monoteísta, mas a conhece bem, porque vive em Mileto, pólis na costa sul da Ásia Menor, cidade comercial jônica no centro – em ebulição política, econômica, religiosa, artística e científico-filosófica – do mundo do seu século.

Anaximandro diz que os entes “dão justiça e reparação uns aos outros pela injustiça, segundo a ordem do tempo”. De fato, todo determinado, toda forma determinada, todo conjunto de formas determinadas é mortal precisamente na medida da sua determinidade. Assim, uma cultura, uma sociedade ou uma religião condenam-se à morte justamente na medida do seu fechamento, da sua tentativa de naturalizar e eternizar as formas de que se compõem, ou de pôr no lugar do absoluto, lugar que pertence ao indeterminado, algo determinado, logo, relativo, como um deus, seja qual for. Mas por que os entes dão justiça e reparação “uns aos outros”? Porque, enquanto determinado, qualquer ente é igualmente relativo. Logo, um ente que usurpe o lugar do absoluto está cometendo uma injustiça não só em relação ao indeterminado, mas em relação a todos os demais entes determinados. A forma (ou cultura, religião, deus etc.) determinada que ocupar o lugar do absoluto vai, por isso, prestar contas, em primeiro lugar, a outra forma (ou cultura, religião, deus etc.) determinada que, na ordem do tempo, seja capaz de destruí-la, por cobiçar o lugar em que aquela se encontra: e, que ao fazê-lo, estará a reproduzir a injustiça da primeira; injustiça pela qual, ao chegar a sua vez, na ordem do tempo, também pagará. O processo não terá fim até que o lugar do absoluto retorne ao indeterminado. Em suma, por direito, o absoluto é negativo.

* * *

Parece-me que, em última análise, todo o sentido da grande tradição tratadística da metafísica, da filosofia e da lógica moderna, de Descartes a Kant, tem sido, como o sentido da sentença de Anaximandro, precisamente o afirmar e defender o caráter negativo do absoluto, de modo a impedir que ilusoriamente se ponha no seu lugar qualquer positividade, qualquer ente, qualquer forma, ideia ou poema concebível: significa impedir, portanto, que se ponha, no lugar do absoluto, qualquer princípio particular ou positivo que se oponha à manifestação de outros princípios particulares ou positivos possíveis.

Toda construção intelectual faz uso da razão; porém esta não se reduz a nenhuma das suas construções intelectuais; a nenhum dos entendimentos que torna possíveis. Ela é sempre crítica também em relação a eles. A razão crítica representa, portanto, a defesa do direito de ser das mais diversas construções, formas, ideias e poemas. É esse o sentido da afirmação moderna do caráter em primeiro lugar crítico – logo, negativo – da razão. É para tanto que ela exerce o papel daquilo que Nietzsche chamava de “niilismo ativo”, e que ele próprio julgava, em determinado momento, representar. Esse niilismo é sempre imprescindível à filosofia teórica, de modo que não devemos, seguir Nietzsche quando este fala de havê-lo superado. Nesse ponto, Adorno tem razão quando afirma que “as superações, mesmo a do niilismo, inclusive a nietzschiana, que, embora tendo tencionado outra coisa, deu palavras de ordem ao fascismo, são sempre piores do que aquilo que é superado”[33].

É verdade que, como pensa Heidegger, essa grande tradição tratadística – que, afinal, como vimos, remonta ao primeiro texto filosófico da tradição ocidental – basicamente ignora o que ele chama de “ser”. É certo que assim seja: e penso que assim mesmo deve ser. O ser, no sentido heideggeriano, não é assunto da filosofia ou da lógica, mas da poesia e da arte. Não admira que o próprio Heidegger cada vez mais se tenha aproximado da arte e da poesia nos seus últimos escritos. O trabalho da filosofia não é tratar do ser, mas mostrar a necessidade de se salvaguardar a abertura do espaço em que a arte e a filosofia – as produções do espírito – livremente se dediquem ao ser. Penso que foi por compreender isso que Guimarães Rosa, na sua entrevista a Günter Lorenz, afirmou que “o idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen (cuidar). Soa a Heidegger, não? Ele construiu toda uma filosofia muito estranha, baseado em sua sensibilidade para com a língua, mas teria feito melhor contentando-se com a língua”[34].

Notas

  1. Friedrich Wilhelm Nietzsche, Der Wille zur Macht, Stuttgart: Alfred Kröner, 1996, p. 10. 
  2. Friedrich Wilhelm Nietzsche, “Die frõhliche Wissenschaft”, Karl Schlechta (org.), Werke vol.2, München: Hanser, 1954. §346. 
  3. Friedrich Wilhelm Nietzsche, Além do bem e do mal, tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 8. 
  4. lbid. 
  5. Friedrich Wilhelm Nietzsche, “O Anticristo”, O Anticristo e ditirambos de Dionísio, tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, § 18. 
  6. Friedrich Wilhelm Nietzsche, Der Wille zur Macht, Peter Gaste Elizabeth Förster-Nietzsche (orgs.), Stuttgart: Alfred Kröner, 1996, § 22-23. 
  7. lbid. Vorrede, § 3. 
  8. Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik,Tübingen: Max Niemeyer, 1953, § 58, p. 212. 
  9. Theodor Adorno, “Der Essay ais Form”, Gesammelte Schriften. Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003. 
  10. Étienne Gilson, El ser y los filósofos, Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, S.A., 1985, p. 24 . 
  11. Ele tem razão, é claro. Não é só o Deus de Spinoza ou o Deus de Descartes, mas o Deus de toda filosofia – e mesmo de toda teologia racional – que se opõe ao deus concreto e pessoal da religião. A verdade é que não há, por exemplo, como conciliar a substância simples e eterna que constitui o primum mobile, o Deus de Aristóteles, que não passa de pura forma e pura inteligência, cujo pensamento só tem como conteúdo a si mesmo, pensamento do pensamento ou inteligência da inteligência, com o Deus judaico-cristão, que se interessa pelos homens, dirige-se a eles, conversa com eles, dá-lhes instruções, recompensa-os ou os pune etc. Assim, ao usar as provas aristotélicas da existência de Deus, Tomás de Aquino conseguiria, no máximo – caso essas “provas” fossem inatacáveis – provar a existência de um Deus incompatível com o Deus da sua religião. 
  12. Friedrich Heinrich Jacobi, Schriften zum Spinozastreit. Hamburgo: Meiner, 1998, p. 99. 
  13. lbid. 
  14. lbid., p. 99. 
  15. Baruch Spinoza, “Epístola xxxvi”, Opera. Carl Gebhardt (org.), Heidelberg: Heidelberger Akademie der Wissenschaften, 1925, v. 1v, p. 184. 
  16. lbid., p. 185. 
  17. Baruch Spinoza, “Tractatus de intellectus emendatione”, ibid., v. 11, p. 33. 
  18. Os gregos não tinham nenhuma palavra para a latina absolutum. O mais algo como incondicionado. Foi Nicolau de Cusa, já no século XV, o primeiro filósofo que tornou o adjetivo “absoluto”, substantivado, uma das categorias fundamentais da metafísica. 
  19. Baruch Spinoza, “Ethica”, ibid. Def. 111., v. 11, p. 45. 
  20. Georg Wilhelm Fridrich Hegel, Wissenschaft der Logik, Hamburgo: Felix Meiner, 1975, p. 66. 
  21. lbid., Enzklopadie der philosophischen Wissenschaften, Frankfurt: Suhrkamp, 1970, § 86, pp. 182-183. 
  22. lbid., Wissenschaft der Logik, Hamburgo: Felix Meiner. 1975. p_ 67. 
  23. Como diz Hegel: “Es kann leicht gesagt werden, dais man die Einheit des Seins und Nichts nicht begreife. Der Begriff derselben aber ist in den vorhergehenden §§ angegeben, und er ist weiter nichts ais dies Angegebene; sie begreifen heilst nichts anderes, ais dieses auffassen”. lbid. “Enzyklopadie der philosophischen Wissenschaften”, vol.11I, Werke in Zwanzig Banden, Bd .8, Frankfurt: Suhrkamp, 1971, § 88, Anhang 3, p. 190. 
  24. lbid., § 88, Anhang 1, p. 188. 
  25. lbid.,§ 89, Zusatz, p. 195. 
  26. Fragmento 1, Anaximandro de Mileto, in Hermann Diels e Walther Kranz.(org.). Die Fragmente der Vorsokratiker, vol. 1. Hildesheim: Weidmann, 1992, p. 89. 
  27. Hermann Diels e Walther Kranz (org.). Die Fragmente der Vorsokratiker, vol. I. Hildesheim: Weidmann, 1992, p. 81. 
  28. Heródoto de Halicarnasso, Histoires, Paris: Belles-Lettres, 1968, vol. IV, p. 36. 
  29. Geoffrey Stephen Kirk e John Earl Raven, The presocratic philosophers, Cambridge: University Press, 1963, p. 104. 
  30. Citado por G. S. Kirk e J. E. Raven, op. cit., p. 103. 
  31. Observe-se que entre as formas naturais e culturais encontram-se também os atos que se reiteram. O ritual de acasalamento de uma drosófila é uma forma natural. Um ritual religioso, uma dança, um gesto convencional, um ritmo, um epos etc. são formas culturais. 
  32. Platão, “Leges”, in John Burnet (org.). Platonis opera, vol. 5, 798a-b. 
  33. Theodor Adorno. Negative Oialektik, Frankfurt: Suhrkamp. 1975, p. 373. 
  34. João Guimarães Rosa, Günter Lorenz, “Diálogo com Guimarães Rosa”, João Guimarães Rosa, Ficção completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 47. 

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