1994

A ópera de Rousseau

por Alain Grosrichard

Resumo

Novembro de 1769. Suíça. Numa casa perdida nas montanhas, vive Rousseau. Solitário, doente e perseguido, ele retoma a redação de um livro abandonado há dois anos. A história de suas maldades, traições, perfídias. Lembranças tristes e pungentes. São suas “Confissões”, em que persegue a verdade. Se ela é insuportável para ele ou outros, isso pouco importa.

Mas nem tudo que é lembrança é sombrio. Afinal, houve dois anos de juventude em Veneza, com suas vozes, doces, melodiosas, apaixonadas. Que novidade há nisso? Para quem foi educado para desprezar a música italiana, toda. No caso do sensível Jean-Jacques, uma canção que emanava de uma gôndola venceu o preconceito, pois, mais do que outra música, ele sentia ouvir a música brotando de sua fonte. Primeira e pura, ela tornava irreconhecíveis as harmonias do erudito Rameau e suas óperas sem árias.

É que a língua italiana, sonora, acentuada, vocálica, já é música. É então, para Rousseau, como se só houvesse música italiana, ou melhor, como se só ela pudesse haver, preservada que estava a voz nela.

Foi mesmo uma descoberta. Tanto que Rousseau não demorou a alugar um camarote na ópera, aonde ia escondido, cansado que estava de falações, comidas, jogos…

É no camarote. Rousseau dorme – mais profundamente do que se estivesse em sua própria cama. De repente, ouve anjos. Acorda maravilhado. Estaria no paraíso? Quase. Era uma ária, de cuja passagem jamais esqueceu. Ela começava assim: “Conservami la bella/Che si m’accende il cor”. O nome da ópera? Não se sabe. O autor? Tampouco. O librelista? O nome de um intérprete? Um sonho? Talvez. Ou talvez Rousseau tenha atravessado a ribalta. É um caso a investigar. Em que dia teria acontecido tal maravilha? Rousseau não o registrou. E quanto ao resto da ópera? Não quis saber. O que explicaria, enfim, tantos lapsos? Talvez a tentativa de tentar reduzir à simples anedota uma vivência exemplar: a da descoberta da música italiana por Jean-Jacques.

De todo modo, tal vivência não foi vã, já que, convertido, cumprirá missão na França. Como músico e teórico da música, será incansável na difusão da ópera italiana. Tanto na “Carta sobre a música francesa” quanto no “Dicionário de música”, insistirá no jogo harmônico como obstáculo no caminho da fruição musical. É de então sua querela com Rameau, pela qual é quase apedrejado.

Lutará ainda muito pela música, nem que seja metaforicamente. Não por acaso, lê-se em “Emílio”: “Se o instinto divino fala a todos os corações, por que tão poucas pessoas o ouvem? Oh, é que ele nos fala pela língua da natureza, que tudo nos fez esquecer”. Ou (ainda em “Emílio”): “Ouvir o divino Orfeu cantar os primeiros hinos, e ensinar aos homens o culto dos deuses”.

Enfim: com a publicação de seu “Sistema de música”, a galáxia musical dentro do universo de Rousseau torna-se vasta. São muitas as remissões a ela. Até porque foi ele um dos primeiros filósofos a notar que, diante da sociedade moderna, a voz falha. Será, portanto, difícil voltar a ouvir o canto do gondoleiro veneziano ou acordar, num camarote de ópera, ao som de uma ária divina.


Novembro de 1769: refugiado numa casa de campo perdida nas montanhas do Dauphiné, sozinho, doente, e definitivamente persuadido de um vasto complô tramado a seu redor para desfigurá-lo aos olhos dos homens, Rousseau decide retomar a redação de suas Confissões, interrompida há dois anos.

Ele havia gostado de escrever os seus primeiros livros, repletos de lembranças felizes de sua juventude. Mas é na angústia e no sofrimento que ele se vê obrigado a abordar agora a segunda parte da história de sua vida. Sua memória, desde então, não lhe oferecerá mais senão “infortúnios, traições, perfídias, recordações tristes e pungentes”. Não importa: ele deve dizer a verdade, ainda que insuportável para si mesmo e os outros, e fará o impossível para que ela seja ouvida:

Por tudo no mundo desejaria poder sepultar na noite dos tempos o que tenho a dizer, e, forçado a falar contra minha vontade, sou ainda constrangido a me ocultar, a usar de artimanhas, a enganar, a me rebaixar em coisas para as quais eu era o menos talhado; as tábuas do soalho onde estou têm olhos, as paredes que me cercam têm ouvidos; cercado de espiões e de ares malévolos e vigilantes, lanço às pressas no papel, inquieto e desatento, algumas palavras que mal tenho tempo de reler, e muito menos de corrigir. Sei que, apesar das barreiras imensas que não cessam de amontoar a meu redor, há sempre o temor de que a verdade escape por alguma fissura. Como hei de fazer para fazê-la passar? É o que tento com pouca esperança de sucesso. Que julguem se há aqui elementos para fazer quadros agradáveis e dar-lhes um colorido atraente!

escreve Rousseau no início do Livro VII, que abre a segunda parte das Confissões.[1]

Mas nem tudo parece tão sombrio quanto ele anuncia, pelo menos à leitura desse Livro VII cuja maior parte relata a temporada de Jean-Jacques em Veneza, de 4 de setembro de 1743 a 22 de agosto de 1744, na qualidade de secretário do embaixador da França, com a tarefa de cifrar e decifrar as correspondências diplomáticas confidenciais. É verdade que sua carreira de Hermes funcionário teve um final prematuro, e um mau final, uma vez que, tendo despertado o ciúme e logo o ódio do embaixador (que ele no entanto servia, ao que parece, com devoção filial), foi obrigado a deixar Veneza bruscamente, após uma cena cheia de estardalhaço e furor. Não era a primeira. Mas seu chefe, já “propenso a cóleras muito ferozes”, desta vez havia ultrapassado os limites do suportável. “Após torrentes de injúrias abomináveis”, não havia ele ousado acusar seu secretário de ser agente duplo, e de ter traído a França vendendo o segredo das cifras?[2]

Misturados ao concerto de calúnias orquestradas por seus atuais perseguidores, os berros desse furioso ressoam ainda mais dolorosamente, é verdade, na cabeça em delírio do proscrito de Monquin. Mas outras vozes acompanham sua recordação de Veneza, vozes que fizeram então e continuam a fazer suas delícias, quando conseguem escapar do infernal parasitism° que as cobre. Vozes italianas, essas, doces, melodiosas, apaixonadas como ele jamais havia ouvido e não imaginava poder ouvir jamais, antes de chegar a Veneza.

Que há de espantoso? Ele vinha da França, e partilhava ainda “o preconceito existente nesse país contra a música italiana”.[3] Mas bastara-lhe uma simples e ingênua barcarola, ouvida talvez na gôndola que o conduzia, através dos canais, até o palácio Quirini, sede da embaixada da França, para arrancá-lo de vez, e desde o primeiro dia, desse preconceito dogmático, e fazer-lhe descobrir o que pode uma voz sobre um coração, quando ela canta de verdade.

Revelação súbita, perturbadora. Ao ouvir cantar Veneza, com efeito, não era apenas uma outra música que ele descobria, era a música mesma brotando da fonte, a música tal como deveria ter sido na origem, pura melodia, primeiras vozes acentuadas que arrancaram dos primeiros homens suas primeiras paixões. Uma música tornada irreconhecível agora (dirá Rousseau) nas soporíferas harmonias do demasiado erudito Rameau, o qual, em 1743, já dava muito o que falar com suas óperas. Dava muito o que falar, sim, mas só isso. Pois a música não canta, nessas óperas. Como a voz dela poderia cantar? Faltam-lhe ares, faltam-lhe árias. Submetida à força a uma língua feita para ser escrita, não cantada, ela sufoca sob um acúmulo de consoantes, e as raras vogais que encontra lhe servem para emitir horríveis gritos, que são os de sua própria agonia.

Para que viva a música, vocal de origem e por essência, lhe é preciso o ar da Itália, com a língua sonora, acentuada, rica em vogais, em suma, já musical e cantante, que nela se fala. Assim, não há música senão Itália na, a única que não foi amputada de sua voz autêntica, órgão natural de seu prodigioso poder. E é o eco múltiplo dessa voz perdida que Jean-Jacques, toda vez que deixa suas cifras e sai da embaixada da França, tem a felicidade de encontrar no ar de Veneza, por toda parte vibrante de melodiosos acentos, ao longo dos canais, mas também nas igrejas, nos salões e — evidentemente — na Ópera, da qual ele não tarda a tornar-se um amante fervoroso e apaixonado. A ponto de, conta Rousseau, “cansado de tagarelar, comer e jogar nos camarotes, quando eu gostaria apenas de escutar, esquivava-me com frequência dos acompanhantes para ir a outro lado. Ali, sozinho e fechado em meu camarote, entregava-me, apesar da duração do espetáculo, ao prazer de gozá-lo à vontade e até o final”

Gozo que, numa ocasião pelo menos, tomou uma forma um tanto paradoxal ou equívoca, a julgar pelo exemplo que escolhe imediatamente o autor das Confissões para ilustrá-lo:

Um dia, no teatro de São Crisóstomo, adormeci, e bem mais profundamente do que o teria feito em minha cama. As árias ruidosas e brilhantes não me despertaram. Mas quem poderia exprimir a sensação deliciosa que me causaram a doce harmonia e os cantos angélicos daquela que me despertou. Que despertar! Que maravilha! Que êxtase quando abri no mesmo instante os olhos e os ouvidos! Meu primeiro pensamento foi acreditar-me no Paraíso. Essa peça encantadora que recordo ainda e que não esquecerei para o resto da vida, começava assim: “Conservami la bella/ Che si m’accende il cor”. Quis ter esse trecho, tive-o, e conservei-o por muito tempo; mas ele não estava em meu papel como estava em minha memória. Eram exatamente as mesmas notas, mas não era a mesma coisa. Essa ária divina jamais pode ser executada a não ser em minha cabeça, como aconteceu de fato no dia em que ela me despertou.[4]

Recentemente[5] me interessei por esse pequeno trecho de literatura, suspeitando que o pequeníssimo trecho de ópera que ele evoca poderia de fato abrir, como Rousseau esperava, uma dessas diminutas fissuras por onde a verdade escaparia. Ora, não apenas á verdade consegue realmente escapar, como também, pareceu-me, uma parte dessa verdade — a sua verdade — escapa a Rousseau, como se tivesse encontrado aí a ocasião sonhada de deixar discretamente o teatro onde a coloca em cena, de cruzar a ribalta das palavras que a contêm ou a recalcam, e de vir dizer-nos mais, a nós, sobre Jean-Jacques ou Rousseau, do que sabe o próprio autor das Confissões.

As tábuas do soalho onde estou têm olhos, as paredes que me cercam têm ouvidos”, ele geme. Talvez repugne a você deixar-se incluir no bando de espiões que o obsedam, e que continuam a atormentá-lo há dois séculos. Mas não é por malquerença, nem para com ele, nem para com você, que o convido hoje a retomar e a completar comigo minha investigação. Digamos (sem acreditar demasiadamente nisso) que é pelo mesmo amor à verdade que aquele que anima Rousseau.

Abramos novamente, pois, “os olhos e os ouvidos” sobre esse texto equívoco, como Jean-Jacques abriu os seus, um dia, sobre a cena de um teatro veneziano, no momento em que, maravilhado, extasiado, acabava de ser arrancado do sono por uma certa “ária divina” — da qual Rousseau, infelizmente, retranscreveu no papel apenas os dois primeiros versos, e não a música.

A quem então ela se endereçava, essa ária? E por quem, designando quem, em que ópera, representada em que dia? Rousseau não nos diz. Por quê? Simplesmente — hipótese de bom senso — porque não se lembra mais? Jean-Jacques, apaixonado por óperas, viu e ouviu tantas durante sua estada em Veneza, e tantos anos se passaram desde então, que Rousseau, que aliás se queixa de sua fraca memória, pode muito bem ter esquecido em que data foi representada a obra na qual se encontrava a ária em questão, bem como seu título, os nomes do compositor, do libretista e dos intérpretes.

Mas pode ser também que, tendo guardado alguma lembrança desses detalhes, ele se abstenha de mencioná-los, para evitar reduzir à categoria de simples anedota um acontecimento que ele procura tornar exemplar, afinal de contas, do que foi para ele a descoberta da música italiana, a saber: a ocasião de uma conversão súbita, radical, definitiva. E isso, justamente, o texto nos faz saber, em uma palavra: a única informação precisa[6] que ele consente em nos dar refere-se, com efeito, ao nome do teatro onde se produziu o acontecimento. Esse teatro era o de “São Crisóstomo” — o santo, diz a lenda, que operava milagrosas conversões naqueles cujos ouvidos e o coração dispunham-se a acolher a divina mensagem transmitida por sua “boca de ouro”.

Escolhido pelos venezianos para batizar um de seus mais prestigiosos templos da música (sabe-se que era reservado às opera seria), não consagra também esse nome sagrado, por metonímia do continente ao conteúdo, o que se canta nesse teatro? E os virtuoses no auge de sua arte, que, no santuário de tal padroeiro, abrem a boca para entoar uma ária, será que podem não assumir um pouco o ar de sãos crisóstomos, eles que são tidos por cantar “divinamente”, e que merecem ser escutados religiosamente: não tagarelando e tomando sorvetes, a exemplo dos descrentes da alta sociedade, mas com uma espécie de devoção mística, como faz Jean-Jacques, toda vez que abandona os acompanhantes para se isolar em seu camarote, ávido apenas de alimentos celestes, totalmente entregue à voz que fala a seu coração, que o penetra e já o inflama?

É verdade que ele adormeceu, naquele dia. Mas não por culpável indiferença para com a divindade que adora! Pelo contrário: é porque ela não comparece, e doravante ele tem a força de permanecer surdo às seduções baixamente sensuais, às solicitações ruidosas de todos os falsos profetas, mesmo às desse compositor (embora italiano, mas certamente contaminado por Rameau) que ousa vir hoje profanar a música em seu próprio templo.

Mas, ao fugir da cena onde um vozerio ímpio a impede de fazer-se escutar pelo público, não se diria que a verdadeira voz da música buscou refúgio numa outra cena, e a encontrou na secreta intimidade daquele que dorme, ali, em seu camarote, tão profundamente como se fosse em sua cama? Pois, lendo-se o texto de Rousseau, é de fato na cabeça mesmo de Jean-Jacques adormecido que ela se pôs primeiramente a executar a ária divina que começava assim: “Conservami la bella/ Che sí m’accencle ii cor” — e que Jean-Jacques desperto ouve em seguida repetir-se do mesmo modo, quando abre de repente os olhos e os ouvidos sobre o virtuose vestido de sua personagem que, dirigindo-se a uma outra personagem disfarçada, em presença de não se sabe que terceiro igualmente travestido, fez-se o intérprete dela, num cenário de sonho, há já um certo tempo.

Estranha repetição, que se presta ao equívoco. Mas essa repetição, em si, nada tem de inexplicável: pois se trata de uma ária, e sabemos que uma ária de ópera italiana, na época, termina ordinariamente como começa, por uma retomada em da capo — esse é o termo. Dito de outro modo, canta-se, uma segunda vez pelo menos, e em todo caso para terminar, o que se cantava na abertura.

O estranho está antes no fato de que Jean-Jacques, ouvindo uma voz muito doce, melodiosa, angélica, cantar em sua cabeça esses dois versos de abertura, desperte em sobressalto, ao passo que o alarido que se desencadeara antes não havia perturbado seu sono, muito pelo contrário. É verdade que há exemplos (o próprio Rousseau os fornece, em seu Díc-tionnaire de musique) desse tipo de despertar provocado, não por um ruído, mas pela cessação de um ruído. Mas esse ruído, no caso, parece provir menos do vozerio que do parasitismo. É um ruído que, no sentido que lhe dá hoje a teoria da informação, confunde a mensagem, torna-a indecifrável; em suma, perturba ou impede qualquer comunicação, qualquer entendimento, entre o emissor e o receptor. Ora, tudo se passa como se, ao encerrar-se primeiro em seu camarote, depois em seu sono, o jovem secretário de cifras da embaixada da França tivesse buscado suprimir esse parasitism°, e conseguido captar uma mensagem cujo eco, modulado em mil melodiosas variações, tantas vozes já lhe retransmitiam em Veneza. Mas é em sua fonte que ele a capta hoje, reduzida à nudez de seu tema e interpretada por uma voz que parece ter se destacado do coro, solo sublime, para ficar a sós com ele — tão clara, de uma evidência tão perturbadora, que ele desperta em sobressalto.

Pois, o que quer dizer essa mensagem? Ela passará a ter sentido, é claro, uma vez reinterpretada, da capo, pela personagem que Jean-Jacques perceberá dentro de um instante, ao abrir os olhos e os ouvidos sobre a cena. Desse sentido nada sabemos, na falta de qualquer informação sobre a obra cantada que constitui o contexto dramático da mensagem em questão.[7] O único contexto a que podemos referi-lo é o texto mesmo das Confissões que temos sob os olhos, nós, leitores.

O texto: digamos esse tecido apertado da prosa francesa, cuja trama mal se esgarça, mas o suficiente para deixar passar os dois primeiros versos de uma ária italiana: “Conservami la bella/ Che si m’accende ii cor…”. Dois versos (o resto da cadeia permanecendo velada) que se dão a ler como a expressão premente, imperativa, de uma demanda formal, mas sem conteúdo determinado para nós como tampouco o era para Jean-Jacques ao emergir do sono, antes de retomar o fio da intriga que se desenrolava em cena.

Enunciado significativo, portanto, mas privado de sentido próprio, onde os lugares do enunciador, do objeto, do destinatário são claramente designados, mas designados como vacantes, portanto a serem ocupados. De modo que, lançada nos bastidores, essa demanda é primeiramente demanda de sentido. A forma vazia desse apelo de amparo provoca, ousaria dizer, um apelo de ar ou de ária. E esse imperativo ordena, para quem realmente lhe der ouvidos, que lhe seja dado o meio de fazer-se ouvir, a começar por ceder a ele sua voz.

O que se passa, então, no momento em que Jean-Jacques, tranquilamente adormecido em seu camarote, desperta e goza subitamente — um gozo que o transporta ao sétimo céu em ouvir essa mensagem emitir-se? Ele ouve-se emiti-la. Pois quem, senão ele mesmo, aqui, agora, está em situação de pedir que lhe conservem o objeto de sua flama? E que objeto temeria ele tanto perder, se não essa ária divina cantada aqui, agora, e por essa voz, intérprete equívoca, cuja beleza o inflama, e que ele sabe ameaçada de sufocamento? A quem, enfim, é dada a ordem que ela formula, se não a ele mesmo, designado de vez, aqui, agora, como o guardião eleito dessa voz equívoca, que vem se abrigar nessa cena cujo palco sua própria cabeça fornece?

Seta de fogo que, tocando-o no coração, desperta-o para sua vocação. Ele acabava de descobrir o Paraíso. A Itália era sua terra prometida. O país de missão será a França. Retornando a Paris, ardendo de um fogo que não mais se extinguirá, ele será ali o embaixador dessa voz divina, o evangelista de sua sagrada mensagem, o são Crisóstomo, em uma palavra, dessa verdade ultramontana de que não há outra música senão a música italiana, revelada “um dia, no teatro de São Crisóstomo”.

Prosélito entusiasta, e encarregado de missão junto aos franceses, ele o será como músico, e também como teórico da música. Dando-lhes a conhecer, graças a seu Adivinho de aldeia, um pouco do Paraíso perdido que havia descoberto em Veneza. Ensinando-lhes sem descanso, desde sua Carta sobre a música francesa até seu Dicionário de música, que a harmonia não é o bom meio de atingir esse paraíso e saborear seus gozos.

E não hesitando, por ocasião dessa espécie de guerra de religião forrada de guerra civil que foi a “querela dos Bouffon”, em entrar na arena (do lado “da rainha”) e expor-se como Mártir aos gritos de ódio, às injúrias mais caluniosas, às cóleras mais ferozes dos partidários “do rei”, atiçados contra ele por Rameau. Em suma, não contente de obedecer ao imperativo íntimo que canta dentro dele, para ele, desde Veneza, quer fazê-lo cantar em todos, e para todos, agindo sempre de tal maneira que a máxima de sua ação (seja como compositor ou como teórico) possa valer como lei universal da natureza.

Da natureza: pois é de fato a natureza que fala dentro dele e que o inspira, pela voz da música que ele busca encarniçadamente fazer ouvir. A natureza, a respeito da qual pretensos filósofos em moda na França afirmam, no mesmo momento, que ela não é senão um certo arranjo de átomos que causam mecanicamente efeitos necessários sobre alguns outros arranjos de átomos, que esses “filósofos” ousam chamar “natureza humana”. Confessos ou não, esses materialistas recusam ver nela o providencial desígnio do deus vivo que a anima, porque recusam escutar a voz que, dentro deles, lhes garante que se enganam. “A Natureza é muda, interrogamo-la em vão”, dizem esses filósofos com Voltaire. Eles são surdos a essa voz, da mesma forma que o são à da música italiana, preferindo à sua melodia doce e simples as harmonias eruditas, ensurdecedoras, de sua pretensa música, esse arranjo de sons que serve apenas para fazer vibrar os ouvidos. Como surpreender-se então que vibrem de prazer ao escutar Rameau, a exemplo do próprio Voltaire, seu primeiro promotor e principal defensor? Essas óperas sem árias harmonizam-se perfeitamente com o mundo sem alma desses filósofos. Esse vazio sonoro devolve-lhes complacentemente o eco de si mesmos! Esse ruído cheio de silêncio concorda fielmente com sua doutrina!

Bem diferente será a lição que o vigário saboiano, porta-voz do autor de Emílio, ele próprio futuro autor das Confissões, dará a seu jovem discípulo, que, por sua vez, muito se assemelha ao rapaz de dezesseis anos chamado Jean-Jacques, de quem os Livros II e iii das Confissões narrarão as andanças de um lado a outro dos Alpes, e o salutar encontro com um certo abade Gaime, original desse vigário. O qual exclama: “Consciência! consciência! instinto divino, imortal e celeste voz, guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre”, antes de explicar que “não é suficiente que esse guia exista, é preciso saber reconhecê-lo e segui-lo. Se ele fala a todos os corações, por que tão poucos o ouvem? Oh, é que ele nos fala pela língua da natureza, que tudo nos fez esquecer”.[8]

Tudo: a começar por nossas línguas artificiais, poderia ter acrescentado o autor de Emílio, e particularmente a língua francesa, a mais antinatural, e portanto a menos própria de todas,[9] exceto para alimentar a perpétua tagarelice de uma sociedade corrompida, ao zumbido da qual vêm juntar-se sermões estridentes ou brilhantes tiradas, os brados de um teólogo contra um filósofo, ou os de um filósofo contra um teólogo, tão fanáticos aliás tanto um como outro, e rivalizando em impostura, nesse vasto teatro do mundo onde a natureza foi outrora a única vedete, para discursar em seu lugar: cacofônico concerto, como se verifica ordinariamente na Ópera de Paris.[10] De que maneira, num tal vozerio, esperar ouvir ainda a voz de sua consciência, supondo que se queira? Pois, prossegue o vigário:

a consciência é tímida, ela ama o retiro e a paz, o mundo e o ruído apavoram-na, os preconceitos que a fizeram nascer são seus mais cruéis inimigos, ela se evade ou se cala diante deles, cuja voz estridente abafa a sua e a impede de fazer-se ouvir; o fanatismo ousa falsificá-la e ditar o crime em seu nome. Ela se afasta, enfim, à força de ser dispensada. Não nos fala mais, não nos responde mais, e, após tão longo desdém por ela, custa tanto lembrá-la quanto custará bani-la.

Quantas vezes me aborreci em minhas buscas com a frieza que sentia em mim! Quantas vezes a tristeza e o tédio, derramando seu veneno sobre minhas primeiras meditações, me tornaram essas insuportáveis! Meu coração árido concedia apenas um zelo frouxo e morno ao amor à verdade. Eu me dizia: por que me atormentar em buscar o que não existe? O bem moral é apenas uma quimera; não há outro bem senão os prazeres dos sentidos. Oh, quando se perdeu uma vez o gosto dos prazeres da alma, como é difícil readquiri-lo! Quão mais difícil ainda é adquiri-lo quando jamais se o teve![11]

Ele conseguiu, porém. Descobriu, à escuta da verdade, de que espécie é o gozo prometido aos bem-aventurados no Paraíso, e descobriu que esse enlevo da alma nada tem de comparável com as cócegas dos sentidos que chamam neste mundo prazer. Não sendo, ou não sendo ainda, um anjo, ele reconhece, no entanto, que essa voz divina só lhe chega enfraquecida, longínqua, intermitente, sempre mais ou menos misturada com ruídos parasitas.

“Fiz o que pude para alcançar a verdade, mas sua fonte é muito elevada: quando as forças me faltam para ir mais longe, de que posso ser culpado? Cabe a ela se aproximar”, conclui ele, ao terminar a primeira parte de sua profissão de fé. Mas essas palavras inspiradas já encontraram um. eco no coração do jovem ao qual elas se dirigem, e que descreve seu efeito nos seguinte termos: “O bom vigário havia falado com veemência; ele emudecera, eu também. Eu acreditava ouvir o divino Orfeu cantar os primeiros hinos, e ensinar aos homens o culto dos Deuses […] À medida que ele me falava segundo sua consciência, a minha parecia confirmar o que ele havia dito”.[12]

Assim, coisa estranha, é o cantor legendário, é Orfeu que o jovem crê ouvir cantar uma daquelas árias que maravilharam, dizem, até mesmo os demônios e fúrias do Inferno — e de repente sua própria consciência começa a despertar.

Mas quem o faz dizer: “eu acreditava ouvir o divino Orfeu cantar…”? O autor de Emílio, não há dúvida. O qual acrescentou essa frase, num espaço intencionalmente aproveitado entre duas linhas de seu manuscrito, pouco antes de mandá-lo imprimir. Por que esse acréscimo singular de última hora? Para justificar, certamente, a introdução no livro a sair de uma gravura que representa, como nos diz a legenda, “Orfeu ensinando aos homens o culto dos Deuses”, e que é dada a ver, com efeito, por pouco que se conheça a edição original, justamente defronte à página em que se lê a frase em questão justamente quando se fala de Orfeu. Mas essa explicação não faz mais do que deslocar a questão. Por que, entre tantos outros possíveis, e aparentemente mais apropriados, ter escolhido Orfeu cantando para ilustrar esse texto? Como explicar a intervenção não muito católica de um herói da mitologia pagã nessa meditação muito cristã (pelo menos, o autor de Emílio estava profundamente convencido disso) sobre a consciência concebida como o único meio de acesso autêntico à verdade — já que é a voz mesma da Verdade revelando-se ao coração do homem?

Terão adivinhado a explicação que sugiro. Orfeu, o divino cantor da lenda pagã, é o simétrico exato, nesse texto, de são Crisóstomo, o não menos legendário pregador da Lenda dourada, no texto das Confissões.

Certamente, em vez do nome de Orfeu, é o do santo pregador que esperaríamos ver surgir, no momento preciso em que o jovem discípulo do vigário, até então desencaminhado (como Jean-Jacques em Turim) por mil preconceitos materialistas e dogmáticos, recebe a revelação do que pode a voz da consciência, quando se a deixa falar, num coração feito para escutá-la. E, inversamente, o nome de Orfeu seria por certo mais adequado que o de Crisóstomo, num relato destinado a ilustrar a revelação sobre os prodigiosos poderes da música, quando se a deixa cantar, que foi a ária de ópera ouvida por Jean-Jacques um dia, num teatro de Veneza.

Mas essa contradança de dois nomes próprios igualmente simbólicos, ainda que diversamente evocadores, tem justamente por efeito sobredeterminar cada um dos dois textos paralelos sobre os quais ela opera. Assim, sob o signo de “Orfeu”, a “imortal e celeste voz” da consciência evocada pelo vigário adquire um ar lírico, ouvida por seu jovem discípulo. Da mesma forma que, sob o signo de “são Crisóstomo”, a voz que canta a ária de Veneza se faz ouvir, na cabeça de Jean-Jacques, comb uma sagrada mensagem. E essas duas vozes não apenas se respondem de um texto a outro, mas se duplicam, no interior de cada um, elas formam um dueto, uma fazendo ora a parte de cima (“Cantos angélicos”), ora encarregando-se do acompanhamento (“doce harmonia”), e reciprocamente, mas sempre combinando-se, harmonizando-se, em suma, respeitando o grande princípio, caro a Rousseau, da unidade de melodia. Como se a verdade, solenizada pelo autor da Profissão de fé, que começara a revelar-se ao rapaz de dezesseis anos que era então Jean-Jacques, em Turim, fosse a mesma e única verdade que haveria de ser-lhe revelada quinze anos mais tarde, em Veneza, num teatro e em circunstâncias que parecem ter sido deliberadamente escolhidas, pelo autor das Confissões, para fazê-la valer da maneira mais convincente. Como se a voz de Orfeu só tivesse realmente se transformado em voz de ouro, para dizer essa verdade da consciência, ao vir cantá-la puríssima no teatro de São Crisóstomo, boca de ouro, onde Jean-Jacques adormecido a esperava. Conservami la bella/ Che si m’ac-cende ii cor”, ele ouve cantar em sua cabeça. E desperta.

Mas, ao despertar para a consciência, desperto pela consciência, é como voz sublime — a voz perdida e reencontrada da música — que ele a percebe inicialmente. E dizíamos que conservar essa voz deliciosa é como uma demanda feita por ele a si mesmo, voz que ele interpreta e cuja mensagem transmitirá através de sua obra de músico e teórico da música. Mas impor-se tal dever de conservar viva a voz da música, num século empenhado em sufocá-la, não significava também trabalhar para conservar viva e vigilante a voz da consciência sufocada pelos preconceitos filosóficos ou teológicos, dar-lhe o meio de fazer-se ouvir e servir de guia, a ele e aos outros? Será que não é preciso, para se poder perceber a voz da consciência (entendida como manifestação no coração do homem da verdade da natureza), ter primeiro tomado consciência da voz (entendida, na música, como o órgão natural dessa manifestação)? Rousseau cansou de repetir que toda a sua obra, do começo ao fim, não era senão a elucidação progressiva de uma mesma verdade revelada a ele e — por intermédio dele — a todos, para que nos seja lícito ler nela o desenvolvimento diversamente modulado, e mais ou menos ornado, numa orquestração mais ou menos rica, de um mesmo tema vocal (de uma mesma ária insistente e regularmente retomada em da capo por diferentes vozes) que conferiria a essa obra aparentemente díspar, e até contraditória, sua coerência profunda e sua unidade singular. O tipo de unidade característico, precisamente, de toda grande obra musical, a saber: a “unidade de melodia”, esse “grande princípio” que o autor do Dicionário de música opõe ao “princípio de Harmonia” de Rameau, e que ele nos diz que não teria descoberto se não tivesse percebido seus maravilhosos efeitos na música italiana, portanto, se Jean-Jacques não tivesse gozado ao ouvir cantar Veneza, num certo dia especial, no teatro de São Crisóstomo.

Mas a divina mensagem que ele recebe, e dedicará a vida a transmitir a seus contemporâneos, não será entendida. Ou melhor, será mal-entendida, maldosamente interpretada e finalmente devolvida a seu emissor sob uma forma diabolicamente invertida. Esse canto do Paraíso se converterá para ele em ruído infernal, essa demanda de amor em gritos de ódio, esse imperativo de gozo em promessas de morte, que irão se amplificando, se multiplicando, perseguindo-o de Paris a Genebra, de Genebra a Môtiers, de Môtiers a Wooton, de Wooton a Trye, até as portas dessa casa de campo de Monquin onde ele foi se encerrar, como Jean-Jacques outrora em seu camarote. Separado do mundo, mas livre também dos ruídos que o obsedam, ei-lo a sós com sua consciência. Com sua boa consciência. Ou sua má consciência? Como saber? E ele próprio o sabe?

Pois são suas Confissões que ele escreve, retoma, cuja segunda parte inicia:

Deixei-me, na primeira parte, no momento em que partia desgostoso para Paris, deixando meu coração em Les Charmettes, fundando ali meu último castelo no ar, e projetando levar para lá um dia, aos pés de minha mãe restituída a ela mesma, os Tesouros que eu tivesse adquirido, e contando com meu sistema de música como com uma fortuna assegurada…[13]

Seu sistema de música… A obra-prima graças à qual ele iria, pensava (era já seu sonho há muito tempo), “tornar-se um homem célebre, um Orfeu moderno cujos sons haveriam de atrair toda a prata do Peru”.[14] Em matéria de sistema, tratava-se de seu Projeto de novos sinais para a música, inventado expressamente, como ele explicará diante dos senhores da Academia de Ciências, para cifrar fielmente e decifrar faCilmente como livro aberto — qualquer partitura de música. Ele foi decepcionado: seu sistema talvez seja bom para a música vocal, disseram-lhe, mas não vale nada para a instrumental.

Em vista do quê, nosso Orfeu desconhecido, pobre como Jó, agarrou-se à ocasião que se apresentava: um posto em Veneza, na qualidade de secretário do embaixador da França. O qual, seguramente, não tinha por que recear ver traídas suas cifras: elas teriam sido perfeitamente inúteis, sem dúvida nenhuma, para tomar nota, entre outras, da ária inaudita que ele ouviu cantar no teatro de São Crisóstomo.

Ah, lamenta hoje o autor das Confissões, que acaba de ver-se escrevê-la, “era exatamente a mesma nota, mas não era a mesma coisa. Essa ária divina jamais pôde ser executada a não ser em minha cabeça, como aconteceu de fato no dia em que ela me despertou”.

Escrever portanto, mesmo para conservá-la viva, mesmo para preservá-la da morada infernal que é para ela a ópera francesa, e de maneira mais geral a sociedade moderna, é perder a voz.

Nisto, Rousseau, não importa o que faça e o que escreva — e ainda que fosse tão eloquente quanto são Crisóstomo em pessoa jamais terá
cessado de lançar sobre ela, sua Eurídice, o olhar de Orfeu.

Tradução de Paulo Neves

Notas

[1] Confessions, Livro VII, em Pléiade, oc, t. 1, p. 279.

[2] Cf. ibidem, pp. 311-2.

[3] Ibidem, pp. 313-4.

[4] Ibidem, p. 314.

[5] Cf. “L’air de Venise”, Ornicar?, no 22, 1982, pp. 111-37.

[6] Precisa, mas inexata. Graças a Giovanni Morelli — de Veneza —, sabe-se hoje que não foi no teatro de São Crisóstomo que Rousseau ouviu cantar essa ária. Erro de memória ou recordação encobridora? Deixo aberta a questão, provisoriamente, esperando voltar a ela, longamente e em detalhes, num livro em preparação.

[7] Cf. nota 6.

[8] Emile, Livro IV, em Pléiade, t. IV, pp. 600-1.

[9] Ibidem, p. 649.

[10] Cf. Julie ou la Nouvelle Héloise, segunda parte, Carta XXVIII, em Pléiade, t, it, pp. 285-6.

[11] Emile, p. 601.

[12] Ibidem, p. 606 (sublinhado por mim).

[13] Confessions, Livro VI, p. 279-80.

[14] Ibidem, Livro V, p. 207.

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