2007

A política sem nome

por Pascal Dibie

Resumo

A vida, hoje, é uma soma de momentos individuais, de ocupações solitárias e individualistas, desligada da comunidade. A “visão” da realidade só se dá através de intermediários materiais ou técnicos. Como fazer a ligação entre o passado e o presente?

O esquecimento é um dos traços da sociedade atual e a negligência humana, um de seus princípios. As sociedades feitas de mitos, nas quais o passado servia para exprimir no presente como seria o futuro, estão ultrapassadas. O homem não tem mais acesso direto à sua memória, para isso ele usa um certo número de dispositivos técnicos.

A memória é ligada ao afeto e deve servir para que se possa exprimir tanto aquilo a que se pertence quanto a necessidade de diferenciação dos outros. A memória, mais do que um sentimento, é uma representação topográfica de interioridade constitutiva e, ao mesmo tempo, a construção da razão pela qual se pertence a uma história individual e coletiva, como se fosse uma corrente contínua de redefinição, de recomposição, a partir de lógicas coletivas e vivências singulares.

A memória animava a sucessão de gerações e participava, de forma subterrânea mas ativa, da história renovada da sociedade. Agora, confia-se as memórias à instrumentos que, imagina-se, vão levar, guardar, repertoriar e repetir nossas lembranças, nossos saberes. A cibersociedade que se instala sai do sistema trinitário – onde era preciso um terceiro para saber que o outro existe – para entrar numa sociedade radicalmente binária cujo protocolo de pensamento, a relação com o mundo, é binário: bem ou mal, sim ou não, gosto ou não gosto etc.

Um computador pode viajar no tempo, revisitar e reviver o passado? Poderão os computadores, em seu princípio, ter uma forma de experiência consciente, com lembranças próprias? Os biólogos afirmam que a riqueza da experiência humana da lembrança não pode ser descrita de forma adequada pela linguagem da informática. Entretanto, será a máquina capaz de inventar a si mesma, de ter sentimentos  baseados em suas próprias lembranças explícitas, subjetivas, do passado?

O debate sobre a consciência dos computadores está lançado; debate que vem se juntar a uma outra pergunta: todo ato de memória exige uma experiência consciente da lembrança?

A utopia do progresso certamente se transformou em utopismo técnico-informático, e os indivíduos, ao invés de se aproximarem, estão cada vez mais se afastando uns dos outros, como se pode ver pela crescente aceleração de todas as formas de movimento: geográfico (trem, avião, carro), social (transferências), matrimonial (famílias recompostas) e político. Isso faz do espaço social um espaço de instabilidade. É assim que, com o atual culto do movimento pelo movimento, surge um novo modo de fatalizar o tempo.


É como etnólogo que gostaria de lhes falar daquilo que somos, não tanto daquilo que estamos nos tornando, mas daquilo que somos aqui, agora, hoje, dentro desse pouco que ainda nos resta de vida própria, de vida ainda não dirigida nem “conectada”. Para mim, a questão é encontrar o meio e o modo que nos permitam lançar um olhar sobre nós mesmos. Como, quem e o que descrever de um mundo que se move sem nitidez? De minha parte, procurei descrever o lugar onde vivo, sobre o qual lancei pela primeira vez, há vinte e sete anos, meu olhar de etnólogo. Trata-se de Chichery, um vilarejo do norte da Borgonha com quatrocentos e setenta habitantes, minha terra.[1] O livro que acabei de escrever, cujo título é O vilarejo metamorfoseado, Revolução na França profunda,[2] foi construído sobre o desaparecimento, e sobre a atual impossibilidade de ligar as coisas entre si. Não sou eu o especialista, mas somos todos nós, é o nosso mundo, são as nossas atividades que se especializaram por si mesmas. Nossa vida, na verdade, tornou-se uma soma de momentos individuais, e nossas mulheres e nossos filhos participam ou não desses momentos. A própria estrutura do livro reflete essas evidências de vida: trabalho, compras, carro, deslocamentos, chats, movimento contínuo, vivemos agora nossa vida em flashes flashes nos quais não há mais trocas possíveis porque nossas ocupações se tornaram solitárias e individualistas. Será que ainda temos alguma lembrança do que fazemos? Como poderemos nos lembrar do dia que acabamos de passar se ele acumulou tantos momentos diferentes, tantas ocupações sem relação entre si?

Construímos tempos pessoais dentro dos quais podemos nos fechar sobre nós mesmos, nos abrigar num mundo hermético: o esporte, a televisão, os videogames, a Internet, o MSNou não sei mais o quê, em que o prazer não está no segredo, mas sim no fato de não compartilhar, na atividade onanística provocada por um mundo virtual no qual, certos ou quase certos de não sermos vistos nem encontrarmos ninguém conhecido, temos a coragem de ir até o fim no que dizemos e no que mostramos aos surdos e cegos a distância. É por essa razão que os capítulos do meu último livro são diferentes, são feitos de espaços que se sucedem, quase se sobrepondo, mas que se somam, ao mesmo tempo, como tantos momentos que tecem nossa vida atual. A vida e o tempo passaram, e aqui estou eu, neste século XXI que se entreabre, e cujas portas empurramos todos ao mesmo tempo. De minha parte tentei, senão compreender, pelo menos descrever esse lugar onde estamos entrando e a maneira pela qual o fazemos… Um filósofo me ajudou, Ludwig Wittgenstein, filósofo que teve a preocupação de compreender o homem como era, e como ele o conhecia. Para chegar até esse novo homem ele constatava que “esperamos erroneamente por uma explicação, quando a solução do problema está na descrição”; então, para nos dizer, para nos entender, só me restava a descrição.

Todos, no meu vilarejo, inclusive eu, lhes dirão que aqui na Borgonha vivemos bem, que a vida é calma e tranquila, o ar ainda é respirável, mas que, de fato, não nos conhecemos mais como antes. Há muita gente nova, muita gente que se foi, pessoas que estão de passagem, e, principalmente, essa sensação de que nos tornamos todos a mesma pessoa, que pensamos todos mais ou menos do mesmo modo – pelo menos é o que nos fazem acreditar-, que compramos e vivemos todos da mesma maneira, no vilarejo, mas não estamos juntos. Isso quer dizer que, assim como os objetos, nossas vidas tornaram-se acumulativas, ou seja, iguais, sem paixão, desligadas da comunidade, o que não quer dizer que não nos interessamos por ela, muito pelo contrário, mas a “visão” da realidade só se dá através de intermediários materiais ou técnicos. Digo isso sem nostalgia nem paixão, apenas constatando que entramos numa espécie de indiferença geral pelo mundo que nos cerca. Resta saber como e por que não conseguimos mais aproximar nosso olhar do tempo, fazer a ligação entre o passado e o presente.

Levei algum tempo para clarear minha visão, para poder perceber alguma coisa. Até meus vizinhos já não se lembravam mais muito bem de quem éramos, não tinham certeza do que somos, nem seriam mais capazes de definir o lugar onde vivem. Será que não é justamente o esquecimento, e não a memória, que está começando a ocupar o centro das nossas preocupações contemporâneas? Será que o esquecimento não seria uma característica das nossas sociedades atuais, algo que estaria ligado à negligência do humano e do político, a ponto de estarmos quase desaparecendo, ao mesmo tempo em que acreditamos, graças a uma torrente de imagens interpostas, que ainda estamos aqui? Gostaria de voltar a esse desaparecimento citando o que o poeta Bernard Noel escreveu sobre a televisão: “O poder encontrou a maneira discreta de ocupar em nós o lugar que era das nossas defesas, e até mesmo de gastar nossa energia (…). A parcela de vida utilizada para que nos deixemos ocupar pela insignificância é, no final das contas, um gasto mortal. Cada vez mais temos a sensação de que só alcançaremos o espaço mental passando pelo corpo (…) A violência não é mais indispensável à dominação (…). Basta ocupar os olhos para dominar a cabeça (…).” E conclui: “Não há explicação para essa fraqueza, da qual temos uma breve consciência apenas por acaso. Percebemos então que o velho sonho tirânico está se realizando: uma submissão sem jugo aparente que produz o efeito de um abandono. A menos que, ao se prolongar, a privação de sentidos traga junto com ela uma debilidade que se torna eficaz porque, para suas vítimas, nada mais é do que um hábito ligado a uma forma de consumo que se tornou natural. (…)”

Ficamos assim descerebrados pela passagem das imagens das quais o que conta não é o sentido, mas sim seu movimento perpétuo, seu fluxo incessante nos nossos olhos, no nosso corpo, que, “tendo se tornado um tubo de recepção e de evacuação, tem como orifício o cérebro, um cérebro disponibilizado pelo movimento e que não retém nada, a não ser as mensagens nas quais os publicitários condensam um pouco de sentido (…), sentido esse, bem entendido, servil: seu objetivo não é mais esclarecer, mas sim alimentar o pensamento, consum r”.[3] Marc Fumaroli vai ainda mais longe ao escrever num livro recente: “O drama das nossas democracias liberais é que elas deixaram a educação se desvalorizar e, o que é pior, ser condenada e cerceada desde cedo, desde a infância, por uma ‘cultura’ commercial da brutalidade, do barulho, da violência, da vertigem, de um cio que dispensa toda e qualquer reflexão e toda e qualquer conversa e, mais ainda, toda maturação pessoal, causando prejuízos até no sentimento elementar do real.”[4]

A lucidez dos poetas serve para nos alertar e apontar nossas transformações profundas. Os subcidadãos consumidores que nos tornamos devem imperiosamente se submeter às leis do mercado, ou então desaparecer. Temos que admitir que, no Ocidente, estamos todos prostituídos pelo consumo e dependentes dos lugares e das marcas, como fiéis de um templo – como resistir a esse prazer a cada dia renovado de adquirir eternamente o novo-mesmo? A política nunca atingiu tanto o consumidor quanto a consumação aspirou ao político. Nós, consumidores, representamos, atualmente, o objeto de um voto cotidiano: cada compra, obtida pelo fabricante, não é considerada o resultado de uma eleição cotidiana e pessoal? É notório que a indústria de bens de consumo funciona como os políticos, ou melhor, privou os políticos de seu sistema de “campanha”. Nascida nos Estados Unidos, no campo político da metade do século XX, a sondagem de opinião tornou-se um verdadeiro ecocardiograma social. Os pesquisadores rapidamente penetraram na esfera da intimidade – corpo e alma -, sabendo que tudo aquilo que pode ser conhecido, até nossos maiores segredos, serve para poder explorar os consumidores desenfreados que nos levam a ser.

Gostaria de deixar por algum tempo o cidadão consumidor quase descerebrado que somos para voltar ao olhar etnológico que me conduz. Escrevi, na introdução do meu último livro, intitulado O vilarejo metamorfoseado, Revolução na França profunda: “Estamos num ponto da história da humanidade em que nossos sistemas de memorização foram delegados a máquinas. O gosto pela novidade torna as lembranças inválidas e ininteligíveis; o esquecimento é um dos traços da nossa sociedade atual e a negligência humana, um de seus princípios. Quando uma sociedade perde a própria noção de viver em sociedade, o que resta? As sociedades feitas de mitos, nas quais o passado servia para exprimir no presente como seria o futuro, estão ultrapassadas; perdemos nossa própria consciência a ponto de nos confiar integralmente a um Outro sem nome. O homem, de agora em diante, não tem mais acesso direto à sua memória; para isso ele usa um certo número de dispositivos técnicos, a tal ponto que houve uma ruptura semiótica entre a prática de leitura da memória e o suporte ao qual ela está confiada.”

Todos sabemos que a memória é o presente mais ou menos falsificado de um passado, e aquilo que constitui a memória depende de uma negociação consigo próprio para retomar as rédeas do passado e fazer com que esse último venha novamente se inscrever no presente e, um pouco mais à frente, no seu destino. Para resumir, a memória é algo vibrante, espontâneo, está ligada ao afeto, ao mesmo tempo em que associamos a ela racionalizações (geralmente preestabelecidas) e versões mais ou menos adaptadas. A memória procura dar um sentido ao passado, nos recolocar no caminho, nos ajudar a reconstruir ou a continuar a nos construir, juntando pedaços para refazer nossa história, arrumando fragmentos sobre o fio que deve nos conduzir e permitir que moldemos nossa identidade social; e deve servir para que possamos exprimir tanto aquilo a que pertencemos quanto a nossa necessidade de diferenciação dos outros – eu me lembro… eu não me lembro mais e aí estamos nós diante de peças soltas ou mal coladas do passado que volta, e ao qual tentamos dar um sentido.[5]

A memória, mais do que um sentimento, é uma representação topográfica de nossa interioridade constitutiva e, ao mesmo tempo, a construção da razão pela qual pertencemos a uma história individual e coletiva que se unem, e se julgam uma à outra. Como se fosse uma corrente contínua de redefinição, de recomposição, a partir de lógicas coletivas e vivências singulares, a memória animava a sucessão de gerações e participava, de forma subterrânea, mas ativa, da história renovada da sociedade. Arqueologia e memória andam juntas. Agora, será que ainda devemos nos lembrar? Ainda faz sentido gastar tanta energia para guardar na memória? Já não existem processos de “estocagem” suficientemente viáveis que podem, finalmente, nos liberar dessa pesada responsabilidade de nos lembrar, enquanto o próprio sentido da nossa vida nos escapa?

A pergunta passa a ser então: como fazer para sair da memória, se desvencilhar, se livrar dela? Temos que contar com o esquecimento, o esquecimento como abertura possível para a novidade, para a possibilidade de aceitação de uma nova rememoração.[6] Somos obrigados a constatar que o esquecimento de nós mesmos já está acontecendo, e que se ainda não temos consciência disso é porque estamos convencidos de que, em algum lugar, alguém, ou melhor, alguma coisa está encarregada de se lembrar, de nos lembrar…

A Revolução de que estou falando está ligada, entre outras coisas, à memória, ao risco não tanto do seu desaparecimento quanto da sua transformação radical. Estamos confiando nossas memórias a instrumentos que, é o que imaginamos, vão levar, guardar, repertoriar e repetir, quando bem entendermos, nossas lembranças, nossos saberes. Não estou falando da minha geração nem dos mais velhos, ancorados nessa sociedade lenta de trinta anos atrás; falo da sociedade do futuro, dessa sociedade que ouso chamar, com muita incerteza e, paradoxalmente, em relação ao desenvolvimento das memórias virtuais, de “sociedade do esquecimento”. A cibersociedade que vejo se instalar através de nossos filhos sai do sistema trinitário – era preciso um terceiro para saber que éramos dois e que o outro existe – para entrar numa sociedade radicalmente binária cujo protocolo de pensamento, a relação com o mundo, é binário: bem ou mal, sim ou não, gosto ou não gosto etc. Voltando à sociedade do esquecimento, isso não quer dizer que não teremos mais memória, mas que nos lembraremos de outra maneira, e que talvez nos lembremos de outras coisas diferentes daquelas que acreditávamos que era importante lembrar. Nossos filhos são diferentes, nascem no nosso mundo com um valor a mais do que aqueles que conhecemos. Eles estão inscritos na cibernatureza; são seus produtos e seus produtores – seus sonhos, suas lembranças de infância não se parecerão mais, ou muito pouco, na sua expressão, com as nossas, com aquilo que elas ainda são hoje em relação aos mais velhos. O sistema digital exige, quanto à concepção do imaginário, a mobilização sistemática de todos os saberes para o serviço da inovação, e isso a partir de um fato que lhe deu origem: a adoção (deveríamos dizer a imposição) da norma TCP/IP. Ela foi criada nos Estados Unidos, inicialmente como modo de transmissão, utilizado pelo exército americano, de uma rede digital mundial, a Internet, que nossas democracias adotaram recentemente, e que nos submeteu às suas prescrições, obrigando-nos, para poder utilizá-la, a repetir a ideologia que, através de órgãos de propaganda não-declarada, a América difunde inconsequentemente pelo planeta![7] Estamos conectados: estamos todos na Internet, presos na teia, caímos todos na Rede!

O que aconteceu com a memória, nessa história? Cada vez que usamos nosso computador, interagimos com um formidável sistema da memória, numa máquina que recebeu instruções, programas e rotinas através de chips de silício que injetam em seus circuitos organizados o máximo de nossas futuras lembranças. A pergunta, porém, permanece: um computador pode viajar no tempo, revisitar e reviver o passado como nós o fazemos? Será que um computador poderá algum dia sentir que uma lembrança lhe pertence? Por extensão: poderão os computadores, em seu princípio, ter uma forma de experiência consciente? Ou seja, o computador atingirá a mesma sensibilidade subjetiva dos homens? Será que ele vai conseguir nos convencer de que pode fazê-lo? Será que ele terá suas próprias lembranças e conseguirá nos convencer? Os biólogos nos tranquilizam afirmando que a riqueza da experiência humana da lembrança não pode ser descrita de forma adequada pela linguagem empobrecida da informática, tal como arquivo, recuperação, entrar, sair… e que não existe resposta para esta pergunta que quer saber se as máquinas serão, um dia, capazes de produzir, imitando um substrato biológico humano (ou animal), a experiência de reviver seu passado. Mas a pergunta persiste; em outros termos, será que a máquina será capaz de se inventar a si mesma, de ter sentimentos, baseada nas suas próprias lembranças explícitas, subjetivas, do passado, do seu passado. Muitos já afirmam que a consciência humana é produzida pelo funcionamento de alguma coisa que se parece com um programa de computador. Isso significa que o debate sobre a consciência dos computadores está lançado; debate que vem se juntar a uma outra pergunta: todo ato de memória exige uma experiência consciente da lembrança? Não há dúvida de que o computador tem uma memória, pois para isso foi certamente desenvolvido um sistema de memória falsa ou necessária, ou melhor, de uma falsa memória verdadeira. Da mesma forma que, outrora, delegamos, confiamos ao cachorro nosso sentido do odor, também confiamos ao computador a tarefa de organizar nossa memória, deixamos que ele se encarregue de organizá-la para podermos visitá-la mais ampla e rapidamente; dessa vez, porém, a delegação não é mais ao mundo animal, com o qual ainda podemos fazer algum tipo de associação, mas sim a máquinas, programas. Será que chegaremos a ter computadores tão aperfeiçoados, dotados de afetividade, que acabarão se rebelando, explodindo, por exemplo, os blocos de memória?

Volto, então, a falar do esquecimento, isto é, da produção artificial do esquecimento para melhor compreender o nosso. O Esquecimento estaria ligado à função do número de blocos de memória, ou seja, ao desaparecimento do número de estruturas biológicas que os suportam. Atualmente, depois do difícil reconhecimento da Inteligência Artificial, AI, o sentimento comum pensa e descreve o cérebro como se fosse um computador, um simples (ou complexo) sistema de processamento da informação – a analogia cérebro/computador funciona nos dois sentidos. Então, ao “como nos lembramos?” vem se juntar esta outra pergunta: “como deixamos de esquecer?”. Através da imagem, respondem os especialistas da memória, afirmando que o reconhecimento pela imagem é o mais poderoso de todos os reconhecimentos do passado. Mas, nesse fluxo de imagens televisuais e publicitárias, imagens esmaecidas, repetidas, que ingerimos, digerimos, onde reencontraremos o político, o político no sentido da polis grega, da vida da cidade?

Acontece que os filósofos estão refletindo agora sobre essa pergunta.[8] Tomando como ponto de partida a filosofia das Luzes, na Europa, após a qual a humanidade podia sonhar que estava caminhando para a idade de ouro, eles constatam que, sob pretexto de autonomia, foi a anomia que se instalou. A utopia do progresso certamente se transformou em utopismo técnico-informático, e os indivíduos, ao invés de se aproximarem, viverem juntos, realizarem nesta terra a cidade ideal, estão cada vez mais se afastando uns dos outros, como se pode ver pela crescente aceleração de todas as formas de movimento: geográfico (trem, avião, carro), social (transferências), matrimonial (famílias recompostas) e político. Isso faz do espaço social um espaço de instabilidade, como podemos constatar, “um espaço sem horizontes de sentidos legítimos” no qual nenhum projeto coletivo pode ser esboçado. Há uma espécie de “vacuidade de sentido num mundo idealmente sem fronteiras, que tende a não ter limites, e prosaicamente sem projetos”, escreve Pierre André Taguieff. “A depressão dos modernos tardios vem da experiência de uma perda de sua potência de agir e de sua impotência para imaginar o futuro (…) Ser moderno é, primeiramente, estar voltado para o futuro, é pensar no futuro e viver totalmente orientado para o futuro.”[9] É assim que, com o atual culto do movimento pelo movimento, surge um novo modo de fatalizar o tempo.

Volto a meu vilarejo da Borgonha, que todas as noites se enche, e todas as manhãs se esvazia de seus moradores, exatamente como se fosse um balão sem ar, sem gás. Essa vida centrífuga que é chamada de “movimentismo” nos reduz à nossa própria insularidade – esse produto do individualismo extremo que faz com que, mesmo nos vilarejos, nos afastemos dos vizinhos para viver mais tranquilamente, é o que se diz, para que o outro não entre mais na nossa esfera privada, familiar, no nosso território, reduzido, mas nosso: nosso “cantinho”, enfim, no qual experimentamos, com preocupação (os políticos inventaram a insegurança), às vezes com depressão, as consequências imediatas da perda de nossas filiações, de nossas raízes, tudo isso ao mesmo tempo em que aceitamos, ou quem sabe procuramos, o encurtamento de nossos horizontes temporais. É assim que, desprovidos de um passado que nos fornecia um sentido, nos privamos de um futuro cuja única possibilidade é a busca indefinida do processo técnico-informático, corrida perpétua e deliciosa sempre para a frente, criada pelos teóricos da globalização, feliz e salvadora, segundo nos afirmam.

A supressão do futuro se dá ao mesmo tempo em que os indivíduos em processo de individualização extrema – vocês, eu, nós – instalam­ se, como diz Geroge Orwell, num “presente perpétuo sem passado nem futuro”, a tal ponto que não sabemos mais muito bem não apenas quem somos, mas também onde estamos.

A política vai lentamente, mas firmemente, se transformando em religião, quero dizer que ela se propõe a regularizar (legalizar) nossa vida cotidiana (globalização, proibição de fumar, de comer açúcar, de consumir bebidas alcoólicas etc.). Da parte dos políticos, estamos assistindo a uma “protestantização” da sociedade, sob a influência anglo-saxônica – que se opõe à parte latina do mundo-, a uma ascendência do Norte sobre o Sul, na qual o puritanismo está prevalecendo sobre a vida, na qual moralizamos o outro achando que sabemos melhor do que ele o que é bom para ele. Atualmente, todos são especialistas de alguma coisa, a tal ponto que cada um só sabe aquilo que sabe, e aquilo que sabe se torna uma religião durante algum tempo, no dia seguinte, é possível trocar de crença e se tornar especialista de outra coisa… Isso explica que os políticos não são mais políticos, mas técnicos, gestores, nessa nossa sociedade hiperracionalista, convencidos de que acompanham os rumos da história.

Retomando Taguieff, a religião política da adaptação àquilo que constitui a sacralização do mundo atual entra em choque com a vontade, de origem mágica, de dominar o tempo, de vencê-lo, não mais fazendo previsões do futuro, mas fabricando-o!

O sonho de onipotência biotécnico-científico atingiu seu ponto culminante e se impõe como uma nova relação com o mundo, exigindo um binarismo no lugar do trinitário, produzindo talvez essa mutação radical do político, tirando-nos do modelo grego da democracia para nos fazer vivenciar nosso dia-a-dia, não mais como uma vida social, mas como uma vida num perpétuo laboratório, onde tudo é regulamentado por sucessivas moratórias, em nome das normas daquilo que acreditamos ser uma democracia pluralista. Estamos, portanto, acuados entre programas de dominação, princípios de precaução, etnocismo e rentabilidade, tudo isso sob a dependência principal da economia e das finanças – o capitalismo -, que fazem do político “um objeto perdido, algo como um sonho arcaico”.[10]

E nós, sujeitos-consumidores aplicados em seguir respeitosamente certos procedimentos, em obedecer aos protocolos de todos os tipos, em estar disponíveis todas as manhãs para ações humanitárias urgentes, em remediar catástrofes que, evidentemente, não são de nossa alçada, enfim, em agir em prol de causas abstratas e mundiais, estamos presos na armadilha do global. A globalização produz uma ética comum, a ética do medo, que nos reúne no nosso imenso esforço não-conjunto para evitar o pior – entendam por isso a autodestruição da humanidade -, e é por isso que o político não tem mais nome, porque cada projeto, tão logo enunciado, se tornará imediatamente ultrapassado por esse universo biotécnico que nos explica antes mesmo que possamos existir!

Tradução de Hortencia Santos Lencastre

Notas

  1. Pascal Dibie, Le village retrouvé, essai d’ethnologie de l’intérieur, Paris, Grasset, 1979 / Aube­ Essai, 2005 . 
  2. Pascal Dibie, Le village métamorfosé, Révolution dans la France profonde, Paris, Plon, col.

    Terre Humaine, 2006. 

  3. Bernard Noel, La privation de sens, La privation de sens, Barre, ed. Barre parallèle, 2006. 
  4. Marc Fumaroli, Exercices de lecture, Paris, Gallimard, 2006. 
  5. Idem, ibidem. 
  6. Anne Muxel, Individu et mémoire familiale, Paris, Nathan, 1996. 
  7. Nicole Lapierre, “Dialectique de la mémoire et de l’oubli”, in Communication, Paris, Seuil, 1989. 
  8. Bernard Stiegler, Mécréacte et Discrédit, la décadence des démocraties industrielles, Paris, Galilée, 2004. 
  9. Pierre André Taguieff, L’effacement de l’avenir, Paris, Galilée, 2000. 
  10. Stiegler, op.cit. 

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