1988

A Medusa e o telescópio ou Verggase 19

por Renato Mezan

Resumo

O propósito de Freud de colocar-se atrás do divã, sem ser visto pelo paciente, pode ser considerado sob vários aspectos. O primeiro é a substituição da “festa ocular” do tratamento hipnótico de Charcot por seu método de livre-associação e análise dos sonhos, onde o registro da escuta é mais importante. O segundo tem a ver com uma fobia de ser olhado que o próprio Freud confessa, e na qual convergem fantasias de natureza sexual e agressiva. O terceiro é que a pulsão visual, claramente marcada no sadismo/masoquismo, revela uma dimensão narcísica reflexiva (como no sonho, onde o indivíduo é autor e ator ao mesmo tempo). Essa pulsão, presente nas fantasias originárias estudadas por Freud (sedução, cena primitiva, castração), pode ser sublimada em curiosidade, desejo de conhecer, mas também resulta em sistemas neuróticos de espelhamento (cf. o mito grego da Medusa que petrifica com o olhar), e o propósito de Freud é exorcizar a Medusa para que a transferência analítica funcione como um “telescópio”. A tomada de consciência tem esse sentido primeiro de distanciar-se para apoderar-se. No entanto Freud vai contrapor a esse modelo uma aceitação de algo que não se deixar apreender por um olhar. Tomar consciência é antes uma derrota que uma vitória do ego. E assim se revela outro aspecto na abolição do olhar, mais radical que a proibição de encarar o analista. Este deve se entregar à “atenção flutuante”, cuidar para não invadir o paciente com uma proliferação visual ou verbal. A meta da situação analítica seria como apagar as luzes no cinema para que um “outro palco” possa emergir.


Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não.

Guimarães Rosa

Se pedirmos a alguém que nos desenhe uma cena em que figure um psicanalista, é muito provável que sobre o papel apareça um indivíduo deitado num divã, atrás do qual se senta um personagem rabiscando num bloquinho. E se o artista acrescentar o clássico retrato de Freud pendurado na parede, sua charge ganhará o valor de um estereótipo imediatamente decodificável: pouco importa que o analista raramente tome notas durante as sessões, ou que na grande maioria dos consultórios a fotografia de Freud brilhe por sua ausência! O essenciais é que, no espírito do público, esta seja a imagem mais frequentemente evocada quando se fala na terapia freudiana. E, convenhamos, com uma ponta de razão: a aparência física do setting analítico é com efeito esta, embora não baste alguém deitar-se num divã e alguém sentar-se fora do alcance da visão do primeiro para que a conversa a se dar nestas curiosas condições mereça o nome de psicanálise.

Mas observemos o desenho: o olhar estará tão ausente assim da situação analítica? Do lugar onde está o paciente, o analista é, com efeito, invisível, embora nada impeça que ele veja à sua frente uma janela, uma parede ou mesmo seus próprios pés. Quanto ao psicanalista, pode olhar para o paciente, ainda que nas condições usuais a forma do divã o impeça de enxergar as feições do seu interlocutor. E — detalhe interessante — o senhor na parede pode estar olhando para o que se trama em seu nome… De modo que convém refletir um pouco antes de afirmar, como sugeriria uma consideração apressada, que na situação analítica o olhar está excluído, ao final do nosso percurso, veremos que ele está onde não imaginávamos que estivesse. Mas, em primeiro lugar, por que o analista se oculta por trás do paciente? Ninguém melhor do que Freud para nos esclarecer:

Insisto no conselho de deitar o paciente num divã, enquanto o analista toma lugar atrás dele, sem que este o veja. Esta disposição tem um sentido histórico: é o resíduo do tratamento hipnótico, a partir do qual se desenvolveu a psicanálise. Mas ela merece ser conservada por diversas razões. Em primeiro lugar, por um motivo pessoal, que contudo outros talvez compartilhem comigo. Não suporto ser fitado por outrem durante oito (ou mais) horas por dia. Como ao escutar abandono-me, eu mesmo, ao curso de meus pensamentos inconscientes, não quero que minha expressão dê ao paciente material para interpretações ou o influencie no que tem a dizer. Habitualmente, o paciente concebe a situação que lhe é imposta como uma privação e se opõe a ela, especialmente se a pulsão visual desempenha em sua neurose um papel significativo. Persisto, porém, nesta medida, que tem o propósito — e o atinge — de impedir a mistura imperceptível da transferência com as associações do paciente, e de isolar a transferência, deixando-a aparecer a seu tempo como resistência nitidamente circunscrita.[1]

A disposição que exclui o olhar tem assim uma função técnica precisa, a de criar condições favoráveis para que se instale a situação analítica propriamente dita. Muito sumariamente, podemos dizer que o fato de não ver o psicanalista faz com que o paciente possa configurá-lo como quiser, mediante um jogo de projeções e de deslocamentos a partir dos quais se torna possível inferir quais as tendências inconscientes ativas naquele momento. Mas o texto de Freud diz muito mais do que isso. Os termos empregados são de grande impacto: anstarren (fitar) significa também “arregalar os olhos”; autzwingen (impor) tem como conotações “coagir”, “compelir”, etc.; sich sträuben (opor-se) que dizer igualmente “arrepiar-se”; e beharren (persistir) implica “teimar”, “ser persistente”. Estes vocábulos deixam entrever que, para Freud, esta condição é absolutamente indispensável à estruturação do campo analítico — e é natural que assim seja, já que ele a vincula à livre-associação, à interpretação (os pensamentos inconscientes do analista), à resistência e à transferência, isto é, às quatro coordenadas sem as quais simplesmente não haveria análise. Por que é assim é uma outra questão, que não podemos abordar neste momento. A passagem de Freud, no entanto, contém quatro outras indicações, que nos servirão de vetores para organizar nosso trajeto: a ideia de “resíduo da hipnose”, o fator pessoal de natureza fóbica cujo sintoma é a intolerância a ser encarado, a ideia de pulsão visual — Schauhieb — à qual Freud atribui um papel na constituição da neurose, e a noção de “privação” que caracteriza a experiência do paciente. Vamos, então, por partes: comentaremos cada uma destas noções, para retornar na conclusão à situação psicanalítica e procurar situar nela a dimensão do olhar.

“UM RESÍDUO DO TRATAMENTO HIPNÓTICO”

A psicanálise tem uma pré-história, e só veio a se instituir como método terapêutico após uma demorada evolução. Esta pré-história começa no serviço de Jean-Martin Charcot, no hospital da Salpêtrière de Paris, no qual o jovem Freud realizou um estágio de seis meses em 1885. No necrológio que redigiu em 1893, quando seu mestre veio a falecer, o discípulo ressalta o papel da visualidade no trabalho de Charcot: este se denominava un visuel, e considerava o ver como o início de toda a operação científica; a observação minuciosa dos fenômenos histéricos deveria fornecer a base para a organização de quadros patológicos, ou “tipos”. A ambição de Charcot era constituir uma nosografia exaustiva. “Muitas vezes o ouvimos afirmar que a maior satisfação de que um homem poderia gozar era ver algo novo, isto é, reconhecê-lo como novo; e, em observações constantemente repetidas, retornava ao mérito e à dificuldade/de uma tal visão, perguntando-se a que razão se deveria que os médicos nunca vissem nada além daquilo que haviam aprendido a ver […].”[2]O olhar agudo tem aqui o sentido de observar atentamente, de perceber diferenças mínimas para ordená-las num sistema classificatório, comparável ao de Cuvier no plano da zoologia; visa portanto a conhecer, a nomear, e finalmente a construir tipos ideais, capazes de permitir o diagnóstico correto. Além disso, Charcot colocava no ver um meio de obter um gozo, o maior de que um homem seria capaz.

Atenção, porém: “ver algo novo” é “reconhecê-lo como tal”, e este é o momento do gozo. Não é como concomitante à visão, mas como consequente a ela, que o prazer emerge num ato de julgamento, pelo qual posso afirmar que “isto é novo”. O verdadeiro prazer está no conhecer, e a visão é mais deciframento que contemplação.

Mas, se o lermos com atenção, o texto de Freud sugere outras dimensões da visualidade em Charcot: este gostava de ser visto em ação por seus alunos, e seu trabalho com as histéricas as transformou em “foco de atenção geral”. Sobretudo, o emprego da hipnose para provocar ou remover artificialmente os sintomas histéricos deu origem a demonstrações espetaculares, às quais acorria o “tout Paris”: as pacientes, seminuas, se contorciam em malabarismos impressionantes, oferecendo-se à visão dos médicos e do público leigo. O que é fascinante nestas sessões é precisamente o papel desempenhado pelo olhar. O próprio Charcot, cujos olhos de feiticeiro hipnotizavam as internas, é objeto tanto do olhar delas quanto do olhar do público; a dimensão plástica é onipresente, como mostrou J. Pontalis:[3] ela está na sala lotada, mas também na atenção prestada ao corpo da histérica, às suas atitudes durante o grande attaque (que recebem nomes como “crucificação” ou “súplica amorosa”), aos pontos de excitação do seu organismo, antepassados das zonas erógenas… À exibição da pele corresponde a imantação do olhar; mas o médico se engana ao pensar que o seu é que domina a cena. Charcot comparava os gestos das doentes a certas figurações da pintura renascentista ou barroca; ele próprio era caricaturista e colecionador de obras de arte. É patente que com Charcot estamos imersos de ponta a ponta no prazer de ver e de ser visto, de modo que a ideia consciente de que “ver” é principalmente “observar com atenção” se revela como uma espantosa denegação do Schautrieb, da pulsão de ver que será descrita por Freud.

Ora, para que a psicanálise se constitua, esta festa ocular terá de ser abandonada. Primeiramente, será dispensado o público: o tratamento se fará a portas fechadas, sem a. presença de qualquer observador. Em seguida, a “terapia catártica” de Breuer sofrerá alterações, suprimindo-se o recurso à hipnose como meio de descobrir as cenas traumáticas que teriam originado os sintomas. Desta época, Freud conserva o hábito de deitar confortavelmente o paciente sobre um divã; mas, para caracterizar a ruptura com a hipnose, pede a ele que feche os olhos, atitude que seria vantajosa para a auto-observação e para a emergência dos pensamentos sobre os quais se vai trabalhar.[4] Esta regra é abandonada pouco tempo depois já que, num texto datado de 1904, Freud diz explicitamente que “não pede aos pacientes que fechem os olhos”.[5] Com a renúncia à exigência de se concentrar num sintoma de cada vez — portanto com a invenção do procedimento da livre-associação — o método analítico havia ganho seu instrumento próprio; é de se supor que a injunção de fechar os olhos tivesse o sentido de contribuir ainda mais para reduzir os estímulos externos, favorecendo desta maneira o trabalho da livre-associação.

A livre-associação é a forma pela qual Freud procede à análise dos seus sonhos. Em meio às tentativas para descobrir um modo de curar a histeria — tentativas repetidamente frustradas até bem avançada a década de 1890 — a interpretação dos sonhos funciona como guia seguro, não tanto porque os sonhos sejam mais claros do que os sintomas, mas porque fornecem um paradigma para o trabalho clinico e para a investigação teórica. Em particular, o sonho é um fenômeno indiscutivelmente psíquico, no qual as excitações corporais desempenham um papel reduzido. No trajeto que conduz de Charcot à psicanálise, a exclusão progressiva do olhar é paralela à organização progressiva da categoria de “espaço psíquico”, ela própria concomitante à diminuição progressiva do papel do corpo físico na terapia analítica. Pontalis observa com razão que a origem dos mecanismos histéricos não será mais buscada nas regiões do corpo, mas na articulação das fantasias; “a situação analítica pode ser acusada de ritual obsessivo ou de refúgio fóbico, mas certamente não de provocação histerizante”.[6] A exuberância visual da consulta de Charcot vai dar assim lugar a “outra cena”, e o órgão dionisíaco do psicanalista já não será o olho. A exigência de dizer em vez de mostrar abre o registro da escuta e da interpretação verbal, isto é, o registro da psicanálise. Resta saber se, com isso, o olhar fica de fato excluído da análise; parece-me que não, e que ele vai simplesmente se localizar em outras paragens. Mas, para poder situá-las, é necessário tomar um desvio: e o caminho nos é mostrado pela referência ao sonho e à fobia. Pois, se na passagem com que iniciamos estes comentários o rigor técnico é a razão aparente da “disposição que merece ser conservada”, nela também Freud alude à sua intolerância em ser observado durante várias horas por dia. O que significará isto? Quais sentidos poderá ter para ele a representação dos olhos e do olhar, a ponto de este fator ter desempenhado um papel na invenção do dispositivo analítico? Para responder a esta questão, sigamos o convite de Freud e penetremos com ele no universo dos seus sonhos.

“NÃO SUPORTO SER FITADO”

O tema dos olhos atravessa de cabo a rabo a Interpretação dos sonhos. O hábito de iniciar a leitura deste livro pelo capítulo II, saltando o primeiro capítulo dedicado à maçantíssima “literatura científica sobre os sonhos”, tem a desvantagem de deixar na sombra um fato importante: o primeiro sonho pessoal narrado por Freud diz respeito precisamente aos olhos. Falando dos materiais do sonho e da memória (seção B), menciona um sonho no qual uma impressão é substituída por uma relação: no sonho aparece uma pessoa de quem sabe que é o médico de sua cidade natal, mas seu rosto aparece impreciso, misturado com o do professor de História do liceu, que era caolho. Por que esta condensação? Questionando sua mãe acerca do médico de Freiberg, Freud recebe a resposta de que este último também era caolho.[7] E a imagem deste médico caolho, o dr. Josef Pur, vai assombrar o livro dos sonhos, reaparecendo sem ser nomeada em momentos cruciais da argumentação, como veremos mais adiante.

Este não é o único sonho a envolver a representação dos olhos. Na noite anterior ao enterro do seu pai, Freud sonha com uma espécie de placa, na qual está escrito: “Pede-se fechar os olhos”, ou então: “Pede-se fechar um olho”.[8] Sabemos pela carta 50 a Fliess (2.11.1896) que o sonho ocorreu na noite anterior ao enterro, e não, como é dito na Traumdeutung, na que se seguiu a ele. A data tem importância, já que o sonho é uma reação à morte do pai, e no prefácio à segunda edição do seu livro Freud afirma que o próprio livro é sua reação à morte do pai: o sonho apresenta portanto, em miniatura, algumas das tendências ligadas a esta experiência. A comparação detalhada das duas versões do sonho, a da carta e a do livro, foi realizada por Conrad Stein, num artigo intitulado “La paternité”,[9] do qual me servirei na sequência. Não deixa de ser curioso que um sonho ocorrido numa ocasião tão importante seja mencionado apenas de passagem na Interpretação dos sonhos para ilustrar um problema sem maior importância — a maneira pela qual o trabalho do sonho representa visualmente uma alternativa — e que Freud tenha modificado um pouco o conteúdo de suas associações, o que, se por um lado significa que as novas associações (as do livro) devem ser acrescentadas às antigas (as .da carta) e não substituídas a elas, por outro introduz aspectos insuspeitados no conteúdo do sonho. Freud refere-se rapidamente ao sentido da expressão “fechar um olho”, que em alemão, como em português, como em francês, significa ser tolerante, ser indulgente com uma falta alheia. Esta indulgência é relacionada com a tendência à auto-acusação que se manifesta nos sobreviventes por ocasião de um falecimento, e com o fato de Freud ter insistido numa cerimônia sóbria, conforme o desejo do morto, e contrariado a família, que teria preferido um enterro mais pomposo. Na carta 50, há um detalhe que é omitido ao leitor do livro, a saber que a placa com a inscrição remete ao salão do.barbeiro ao qual Freud ia todas as manhãs para aparar a barba, e que estava cheio no dia do enterro. Como teve de esperar sua vez, o filho chegou atrasado ao velório, irritando a família ainda mais. No livro, e esta é a nova associação, a placa é comparada aos avisos que, nas estações ferroviárias, proíbem fumar. Atraso, proibição, apelo à complacência, tendência à auto-acusação: eis alguns temas que transcendem em muito o pequeno problema metapsicológico a propósito do qual o sonho é mencionado!

Por que Freud necessitava da indulgência de seu pai? “Fechar os olhos” é algo que representa o dever frente aos mortos, cujos olhos devem ser fechados num ato de piedade. Se Freud cumprira seu dever, se se mostrara bom filho respeitando a vontade do pai quanto à modéstia do enterro, por que se sentiu culpado e apelou para a complacência do morto? Evidentemente, porque a morte do pai parece ter reavivado os desejos hostis que, no contexto do complexo de Édipo, concernem ao pai: desejos, precisamente, de morte. Stein observa que, em outros sonhos, o tema do atraso está constantemente relacionado tanto com os olhos quanto com os desejos hostis frente a substitutos do pai. Assim, no sonho “Non vixit” (não viveu), Freud conta que costumava chegar atrasado ao laboratório de Brücke, e que este, um dia, o repreendeu severamente. A passagem merece ser citada:

[…] em seguida, olho para P. de um jeito penetrante, e, sob meu olhar, ele fica pálido, nebuloso, seus olhos ficam de um azul doentio, e enfim ele se dissolve. Sinto-me extraordinariamente feliz com isso […]. As associações: O centro do sonho é formado por uma cena na qual aniquilo P. com um olhar. Os olhos dele ficam singularmente e estranhamente azuis, depois ele se dissolve. Esta cena copia de modo incontestável uma cena realmente vivida [segue-se a história do atraso]. O que Brücke me disse foi breve e claro; mas o essencial não dependia em absoluto das palavras. O que me demoliu foram os terríveis olhos azuis com os quais ele me encarou, e frente aos quais me senti desaparecer — como no sonho, que, para meu alívio, inverteu os papéis. Quem puder se lembrar dos olhos maravilhosos que o mestre conservou até idade muito avançada, e alguma vez o viu encolerizado, poderá se colocar facilmente na mesma situação afetiva que o jovem pecador de então.[10]

Onde estão os desejos hostis frente ao pai? Um pequeno exercício de interpretação psicanalítica: Freud se identifica a Brücke e, utilizando o poder dos olhos, aniquila o adversário; eis aí a hostilidade. Mas esta hostilidade é dirigida contra o pai, em primeiro lugar porque identificando-se a Brücke Freud toma o lugar deste (e não cabem dois no mesmo lugar), em seguida porque, sob o olhar fulminante de Freud, o colega P. vai ficando com os olhos da cor dos de Brücke. Ocorre aqui um deslocamento pelo qual Freud, tomando o lugar do mestre venerado, usurpa seu privilégio (o olhar terrível) e o utiliza contra o próprio mestre, cuja relação com a imagem paterna é óbvia. Além disso, como o dito mestre havia repreendido o “jovem pecador”, é de supor-se que havia pecado em algum lugar — e certamente não na banal falta de chegar atrasado ao laboratório. Por fim, tendo repreendido Freud, Brücke torna-se apto a receber um “pedido de indulgência” e portanto a representar o pai. Ora, tanto Jakob Freud à época do sonho “Pede‑se fechar os olhos” quanto o colega P. à época do sonho “Non vixit” já estavam mortos. Stein observa a este respeito que o fato de eles já terem morrido, aparentemente, não basta para saciar os desejos de morte do sonhador, razão pela qual este os põe em cena novamente, só que agora como obra dele mesmo. Isto é explícito no segundo sonho (P. morre dissolvido pelo olhar de Freud), e de maneira simbólica também ocorre no primeiro, no qual a injunção “Pede-se fechar os olhos” se dirige a Freud, pará que feche os olhos do pai e num certo sentido seja o autor da morte deste. Este segundo sentido deve permanecer encoberto pela significação piedosa, a de que fechar os olhos do morto constitui um dever de piedade filial.

Estes mesmos olhos desempenham uma função central num terceiro sonho, o célebre sonho do “conde Thun”, do qual transcrevo a cena final:

Estou de novo na estação, mas em companhia de um homem de certa idade. Invento um plano para passar desapercebido, e imediatamente o vejo realizado […]. Ele simula ser cego, ao menos de um olho, e eu lhe mostro um penico (que compramos ou tivemos de comprar na cidade). Sou portanto um enfermeiro e devo mostrar-lhe o penico porque ele é cego. Se o bilheteiro nos vir, nos deixará passar sem nos incomodar. A posição do homem e seu membro urinando aparecem plasticamente.[11]

Freud associa a este sonho duas cenas de infância: uma, com dóis ou três anos, em que urinou na cama e, para consolar o pai, prometeu-lhe comprar uma linda cama nova na cidade mais próxima (o penico); uma outra, com sete ou oito anos, em que molhou a cama dos pais, ocasião na qual Jakob disse algo como “este menino nunca fará nada que preste”. E continua, dizendo que isto o feriu terrivelmente, já que em muitos dos seus sonhos aparece uma enumeração de suas realizações, como se dissesse ao pai: “Viu? Acabei fazendo algo que presta… “. O velho cego de um olho é o pai, que sofreu na velhice de um glaucoma unilateral. Além disso, as referências a “passar desapercebido pelo biIheteiro” e ao membro visível plasticamente sugerem que, às cenas de exibicionismo infantil, devemos acrescentar uma outra, na qual o menino teria visto ou desejado ver seus pais durante uma relação sexual (Freud alude a algo assim, de modo muito discreto, a respeito do sonho Hollthurn[12]). Reunindo estes diferente fios que partem da representação dos olhos, Stein mostra que o pedido de indulgência conduz até o quarto dos pais, à cabine do trem que o representa (sonhos ligados à matrem nudam, cf. cartas 70 e seguintes a Fliess) e a várias cenas que ocorreram ou devem ter ocorrido em Freiberg, e mais tarde em Viena. “Se precisa de indulgência, é finalmente à indulgência do pai que ele apela, por ter sentido a seu respeito impulsos hostis no quadro de seu interesse libidinal pela mãe. Assim, pede ao pai que ‘feche os olhos’. Este sonho ocorre depois que o desejo já se realizou. Só que os mortos não fecham os olhos por si mesmos. É preciso fechá-los; este é o ‘clever no sentido literal’. Assim, Freud podia ter a impressão de ser o artesão da realização de seu desejo de que seu pai manifestasse indulgência (nada melhor do que ter um pai cego para passar desapercebido, como indica o ‘sonho revolucionário’), ou que ele estivesse morto […]. Ao mesmo tempo, assegurava-se da impunidade ao transgredir as proibições paternas. É isso que explica que a placa que proclama uma obrigação (fechar os olhos) seja comparada à que, nas estações, proclama uma proibição (de fumar). A noção importante que devemos reter é que, no exercício do dever de piedade filial, a pessoa encontra ocasião de transgredir o interdito paterno e de dar livre curso à megalomania infantil, que visa a esmagar o pai sob a própria superioridade.[13]

A interpretação de Stein situa portanto o tema dos olhos no contexto do complexo de Édipo, e a ideia sutil proposta por ele é a de que a morte real do pai não pode satisfazer o desejo edipiano pela boa e simples razão de que tal desejo não é “que o pai morra”, mas “que eu mate o pai”. Neste sentido, a morte real do pai frustra o desejo inconsciente, ativa o ressentimento e a hostilidade, fazendo com que no sonho a situação seja retificada, tornando-se o que sonha artífice da morte do pai. O médico caolho é adequado para representar o mesmo pai, afetado pela cegueira de um de seus olhos. Por sua vez, os olhos de Brücke representam a censura do superego, porém não frente ao atraso, e sim frente a um impulso muito mais agressivo. O tema do atraso cumpre a função de deslocar a culpa para uma falta insignificante, desviando a atenção dos desejos parricidas do inconsciente. É o que dá conta da ligação, no sonho do laboratório, entre a reprimenda do mestre e o assassinato do colega P. E são tais desejos que engendram a “tendência à auto-acusação” que se manifesta nos sobreviventes, por mais que estes tenham sido dedicados e respeitosos com o moribundo ou com suas últimas vontades.

Se o comentário de Stein demonstra de forma insofismável a conexão do tema dos olhos com o complexo de Édipo e abre caminho para pensar sua conexão com o complexo correlato ao Édipo, o de castração, é a Monique Schneider que devemos o ter ressaltado uma outra dimensão deste tema, através de uma leitura do conjunto da Interpretação dos sonhos entre cujos fios condutores se encontra precisamente a ideia rastrear todas as referências aos olhos e ao olhar. Assim fazendo, ela desvenda uma outra.série de aspectos destas representações, que concernem agora ao feminino e às angústias psicóticas, por oposição às ansiedades ditas neuróticas, que gravitam em torno do Édipo e da castração.

O sonho mais célebre da literatura psicanalítica — o da injeção em Irma — põe em cena um exame pelos olhos. A paciente vai mal, Freud se aproxima dela e olha para sua garganta: está inflamada, horrendas formações carnosas são visíveis a olho nu, ela está pálida e parece bem doente. Freud, preocupado, chama o dr. M. (Breuer) e seus colegas Otto e Leopold, que, por sua vez, olham a paciente, a examinam e chegam à conclusão de que ela foi infectada por uma seringa suja, na qual havia uma solução cuja fórmula contém trimetilamina, uma das substâncias produzidas pela putrefação do esperma. Do ponto de vista que nos interesse aqui, cabe ressaltar que Irma representa, entre outras, uma paciente chamada Emma, operada por Fliess em Viena, e que passara muito mal depois da cirurgia. Fliess havia esquecido no nariz da moça meio metro de gaze, que ao apodrecer ocasionou uma infecção, e ao ser retirada por outro médico, na presença de Freud, produziu uma hemorragia quase fatal.[14] Freud se sente mal à vista do “jorro de sangue” e escreve imediatamente a Fliess; várias cartas são trocadas (censuradas na primeira edição desta correspondência), e a imagem da moça ensanguentada o persegue durante várias semanas.

Monique Schneider estabelece duas correlações importantes. A primeira vincula Emma a Irma, através do tema do sofrimento feminino e do problema da responsabilidade do médico. A segunda interpreta a reação de Freud frente ao jorro de sangue à luz de um episódio da infância deste último, no qual intervém justamente o médico caolho, o dr. Josef Pur. Sabemos pela Interpretação dos sonhos que, quando pequeno, Freud quis pegar “algo bom”, caiu do banquinho em que havia subido e machucou-se muito, necessitando pontos no queixo e conservando por toda a vida uma cicatriz nesse local.[15] A reconstrução deste episódio é obra semelhante à composição de um quebra-cabeças, pois o relato da cena está no capítulo vil, a referência à cicatriz no capítulo I, e a ideia de ter sido ajudado por um caolho na parte sobre os sonhos típicos de exame, que, justamente, serve de introdução ao tema do Complexo de Édipo (capítulo V). A hipótese de Monique Schneider é que esta queda deve ter sido de rara violência, que o menino sangrou muito (Freud diz que poderia ter perdido todos os dentes naquele momento), e que a imagem do médico ficou carregada com grande ambivalência, pois por um lado representava o auxílio, e por outro a dor, o sangue e uma impressão particularmente aterrorizadora. Isto porque, ao terror da situação, deve ter-se acrescentado o de estar sendo socorrido por um médico caolho. Segundo a autora, o olho vazado virá figurar uma espécie de abismo, um vazio horripilante no qual o olhar se perde e que remete a quem olha a imagem do nada: representação extremamente sinistra, que Freud reencontrará na garganta de Irma. Esta reconstrução aparentemente gratuita se apóia num fato que pede interpretação: o de que, em Freud, o jogo dos olhos e dos olhares põe em cena dois aspectos absolutamente opostos, como veremos mais adiante. Guardemos por enquanto a ideia de Monique Schneider, segundo a qual a figura do médico caolho é vinculada à de uma “ajuda simultaneamente decisiva e temível, porque marca por toda a vida o corpo da criança. A carta a Fliess que menciona a reemergência da figura do médico caolho fala aliás de um ‘sonho cheio de animosidade’. Esta ambivalência extrema não é solidária das imagens mais arcaicas? Nesta representação, o que ajuda quase não se distingue do que machuca. Confusão que estará no centro do sonho de Irma -L.]. Imagens mal separadas das trevas, tanto representativas quanto afetivas, em cujo interior foram initial-mente encontradas”.[16]

Esta interpretação vem situar o tema do olho — de “um olho”, tal como aparece no sonho da véspera do enterro, na figura do Ciclope, no sonho “Meu filho, o míope”, na ideia de ligar a bilateralidade ocular com a bissexualidade, e em outras passagens da Traumdeutung — num contexto muito mais arcaico que o depreendido do comentário de Conrad Stein. A tônica aqui não é a do desejo sexual, mas a do horror frente a imagens mais fluidas, menos precisas, e que parecem se situar num momento anterior ao da diferenCiação dos sexos, numa série de configurações próximas daquilo que Melanie Klein denominou “posição esquizo-paranóide”. O sangue que jorra aos borbotões, a mutilação, o vazio, a angústia de fragmentação e de dissolução, a imagem de algo ou de alguém ao mesmo tempo terrivelmente perseguidor e onipotentemente bom localizam clima das “imagens mais arcaicas” e justificam que a autora fale em “confusão”, em “imagens mal separadas das trevas”, em “escuro afetivo e representativo”. É curioso notar que, no sonho em que se refere ao médico caolho, Freud termine seu comentário com a menção à cicatriz, que no entanto só foi acrescentada na segunda edição do livro; ali permaneceu até a quarta edição, sendo retirada da quinta, que veio à luz em 1925; dois anos antes, manifesta-se um câncer no maxilar… Se se tratar de um movimento conjuratório, como sugere Schneider, isto indicaria uma pregnância especial desta imagem do caolho e de sua órbita vazia, especialmente apta a figurar para Freud aquilo a que denominará “sentimento da inquietante estranheza”.

A representação do sangue que jorra do nariz de Emma relaciona-se com a teoria de Fliess, segundo a qual o nariz teria estreita relação com a vagina. Seria então uma ponte a unir o sangue, o nariz, a vagina, a garganta de Irma, a boca sangrando do menino e o olho vazado, numa constelação presidida pela significação da castração — pois esta também é imaginada como resultando numa ferida sangrenta. Ora, o sexo vermelho de uma mulher é representado pelo olho dela, no enigmático “Sonho de um homem” que figura na seção B do capítulo V, dedicada ao “infantil como fonte do sonho”. O homem vê dois garotos brigando; um deles foi atirado ao chão pelo outro; o homem vai castigá-lo com a bengala levantada, mas o menino corre para perto da mãe. “Esta se volta para o sonhador e o olha com um olhar horrível, de modo que ele foge dali apavorado. Nos olhos dela, vê-se a carne vermelha mostrando-se na pálpebra inferior.”[17] Freud interpreta este sonho na perspectiva da sexualidade e da castração, baseando-se nas associações do “homem”. O menino jogado ao chão representa a mulher no ato sexual. A pálpebra vermelha remete ao sexo das meninas vistas urinando quando o homem era pequeno, assim como a mãe no sonho. A bengala levantada é a ameaça paterna frente aos desejos sexuais do sonhador em relação à mãe. Até aqui, nada de especial; o interesse da análise que M. Schneider dedica a este sonho reside na oposição de dois olhares, o primeiro produzindo o sonho e pertencendo ao homem (“ele vê[…]”), o segundo figurado pela pálpebra avermelhada da mulher. O olhar que produz o sonho é uma expressão do olhar em seu poder de circunscrever, de abarcar algo numa cena, de captar contornos e imagens bem definidas: olhar que distingue e observa, olhar do médico, olhar do cientista (Brücke) e uma das figuras do olhar do intérprete, aquele que desvenda significações no aparentemente absurdo e introduz ordem naquilo que aparecia como caótico: o sonho, o sintoma…. A este olhar de luz, opõe-se um outro, “horrível”, diante do qual o sonhador “foge apavorado”: olhar que remete ao sexo feminino, vermelho como a pálpebra da mulher, vermelho como a garganta de Irma, vermelho provavelmente como a órbita vazia do dr. Pur. “Horror de um olhar transformado em boca, em sexo feminino… O olhar já não pode funcionar como aquilo que vem circunscrever, limitar, represar os poderes da garganta-precipício. Ele atualiza por si só a carne aberta e irrepresentável […]. Sonho-fornalha, em que aparece, na carne avermelhada, o que podemos discernir como um limite do imaginário freudiano, espécie de beirada além da qual nada mais se dá a ver.[18]

A representação dos olhos e do olhar surge assim como uma encruzilhada para onde convergem diferentes fantasias inconscientes, de natureza sexual e agressiva, pertencentes a diferentes estratos do psiquismo. Em outros termos, ela é sobredeterminada, e um dos aspectos desta sobredeterminação reside precisamente no recobrimento da dimensão angustiante do olhar/ser olhado por uma perspectiva reasseguradora, na qual o ato de ver está a serviço de um controle e de uma discriminação. São vários níveis que se cruzam incessantemente: ver é observar, ver é satisfazer a curiosidade e assim correr o risco da retaliação paterna, ver é produzir sonhos; ser visto é ser confortado no narcisismo de quem conseguiu desmentir a profecia do pai, mas também é ser capturado num campo de fascínio do qual só se pode escapar fugindo apavorado; ver é ter de suportar a visão do sexo mutilado e sangrento, do olho vazado, da garganta abissal. Se é assim, podemos compreender que Freud não tolerasse ser encarado durante horas a fio, e que tenha construído um dispositivo no qual esta possibilidade atemorizadora esteja ativamente excluída. Na passagem citada no início desta conferência, Freud se refere com franqueza à sua idiossincrasia neste sentido, atenuando-a, porém com a expectativa de que “outros a compartilhem comigo”. Não creio vantajoso reduzir esta notação a um mero apêndice psicologista: há muitos terapeutas que utilizam o divã e que, no entanto, não sentem dificuldade alguma em ser encarados por outros pacientes, atendidos em face-a-face. Na observação de Freud, eu veria antes a sugestão de que estes poderes do olhar não são apenas frutos de sua imaginação pessoal, mas aludem a um setor importante do funcionamento psíquico em geral, capaz de ser observado por outras pessoas, desde que se sirvam adequadamente do dispositivo psicanalítico. E, na passagem citada, a referência à “pulsão de ver” abre um caminho para que possamos estudar esta questão, deixando de lado as particularidades do sistema defensivo de Sigmund Freud para nos interrogarmos quanto à atividade psíquica que ele denomina Schautrieb.

“ESPECIALMENTE SE A PULSA O VISUAL”…

“O paciente se opõe à situação […], especialmente se a pulsão visual desempenhar em sua neurose um papel significativo.” A frase de Freud ganha sentido à luz de uma descoberta essencial da psicanálise: a de que as neuroses representam perturbações da vida sexual, não apenas no sentido de que a atividade sexual diminui de frequência ou de intensidade, mas no sentido de que os sintomas neuróticos são alimentados pelas pulsões sexuais e a bem dizer são a vida sexual do neurótico. Sabemos que a psicanálise amplia muito a noção corrente de sexualidade, considerando como sexuais atividades, fantasias e situações que aparentemente nada têm a ver com o sexo. Isto porque a finalidade biológica da reprodução não é intrinsecamente vinculada à sexualidade: a psicanálise afirma e demonstra que a chamada “síntese genital” é tardia e precária, e que na verdade devemos falar, no plural, de pulsões sexuais, em vez de nos referirmos a uma genérica e hipotética “sexualidade”.

O aspecto no qual a concepção psicanalítica das pulsões sexuais mais se afasta do senso comum é a ideia de que estas não são inatas no ser humano, porém se desenvolvem de modo curioso a partir de outras funções, estas sim biologicamente determinadas. Procurando dar conta da sua gênese, Freud é levado a considerar que a excitação sexual se destaca das atividades ou tendências ligadas à conservação do indivíduo, em especial da que dizem respeito à alimentação e à excreção. Mas não é sob este ângulo, afinal bem conhecido, que vamos abordar esta questão. Seguindo as indicações de Jean Laplanche, considero mais sugestivo dar ênfase a uma passagem dos Três ensaios para uma teoria sexual em que Freud, falando das “fontes indiretas” da sexualidade, afirma que não apenas os orifícios da pele, mas a pele inteira, qualquer órgão, e mesmo qualquer atividade do corpo ou da mente pode dar origem à excitação sexual: “A conclusão a que chegamos é que a excitação sexual se produz como um efeito marginal [Nebenwirkung] de toda uma série de processos internos (excitações mecânicas, atividades musculares, trabalho intelectual etc.) a partir do momento em que a intensidade destes processos ultrapassa certos limites quantitativos. O que chamamos pulsões parciais da sexualidade ou bem deriva diretamente destas fontes internas de excitação, ou bem representa um efeito combinado destas mesmas fontes e da ação das zonas erógenas”.[19] A ideia central deste texto é a do apoio da sexualidade sobre os instintos de conservação, dos quais deriva, por um processo de desvio e de torção, a sexualidade propriamente humana, a partir do instante em que a intensidade de qualquer processo vital supera um determinado limiar.

Esta observação me parece essencial, porque situa a sexualidade num plano diferente daquele em que se localiza o indivíduo. Reparem que ela está aquém ou além deste último. Além, na sua função reprodutiva, pois o que se perpetua não é o indivíduo, mas a espécie através e por meio do indivíduo: entre certos animais, como as abelhas ou alguns peixes, o macho morre ou é devorado pela fêmea após ter cumprido seu papel na fecundação. Mas, sobretudo, a sexualidade da qual trata a psicanálise se situa aquém do indivíduo, se o considerarmos como uma unidade cuja expressão psíquica é o sentimento do eu e cuja expressão social é a ideia de pessoa. Com efeito, a sexualidade se apresenta como fragmentada por essência: seu lugar não é a pessoa como tal, mas as zonas eróge-nas, as atividades isoladas, o funcionamento descoordenado dos órgãos ou dos sistemas fisiológicos. Estrutura-se segundo um esquema plural — as pulsões — e segundo um esquema pré-pessoal — as pulsões parciais. Cronológica e ontologicamente, estas precedem a unidade da pessoa, o que demonstra com clareza o caráter imaginário e defensivo da ideia de pessoa — mas não entraremos neste problema por hoje. É por ser simultaneamente fonte de prazer e ameaça de desintegração que as pulsões parciais se constituem no alvo privilegiado das defesas do indivíduo, e é por serem múltiplas que sua característica fundamental é a labilidade, a plasticidade, a capacidade de se combinarem umas com as outras e de substituírem umas às outras através de um jogo extremamente complexo de investimentos, deslocamentos e inversões. Um dos setores da investigação metapsicológica é precisamente aquele denominado por Freud de “destinos das pulsões”, ou, na tradução brasileira de suas obras, de “vicissitudes dos instintos”.

Este é a aliás o título de um artigo de 1915, no qual Freud fala extensamente da pulsão visual. São mencionados quatro destinos possíveis de uma pulsão: a repressão, a sublimação, a inversão no seu contrário e a reversão para a própria pessoa. A repressão e a sublimação foram tratadas em artigos específicos da mesma época, embora o intitulado “Sublimação” não tenha sido publicado por Freud, provavelmente porque não ficou satisfeito com o que escrevera. Ora, nos dois destinos pulsionais restantes, os exemplos estudados por Freud não são, como se poderia imaginar, a pulsão oral ou a pulsão anal, mas os dois pares antitéticos sadismo/masoquismo e prazer de ver /prazer de ser visto. Antes mesmo de abordar mais de perto o que é dito da pulsão visual, notemos a vizinhança em que Freud a localiza: constantemente, no artigo Pulsões e destinos de pulsão, ela é mencionada juntamente com a violência sexual. Nosso trajeto pela Interpretação dos sonhos terá mostrado, espero que com clareza, que esta situação de proximidade dos olhos e do olhar com a dimensão agressiva da sexualidade está longe de ser casual. Veremos agora que isto não ocorre apenas nos trabalhos de ordem mais pessoal, mas é um dado constante dos textos freudianos de natureza aparentemente apenas “científica”.

Examinemos então estes dois “destinos pulsionais”. A inversão no seu contrário (Verkehrung in das Gegenteil) diz respeito às finalidades da pulsão, isto é, à forma pela qual esta alcança a satisfação. Toda pulsão se origina em algum ponto do corpo (sua fonte) e consiste numa certa magnitude de excitação (seu impulso). A satisfação consiste na supressão desta excitação, e tal supressão é a finalidade perseguida pela pulsão. Aquilo através do qual se cumpre esta finalidade é segundo Freud o objeto da pulsão, e deste objeto é dito que se trata do fator mais variável da montagem pulsional. Qualquer coisa ou qualquer pessoa, qualquer parte do corpo, próprio ou alheio, é apta a se tornar objeto de uma pulsão, desde que cumpra a condição essencial de permitir a extinção da excitação correspondente, isto é, desde que possibilite a satisfação da pulsão. Assim, a inversão no seu contrário concerne à finalidade pulsional: de uma finalidade ativa — atormentar o objeto, ver o objeto — ela pode se transformar numa finalidade passiva — ser atormentado pelo objeto, ser visto pelo objeto. Quanto à reversão para a própria pessoa (Wendung gegen die eigene Person), ela não altera a finalidade, mas o objeto da pulsão: de externo, este se transforma em interno. Por exemplo, o masoquismo é um sadismo dirigido contra o próprio sujeito, a exibição do corpo implica que eu também me veja nu.[20]

Estas primeiras observações, contudo, envolvem um problema: Freud começou a falar das transformações das pulsões, sem no entanto ter dado conta da gênese destas pulsões. Percebendo a dificuldade, ele dá um passo atrás e propõe uma série de esquemas de derivação, primeiro para o par sadismo / masoquismo , em seguida para o par voyeurismo /exibicionismo. Ora, é extremamente interessante perceber, acompanhando a minuciosa leitura realizada por Laplanche, que estes esquemas situam a origem da sexualidade não no momento ativo de ver ou de infligir dor, mas no momento reflexivo em que o sujeito se inflige dor ou se vê. Vale a pena acompanhar brevemente o percurso de Laplanche para o par sadismo/masoquismo, porque ele nos permite compreender mais claramente tanto a gênese da pulsão visual quanto o intrigante fato de que ela se situe em paragens vizinhas às da dor da qual se goza.

O essencial do comentário de Laplanche consiste em distinguir a violência do sadismo, ou, mais precisamente, uma agressividade não sexual de atos sexuais em que entra uma componente agressiva. Nisto Laplanche segue ao pé da letra a indicação freudiana dos “Três ensaios”, segundo a qual a excitação sexual nasce como efeito marginal de qualquer atividade do sujeito, desde que esta ultrapasse um determinado limiar. No caso da agressividade, é o próprio Freud que nota, em Pulsões, que o ato de infligir dor a outrem não é uma finalidade originária da pulsão. Laplanche utiliza estas indicações para operar um esclarecimento conceitual de grande alcance: sugere distinguir a agressividade, que pode ter como objeto o próprio sujeito ou uma entidade exterior, e o sadismo/masoquismo, reservando este nome “para tendências, atividades ou fantasias que comportem necessariamente um elemento de gozo ou de excitação sexual”.[21] Em suma, o sadismo e o masoquismo seriam o tipo de pulsão parcial que deriva da agressividade, quando esta atinge um certo limiar, ou, mais precisamente, que deriva de atividades do sujeito que podem ter um caráter agressivo, mas que não visam originalmente a consecução de um prazer de índole sexual. Este é o caso daquela tendência a que Freud chama de “pulsão de domínio” (Bemächtigungstrieb), que consiste na inclinação a se apoderar ou a se assenhorear de algo, podendo até ferir ou destruir este algo, mas sem que tal finalidade seja buscada no registro do prazer. O protótipo deste gênero de tendência é dado pelo bebê que estende as mãos para pegar coisas, sem prestar atenção à fragilidade ou ao perigo que elas possam apresentar. É o que podemos chamar como Laplanche de “ação instrumental”, e é o primeiro momento descrito por Freud na gênese do sadismo:

a) O sadismo consiste na atividade violenta, no exercício da força contra outra pessoa como objeto;

b) Este objeto é abandonado e substituído pelo próprio sujeito. Com a reversão para a própria pessoa, realiza-se também a transformação da finalidade pulsional de ativa em passiva.

c) Novamente é buscada uma outra pessoa como objeto (da pulsão), que, em consequência de transformação ocorrida com a finalidade pulsional, deve tomar o lugar de sujeito (da ação violenta).[22]

O que é esclarecido pela distinção proposta por Laplanche, e que me parece de grande valia, é que o momento a não é um momento sádico, mas simplesmente agressivo. É o momento pré-sexual, de acordo com o esquema dos Três ensaios. A sequência do texto de Freud, embora não explicitamente, confirma esta leitura. Com efeito, o momento b é o do tormento infligido a si mesmo, como no caso da neurose obsessiva, trata-se de uma auto-agressão, que porém ainda não é o masoquismo. Este aparece no momento c, pois exige que o papel do carrasco seja assumido por outra pessoa. Onde emerge a sexualidade? No momento c ela já está constituída, posto que o masoquismo é, com toda a evidência, um conjunto de fantasias e de comportamentos sexuais. Se o momento a é o da agressividade não ainda sexualizada, a conclusão que se impõe é que o instante de origem da excitação sexual reside no momento b, o momento reflexivo intermediário entre o ativo e o passivo. É o que Freud deixa entrever num parágrafo denso do artigo sobre as pulsões: “Para a criança agressiva, infligir dor não conta nada, não é o que ela visa. Mas, uma vez realizada a transformação em masoquismo, as dores se prestam perfeitamente para fornecer uma finalidade passiva masoquista. Temos todas as razões para admitir que as sensações de dor, como outras sensações de desprazer, transbordam para o domínio da excitação sexual e provocam um estado de prazer. Uma vez que experimentar dor se tornou uma finalidade masoquista, a finalidade sádica, infligir dor, pode aparecer retroativamente. Então, provocando estas dores em outrem, o sujeito goza de modo masoquista na identificação com o objeto sofredor”.[23] O que aprendemos aqui é que o prazer propriamente sexual aparece na posição reflexiva, como consequência da intensidade da dor; o sadismo aparece retroativamente, isto é, vem num hipotético momento d, mediante a identificação com o objeto sofredor, no qual é projetada a parte de si que goza com as dores.

Convém notar cuidadosamente que a pulsão sexual começa a surgir no momento ativo a, quando este ultrapassa o limiar “x” de intensidade; porém sua emergência efetiva se dá no momento reflexivo b, acompanhada de uma fantasia pela qual o sujeito se substitui ao objeto originalmente visado pela pulsão de domínio. Isto significa que o objeto da pulsão sexual não é mais o mesmo que o da pulsão de domínio: aqui isto é particularmente evidente, posto que o objeto da pulsão de domínio é “outra pessoa” e o da pulsão sexual “a própria pessoa”. Há portanto uma perda do objeto original, que obriga justamente a criar uma fantasia: isto vale para toda e qualquer pulsão sexual, não apenas para o sadismo/masoquismo. Para tomar o exemplo da oralidade, o seio físico da mãe e o leite, objetos da tendência de mamar que faz parte do instinto de auto-conservação, são substituídos pelo chupar do dedo, e este é o primeiro objeto integralmente sexual da criança, integralmente sexual porque nele a finalidade da nutrição, a partir da qual emergiu por apoio o prazer oral, se encontra fora do circuito pelo qual encobria este prazer no momento “ativo” de mamar. Laplanche resume com clareza a situação: “O apoio é portanto apoio da sexualidade nascente sobre as atividades não sexuais, mas o surgimento efetivo desta sexualidade não está ainda aí. Ela só aparece, como fenômeno identificável e isolável, no momento em que a atividade não sexual, a função vital, se destaca do seu objeto natural ou o perde. Para a sexualidade, é o momento reflexivo que é constituinte, momento da reversão para si, ‘auto-erótico’, no qual o objeto foi substituído por uma fantasia, por um objeto refletido no sujeito”.[24]

Este excurso pelo problema do sadismo e do masoquismo está longe de ser supérfluo para o esclarecimento do Schautrieb. Pois o que impressiona na discussão efetuada por Freud a seu respeito no texto que estamos estudando é precisamente a dimensão originariamente reflexiva da pulsão visual. Freud começa por estabelecer para ela um esquema análogo ao anterior: primeiro a atividade de ver dirigida para um objeto externo; em seguida a renúncia ao objeto, com as concomitantes reversão para a própria pessoa (aqui para uma parte do corpo próprio) e inversão da finalidade de ativa em passiva (ser visto); por fim, a busca de outra pessoa, a quem o sujeito se exibe a fim de ser contemplado. Mas, refletindo melhor, Freud se dá conta de que o momento a (ver o objeto externo) não é, a bem dizer, o primeiro: “A pulsão de ver é, com efeito, no início da sua atividade, auto-erótica: ela tem certamente um objeto, mas o encontra no próprio corpo. Só posteriormente é conduzida, pelo caminho da comparação, a trocar este objeto por um objeto análogo no corpo de outra pessoa (momento a)”.[25]Três ensaios, se destaque em algum momento — a partir de um certo grau de intensidade — o prazer de ver (Schaulust, que significa tanto o desejo quanto o prazer de ver). Este é o momento de nascença da pulsão erótica, que vem subverter o sentido do ato de olhar e desviá-lo de sua função originalmente ligada à. autoconservação. Se agora refletirmos que toda pulsão sexual é originalmente auto-erótica, o “surgimento efetivo” da pulsão sexual visual ocorrerá no momento reflexivo, “ver seu membro sexual”, no qual o objeto “membro sexual próprio” substitui e transforma o objeto original do instinto de olhar, que não é o membro sexual, mas o mundo à minha volta. A partir daí haverá concomitantemente dois olhares: o do instinto e o da pulsão, o da autoconservação e o do prazer sexual, que poderão eventualmente entrar em conflito ou operar na mesma direção. Do lado da pulsão visual sexual, o sujeito pode tomar dois caminhos: ou se identificar com o membro sexual próprio e desejar ser visto por outrem (exibicionismo) ou identificar o outro com seu membro sexual próprio e, pela via da comparação, buscar ativamente objetos externos para ver, objetos externos esses que são substituições mais ou menos deformadas do “membro sexual próprio”.

Se esta gênese da pulsão visual estiver correta, não é de admirar que o momento reflexivo seja acompanhado de uma fantasia, cuja função primeira é sempre reparar a perda do objeto original do instinto. A protofantasia da visualidade é a de contemplar o próprio membro sexual, num circuito fechado cuja natureza narcisista é evidente. Por ser uma posição narcisista, o olhar seu próprio membro realiza de certo modo a megalomania infantil, segundo a qual o sujeito se imagina como o alfa e o ômega do universo. Ao mesmo tempo, há um aspecto fundamental desta fantasia originária, ou desta situação originária da visualidade erótica, e que consiste no fato de que a parte do corpo que olha (o olho) não é a mesma que a parte do corpo olhada (o membro sexual). Aqui se encontra a matriz de divisão futura entre o sujeito e o objeto, assim como o fundamento da possibilidade da sua reversão recíproca. (porque ambos fazem parte do mesmo corpo, o meu). Esta conclusão me parece relevante, porque a pulsão visual costuma ocupar uma posição bastante secundária nos tratados de psicanálise e na forma habitual com que pensamos nas pulsões sexuais: o mais das vezes, o que nos ocorre é falar da oralidade, da analidade, da genitalidade. Ora, nestas pulsões mais frequentemente lembradas é menos perceptível o desdobramento originário entre a fonte e o objeto, pois ambos coincidem na boca, no ânus, etc. Neste momento originário de cada uma das pulsões, o órgão corporal funciona reflexivamente. o protótipo da oralidade, diz Freud, não é tanto a boca que chupa o dedo, mas os lábios que se beijam a si mesmos. Isto explica que, ao lado das formas ativas das fantasias relacionadas com estas pulsões (devorar, expelir/ controlar, penetrar) e das respectivas formas passivas, existam e tenham grande importância na psicanálise as formas reflexivas de tais fantasias (devorar-se a si mesmo, expelir-sede si mesmo, penetrar-se a si mesmo). É possível também inferir que, independentemente de seu conteúdo ativo, passivo ou reflexivo, a fantasia enquanto tal, na medida em que substitui um objeto perdido, é como diz Laplanche “objeto refletido no sujeito”, quer dizer, é reflexiva por essência e por isto capaz de aplacar o desejo. O mesmo vale para o sonho, que é uma modalidade da satisfação alucinatória do desejo: independentemente de seu conteúdo, todo e qualquer sonho é uma realização do desejo — e antes de mais nada do desejo de ver, posto que é filme que se desenrola no interior das pálpebras — porque a criação de um sonho satisfaz o desejo megalomaníaco infantil de ser simultaneamente o sujeito e o objeto, o autor e o ator do filme noturno. A pulsão visual se revela assim como verdadeiro paradigma da sexualidade, na medida em que nesta a dimensão reflexiva é originária; e portanto seus objetos por excelência são a fantasia e o sonho, ambos produções psíquicas nas quais o ver desempenha uma função essencial. A sexualidade, por sua vez, está por natureza associada ao desejo, desejo que se sustenta e que renasce porque seu objeto está desde sempre perdido: esta afirmação basilar da psicanálise soará um pouco menos estranha se compreendermos que o objeto fundamental deste desejo, ou ao menos um de seus traços fundamentais, é o estado de completude narcísica cuja expressão é a megalomania infantil, e cuja figuração exemplar é dada pelo modelo do sujeito que contempla seu próprio órgão sexual.

Estas observações nos ajudam a compreender que o visual não é um elemento acessório ou secundário na esfera das pulsões sexuais, mas ao contrário um aspecto constante e constitutivo delas. Nas três fantasias originárias estudadas por Freud, o olhar desempenha um papel relevante. Na fantasia de sedução, é o ser visto que predomina; na fantasia da cena primitiva, a relação sexual entre os pais é objeto de uma visão pela qual o sujeito imagina (isto é, em imagens) a sua origem. E, na fantasia da castração, o olho e o olhar têm uma função crucial: ela é imaginada como punição, entre outras coisas, pela curiosidade sexual, e por este motivo os olhos são o substituto mais comum dos genitais neste gênero de produção imaginária. Estes aspectos da pulsão visual são examinados por Karl Abraham num artigo extremamente interessante, que prolonga e comenta um pequeno texto que Freud dedicara em 1910 às Perturbações psicogênicas da visão. Este pequeno trabalho costuma ser citado porque nele ocorre pela primeira vez a expressão “pulsões do ego”; Freud estuda o que ,acontece quando um órgão, no caso o olho, torna-se terreno de conflito entre a pulsão sexual e as tendências do ego que visam à auto-conservação. Produz-se um sintoma é a resposta, que aqui toma a forma de cegueira histérica. Este resultado traduz a existência de uma repressão das fantasias associadas ao olhar, e ao mesmo tempo a falha desta repressão, isto é, uma vitória de Pirro das pulsões do ego, que não conseguem eliminar suas adversárias. A inutilização do órgão corresponde a um triunfo da sexualidade, que não está interessada naquilo que a visão possa aportar de útil para a vida do indivíduo; é como se ela dissesse algo assim — “já que não posso me exprimir pelos olhos, estes não verão nem mesmo o que as tendências do ego necessitam ver”. Na verdade, o artigo de Freud consiste numa ilustração menor da teoria do conflito entre as pulsões, e por isto não nos deteremos nele. O que é interessante a respeito deste artigo é que foi escrito para comemorar o jubileu do oculista e professor Leopold Königstein, amigo pessoal de Freud, e que em 1885 operou, juntamente com Freud e outro médico chamado Koller, o famoso glaucoma unilateral de Jakob. O anestésico utilizado foi urna solução de cocaína, produto com o qual Freud se ocupara há pouco, e sobre cujas propriedades anestésicas — descobertas por Koller — Freud fala na Autobiografia. É um assunto que, quarenta anos depois, ainda desperta a animosidade: estivera quase a ponto de fazer uma descoberta importante, e, por causa de Martha, não a fizera… Frustração séria, de modo que o tema dos olhos se enriquece com mais esta determinação . Ora, o homenageado pelo artigo também está ligado à esfera de representações que gravita em torno dos olhos (é oculista): a ambivalência ronda… e, com efeito, se o artigo de Freud não é uma contribuição particularmente importante para a teoria psicanalítica, por outro lado exprime uma pequena vitória contra Kõnigstein: a psicanálise consegue elucidar e curar uma perturbação frente à qual a oftalmologia médica confessa sua impotência. Mas… fechemos os olhos.

Clinicamente, o artigo de Abraham é muito rico. Intitula-se Modificações e perturbações da pulsão visual nos neuróticos e data de 1913. Abraham comenta que o exemplo da cegueira histérica é raro, e que ele próprio teve oportunidade de observar fenômenos mais comuns envolvendo perturbações neuróticas do olhar, em especial o que denomina Lichtscheu, o pavor à luz. Não cabe aqui resumir este texto, que demonstra uma notável acuidade clínica e uma grande maestria no manejo das noções da psicanálise de então; retomarei apenas dois aspectos dele. O primeiro é o que Abraham caracteriza como “destinos da pulsão visual”; o segundo é a relação dos olhos com as fantasias, de castração.

Quanto aos destinos da pulsão visual, Abraham observa que ela se modifica notavelmente no curso da evolução psicossexual. Uma parte dela é sublimada através da transformação em “curiosidade em geral”, traço característico da psique infantil e cujos primeiros momentos são de natureza sexual. Na qualidade de “pulsão de conhecer” (Wisstrieb), ela pode se tornar motor de inúmeras atividades, cujo protótipo é o objeto desta pulsão, a teoria sexual infantil: são seus derivados o prazer de pesquisar, o interesse pela observação da Natureza, o gosto pela leitura, o prazer de viajar (ou seja, ver coisas distantes e novas), etc. Aqui, o elemento distintivo reside no interesse pelo que é outro, ainda não conhecido, diferente: reconhecemos o eco longínquo da estrutura original da pulsão de ver, em que o objeto visto não coincide com o órgão que vê. Outra forma frequente de sublimação da pulsão de ver é a elaboração do que o olho percebe: a atividade artística, a contemplação no seu sentido estrito encontram aqui sua origem. Nestes dois casos, a pulsão visual conseguiu destacar-se de seu objeto originalmente sexual (nisto consiste a sublimação), e alimenta com sua energia, bem como com fantasias inconscientes, toda uma série de comportamentos e de desempenhos associados à dimensão do prazer.

Mas a pulsão visual também pode sucumbir à repressão por parte das tendências egoicas. Neste caso, diz Abraham, será utilizada para construir sintomas neuróticos tanto no registro do corpo propriamente dito (é a via tomada pela histeria) quanto, através de sua derivada, a pulsão de conhecer, no registro do pensamento (é a via tomada pela neurose obsessiva). Aqui, como já havia notado Freud no caso do Homem dos ratos,[26] as principais manifestações sintomáticas da pulsão visual reprimida dizem respeito à sexualização do ato de pensar, sexualização que se caracteriza como neurótica por não chegar jamais ao prazer, isto é, à solução do problema que ocupa o intelecto. Com efeito, é na dúvida obsessiva e na ruminação que se exprime esta pulsão; no caso da neurose obsessiva: perguntas impossíveis de responder, consideração detalhada de todos os fatores envolvidos numa questão, porém de forma tal que a decisão é sempre adiada, indicam que o prazer reside na ruminação e na dúvida, e não no alcançar a solução aparentemente procurada. Outro fator presente nesta elucubração compulsiva é a ambivalência, isto é, a presença simultânea do amor e do ódio, que nos remete novamente ao vínculo estreito entre a pulsão visual e o entrelaçamento sexualidade/agressividade que constituem o sadismo e o masoquismo. Parece existir aqui uma proibição de atingir o clímax do processo, o que, incidentalmente, nos traz de volta ao sonho Pede-se fechar os olhos”. Ali também, diz Freud, o sonho exprime uma dúvida: os olhos/ um olho. A análise de Stein nos mostra que esta dúvida não provém, como pretende Freud na Interpretação dos sonhos, de uma falha no trabalho da condensação, mas da constelação afetiva fortemente ambivalente que sustenta esta imagem dos olhos. Estes são o instrumento da curiosidade sexual, a mesma que fez o pequeno Freud desejar entrar no quarto dos pais e se interessar. pelo ‘membro sexual”. A ambiguidade — tradução ideativa da ambivalência — é soberana nesta frase “Pede-se fechar os olhos”: ela admite um sentido literal, um sentido figurado (a complacência) e um sentido simbólico (o dever frente aos mortos). Os olhos a serem fechados são tanto os do pai quanto os do próprio Freud (em outros termos: não queira ver o que não pode ser visto). De modo que esta frase “era particularmente adequada para representar as fontes infantis do sonho, não somente porque diz respeito ao olhos […], mas ainda porque a inversão que resulta das múltiplas alusões a eventos recentes figura a ideia da inversão através da qual se exprimem, simultaneamente, a megalomania infantil do sonhador e seu desejo de fazer com que o pai desapareça, a fim de tomar o seu lugar”.[27]

O olhar apresenta-se assim como veículo de um poder, poder que na neurose obsessiva é ao mesmo tempo afirmado e negado. A figuração mais característica deste poder, no universo do_ inconsciente, é a fantasia da castração tanto no sentido ativo (castrar o pai, castrar o homem) quanto no sentido passivo (ser castrado pelo pai, ser castrado pela mulher, ter sido castrada pela mãe ou pelo pai). Uma outra figuração deste poder da visão é a ideia da descoberta, a paixão de desvendar os segredos do passado, do que está oculto ou do que virá a acontecer. Nesta perspectiva, é certo que Freud concedeu ao olhar uma função de primeira importância na tarefa do psicanalista, já que a interpretação pode ser concebida como um dos avatares deste olhar que desvela. As metáforas arqueológicas tão comuns em seus escritos apontam nesta direção: interpretar é aqui descobrir, revelar, trazer à luz. Ocorre que esta atividade regida pela luminosidade não é a única que existe na análise, que ela própria pode ser um sinal da atuação de tendências defensivas no analista — pois “ver” aqui é tomar conhecimento de, a fim de não sucumbir a — e que a relação inconsciente dos olhos com a castração sugere que o poder do olhar está pelo menos tão voltado para a destruição e para a agressividade quanto para a construção ou reconstrução das Pompeias que trazemos em nós.

Estas considerações indicam qual a próxima etapa do nosso trajeto. Vamos primeiramente abordar o tema da castração, para em seguida retornar à situação analítica e estudar brevemente algumas de suas facetas capazes de serem relacionadas com o olhar — e isto tanto do lado do paciente como do lado do analista.

“O PACIENTE EXPERIMENTA UMA PRIVAÇÃO”…

Tornou-se quase caricatural interpretar a alusão aos olhos como símbolo dos genitais, assim como o medo de perdê-los como transposição da angústia de castração: são exemplos constantemente invocados para desqualificar as “receitas pré-fabricadas” com que o psicanalista cozinha suas deduções. Não obstante, continua sendo verdadeira a simbolização dos genitais pelos olhos, e um exemplo clínico trazido por Abraham nos mostra a riqueza e a complexidade desta relação. Trata-se de um homem que vem consultar por causa de problemas vinculados à potência sexual e a uma acentuada depressão; sofre também de um fobia à luz que o obriga a medidas de resguardo excepcionalmente intensas. Associando sobre o medo da luz, o paciente acrescenta que também teme que um parente seu, ou ele mesmo, seja privado de um olho. Interessa-se pelas afecções oculares dos outros; só mulheres que usassem óculos o atraíam, e tanto melhor se fossem caolhas. Outras associações conduziram ao tema da inferioridade do paciente frente a seu pai; este o superava em tudo, o controlava, era impossível esconder-lhe qualquer coisa: de todos os modos, o pai via tudo, e este olho observador do pai era identificado inconscientemente com o Sol. Abraham tira a conclusão óbvia: “o medo do paciente pelos olhos do seu pai [.. .] é a expressão deformada do seu desejo de escapar ao olho inquisidor”[28]. Outro fator a contribuir para a identificação entre o pai e o Sol era o tema do brilho: o pai era inteligente, brilhante, etc. Tantos elogios recobriam, como se pode imaginar, o intenso ciúme que o paciente sentia em relação ao pai. Um de seus temores consistia em olhar para a mãe; impunha-se verdadeiros malabarismos para não ter que vê-la, ou ver algo do seu corpo descoberto que não fosse o rosto ou as mãos. O Sol que não deve ser visto representava portanto a mãe que o filho não deveria ver, se quisesse escapar à cólera do pai, cuja vigilância era igualmente simbolizada pelo Sol. Em particular, o que é proibido ao filho olhar é aquilo que ele deseja intensamente ver, o sexo da mãe: a fantasia “ver o sexo materno” sustenta as duas simbolizações, a do Sol como alegoria deste sexo e a do Sol como olho vigilante do pai, ocupado em impedir que o menino veja o sexo em questão e portanto seguindo todos os passos dele. O impulso visual, excepcionalmente forte e por isso reprimido com força inusitada, vai se deslocar então para outras coisas, em especial para partes do corpo feminino habitualmente fora da órbita sexual (é o preço do sintoma): os olhos e os pés. As moças que usassem óculos ou que tivessem um pé artificial o excitavam sobremaneira; interessava-se também por jovens que tivessem sofrido uma amputação, e fantasia com frequência que iria roubar os óculos de alguma garota míope ou arrancar o membro artificial de alguma mulher aleijada. Não é preciso ser uni grande psicanalista para compreender o sentido destas ideias: são representações do desejo de castrar a mulher. Se ela pode ser castrada, é porque possui um pênis, e esta fantasia representa por sua vez uma denegação do medo de ser castrado: não é preciso temer isto, porque “ninguém é castrado”, “a castração não existe”. Assim como o medo de perder seu próprio olho, porém, a angústia da castração não desaparece por este sofisma: ela continua presente no inconsciente, como punição esperada pela contemplação proibida e como um deslocamento do temor de perder o pênis, transposto para o temor de perder um olho. “A punição pela privação da vista aparece como a pena de Talião pelas tendências voyeuristas dirigidas à mãe, e pelas fantasias ativas de castrar o pai ou de deixá-lo cego.”[29] Cego por quê? Porque, como mostra o sonho revolucionário de Freud, nada melhor do que ter um pai cego para poder observar sossegadamente a mãe ou o pênis deste pai.

O caso narrado por Abraham está longe de ser raro na prática psicanalítica. Embora os sintomas de seu paciente sejam bastante específicos, o fato é que inúmeras vezes se verifica a existência de fantasias inconscientes semelhantes às que ele descreve. O mais curioso, porém, é que o mesmo símbolo — o Sol — venha a representar simultaneamente o olho do pai e a vagina da mãe, mediante um jogo de clivagens, de projeções e de deslocamentos que giram em torno da polaridade “sujeito que vê/objeto que é visto”, nos registros complementares do desejo e do temor, e com significações sexuais e agressivas. A associação do olho com o sexo masculino é menos estranha do que a sua associação com o sexo feminino, pelo menos… à primeira vista. Mas ela surgia, vocês se lembram, no “sonho de um homem” relatado por Freud: ali era a carne vermelha das pálpebras que simbolizava os genitais da mulher. Esta relação é portanto dupla: numa primeira vertente, o genital é visto pelo olho e a punição por ver o órgão genital representa-se pelo arrancamento do órgão pecador; numa segunda vertente, o olho é ele mesmo símbolo do genital feminino (o olho da mulher que representa a sua vagina avermelhada). Parece portanto haver uma rede de representações extremamente densa, na qual, por um efeito de espelhamento, o que vê e o que é visto se embaralham o tempo todo, numa atmosfera impregnada de terror e de ansiedade que remete constantemente à castração — ora castração de quem vê, ora castração já realizada no órgão feminino que é visto. A isto se soma, como vimos, a ereção do olhar separador e discriminador, como um escudo frente ao horror do abismo igualmente tornado presente por meio da visão. Ora, há um mito grego no qual estes temas aparecem com notável clareza, e pode ser útil estudá-lo mais de perto, a fim de compreender a vinculação que os une na mesma rede de representações . Trata-se, vocês já adivinharam, do mito de Medusa, a Górgona que transforma em estátua de pedra todos aqueles sobre quem recai seu olhar. Para nos guiar nestas paragens, recorreremos ao helenista francês Jean-Pierre Vernant, autor de um lindo livro que se chama La mort dans les yeux.

Vernant ressalta um fato curioso e talvez pouco conhecido: a face de Medusa é uma máscara. Esta máscara tem duas características: é sempre representada de frente, exceção notável nas convenções pictóricas dos gregos arcaicos, e é sempre horrivelmente monstruosa, misturando traços de diferentes animais (serpentes, leões, etc.), embaralhando todas as categorias, o humano e o divino, o animal e o humano, o masculino e o feminino. Trata-se de uma representação daquilo que é absolutamente outro, do caos, do que é indizível e impensável, e que só pode ser encontrado num clima de terror sobrenatural. É ainda uma representação da vagina no que esta pode conter de assustador e de horrendo, nisto opondo-se a outras imagens, que a representam como algo benigno ou simplesmente ridículo. Tal é o caso da história de Baubô, que conseguiu fazer rir a deusa Deméter (inconsolável porque sua filha Perséfone havia sido raptada por Hades, o deus dos infernos) mediante um gesto obsceno, o de levantar a saia e exibir sua vagina, grotescamente maquiada como um rosto que faz caretas.[30] De onde vem o esquema plástico desta potência sobrenatural, que associa tão intimamente a cabeça, o rosto e o sexo feminino?

Uma investigação dos poemas homéricos mostra que, na Ilíada, a cabeça de Medusa está ligada à aparência e à mímica do guerreiro possuído pelo ménos, pela fúria destrutiva do massacre. Vários detalhes apontam nesta direção: o brilho do seu olhar aterrorizador remete ao fulgor do bronze de que eram feitos capacetes e escudos, a fim de ofuscar o adversário; ela é constantemente descrita como emitindo uivos agudíssimos, sons horripilantes e ranger de dentes que reproduzem os gritos com que os guerreiros buscavam assustar o inimigo. O tema da cabeleira eriçada de cobras faz parte do mesmo contexto: os combatentes de Esparta deixavam crescer o cabelo e o untavam com substâncias que o tornavam brilhante, sempre com o intuito de compor uma aparência aterrorizadora. Por contraste, é interessante assinalar que era costume, também em Esparta, cortar o cabelo das noivas, hábito cujo sentido óbvio é o de despojá-las de qualquer resquício de selvageria ou de agressividade. Outro elemento que remete à guerra é a associação de Medusa com o cavalo: assustado, ele tem um aspecto terrível, relincha agudamente, bate as patas, ajuda a semear o pânico nas hostes adversárias. Segundo a lenda, Medusa morta pare pelo pescoço o cavalo alado Pégaso, confirmando esta ligação ressaltada por Vernant. Neste quadro, no qual o medo está associado ao aspecto visual do guerreiro enfurecido, é que vai surgir o tema do olhar que petrifica. Na Ilíada, Medusa ou Gorgô ainda não é aquela que transforma os homens em estátuas, mas seu olhar já veicula a dimensão do pânico, do terror sobrenatural: a face dela adorna a égide de Palas Atena e o escudo de Agamenon. Um eco desta associação com a guerra está na forma como Ovídio narra a história de Perseu, o herói que decapitou o monstro: ele emprega sucessivas vezes e para vencer os mais variados oponentes, sempre em contextos de luta, a arma terrível que constitui a cabeça da Medusa.

Na Odisséia, o cenário muda: já não é o campo de batalha, mas o Inferno, que acolhe a moradia de Gorgô. Ela impede a entrada dos vivos no Hades, sendo sua função simétrica à do cão Cérbero, que não deixa os mortos saírem do reino do além. Gorgô só permite aos vivos que penetrem no Hades transformando-os em mortos, isto é, petrificando-os com o seu olhar. Assim, ela passa a estar associada não apenas ao medo que gela os corações, mas, igualmente, por uma metáfora que parte da paralisia que invade quem se sente aterrorizado, à própria ideia da paralisia. Unindo este tema ao da morte, que vem da representação bélica anterior, temos a imagem do cadáver rígido, protótipo da estátua de pedra em que Gorgô converte quem ousa fitá-la. Esta rigidez é complementada pela enorme agitação de quem está possuído pelo pavor, e este elemento está presente na mobilidade das serpentes que se agitam na cabeça do monstro. A agitação desenfreada vincula-se também à dança e à música orgiástica que a acompanha, ecos do aspecto sonoro herdado da tradição mais antiga. Conta-se que a flauta foi inventada por Palas Atena para imitar os sons agudos que havia ouvido saírem da boca de Medusa. Ora, no sistema musical dos gregos, a flauta é o instrumento que acompanha a dança e o transe, opondo-se à lira: está associada aos modos variados da mania, o furor irracional que se apodera dos homens no delírio, no êxtase, nos movimentos frenéticos, etc. E como quem sopra na flauta faz um enorme esforço com os músculos faciais, temos aí novamente o tema do rosto assustador que provoca o medo em quem o vê.

A lenda de Perseu, narrada por Ovídio nos livros IV e V das Metamorfoses, tem diversos pontos de contato com a de Édipo, além da presença dos olhos nesta última (a cegueira final, mas também a visão inteligente que o faz adivinhar a resposta aos enigmas da Esfinge – também ela um monstro feminino ligado à sexualidade; mas isto é uma outra história). Existe a profecia de que matará seu avô; por isso, este encerra a filha num subterrâneo, mas Zeus a fecunda transformando-se numa chuva de ouro. A mãe e a criança são expulsas da cidade, numa caixa fechada abandonada à natureza selvagem, aqui figurada pelo mar. A caixa chega a uma ilha, governada por um tirano a quem Perseu promete, numa festa em que se embriagou, trazer de presente a cabeça da Górgona. Para executar esta proeza, ele necessita de instrumentos mágicos que estão com as Ninfas, e ninguém conhece o caminho até as Ninfas, exceto as Gréias, três velhas que possuem um dente só e um olho só: estes passam de mão em mão quando elas querem ver ou comer, e Perseu as obriga a revelar o caminho surrupiando o olho único no instante em que uma delas o dá a outra. As Ninfas lhe entregam sandálias aladas como as de Hermes, o capacete de Hades que torna invisível quem o usa, um alforje para esconder a cabeça decepada, e a harpé, a foice com que deverá ser cortada a cabeça de Gorgô. Reparem quantas alusões aos olhos: o único olho das Gréias, o capacete que deixa invisível, o fato de que Perseu se serve de seu escudo como um espelho, evitando cruzar os olhos com Gorgô. Mas também aparecem referências à castração: Perseu furta o olho das velhas como o paciente de Abraham imaginava roubar os óculos das moças míopes, e, detalhe fundamental, a harpé é a foice que Kronos usou para castrar seu pai Uranos.

Num curto texto de 1922, e que permanceu inacabado, Freud estuda o tema da cabeça de Medusa. Sua interpretação é clara e concisa: tudo nesta história remete à castração, a começar pela própria imagem da cabeça cortada. A sutileza de Freud, porém, seu verdadeiro gênio interpretativo, aparece ao falar das estátuas de pedra: estas representam não só a cegueira e a morte, mas sobretudo a rigidez do pênis em ereção, isto é, constituem uma esplêndida formação de compromisso pela qual o poder castrador do olhar de Medusa é simultaneamente afirmado e negado. “Fico duro como um pênis — sou o pênis — portanto não o perdi.” Reconhecemos aqui um eco da identificação do sujeito com seu membro sexual, que é o momento zero da pulsão de ver no texto de 1915. Outra denegação da castração aparece na cabeleira da Górgona, feita de serpentes que são outros tantos símbolos fálicos. O que a imagem conota, assim, é tanto a realidade da castração quanto a denegação de que ela exista e seja eficaz. Mas por que seu agente precisa ser uma figura feminina? Porque a castração denegada, antes de ser a do próprio sujeito, é a castração da mãe:[31] a cabeça de Medusa representa antes de mais nada a reação do menino frente à contemplação dos genitais maternos, a “vagina coberta de pêlos” que aterroriza a imaginação infantil. A ênfase no olhar do monstro nada mais é do que a transposição do fato de que, para perceber a ausência do pênis na mãe ou nas meninas, é preciso enxergar o sexo delas: o olho “demonstra” a castração, e desta forma sua representação entra no circuito das fantasias relacionadas com ela.

Mas esta explicação não pode nos satisfazer, pois a mulher não é um homem castrado. Se o olho “percebe” a castração, é porque já está dada a fantasia de que ela existe: trata-se de uma interpretação, não de uma percepção. Em outras palavras, é porque o olho já gravita na órbita das representações ligadas à castração — tanto como veículo da curiosidade a ser punida quanto como símbolo do genital masculino — que a visão da vagina “confirma” a validade das fantasias correspondentes, reforçando o vínculo que já unia os olhos aos genitais. A esta gênese do vínculo em questão, convém acrescentar aquela outra, originada na esfera do narcisismo, pela qual a protofantasia da visualidade se enuncia “sujeito olhar seu próprio membro”. O que ocorre, na verdade, é que a representação dos olhos está sobredeterminada, e pode ser útil distinguir dois níveis diferentes nesta cadeia de determinações: o nível da triangulação edipiana, e um outro, mais arcaico, ligado a fantasias das quais a representação do pai está ausente. No nível edipiano, os olhos são o instrumento da curiosidade sexual infantil e servem para ver aquilo que está reservado ao pai, isto é, a nudez da mãe, com todas as consequências que esta descoberta acarreta para a estruturação da diferença sexual. É assim que eles aparecem no relato clínico de Abraham, e é assim que aparecem na análise feita por Freud de um conto de Hoffmann, “O homem da areia”. Este homem da areia é um velho monstruoso que arranca os olhos das crianças para dá-los a seus filhos, portanto é de saída uma figuração do pai (tem filhos) e do pai castrador. Este é o eixo da leitura freudiana. A angústia pela perda dos olhos aparece intimamente ligada à morte do pai, e esta imagem surge no conto a cada vez que o herói está prestes a realizar seu desejo sexual (namorar, casar, etc.). A imagem do pai castrador é figurada pelo advogado Coppelius e pelo fabricante de instrumentos óticos Coppola, que nada mais são do que as vertentes malignas da imago paterna.[32] A fantasia de ser castrado pelo pai contém um elemento fundamental, o de que esta ação paterna torna possível um gozo “feminino”, e portanto materializa a atitude feminina frente ao pai, que é um dos componentes do complexo de Édipo. Na história de Hoffmann, a boneca automática Olímpia encarna esta faceta do inconsciente do personagem central, o estudante Natanael.

Nas análises explícitas de Freud, o tema dos olhos sempre aparece neste contexto, cujas coordenadas são o Édipo e a castração pelo pai edipiano. Mas o estudo de Vernant sobre a máscara de Medusa, assim como a significação bissexual do Sol no caso de Abraham, e o “sonho de um homem” relatado na Traumdeutung apontam para um outro nível de significação: um nível em que os olhos e o olhar não remetem mais ao pênis nem ao pai, e sim ao sexo da mulher, em especial ao sexo da mãe. E parece-me que, neste segundo contexto, as fantasias associadas a estas representações mergulham num terreno mais profundo, mais arcaico, e por isto mesmo portador de uma angústia muito mais intensa. Vernant alude a esta dimensão desde o início do seu livro, assinalando que, das potências do Além em cujo culto ou a respeito das quais intervêm máscaras, Gorgô é a que representa a alteridade absoluta, o caos, o informe e a morte. Duas divindades helênicas estão associadas às máscaras: Artemis e Diônisos. Artemis não é apenas a deusa da caça, mas também a divindade que preside as margens, as fronteiras ao mesmo tempo nítidas e permeáveis que separam a Natureza e a Cultura: protege os partos (fronteira entre a não-vida e a vida), cuida das crianças até a adolescência (momento em que entrarão na vida da polis, como efebos ou como noivas), vela pela caça (que é incursão do civilizado no reino do natural, com retorno do natural para o civilizado sob a forma do cozimento daquilo que se caçou), Diônisos representa a alteridade do transe, do não-normal, do disfarce, da embriaguez e do teatro: é a divindade estrangeira que se heleniza, mostrando que podemos ser “outros” sem deixarmos de ser “o mesmo”, o que aliás é verificado pelo fato de que o teatro, campo de Diônisos, se situa no centro mesmo da Polis.

Frente a estas potências que abrem portas para uma alteridade de certa forma domesticada, Gorgô se ergue como a representação do caos, daquilo que mistura todas as regiões do ser e embaralha as espécies, os sexos, o aquém e o além. A desordem, como vimos, já se instala nas suas próprias feições, constituídas com pedaços da face de vários animais. O pavor suscitado pelo seu olhar é um pavor do informe, daquilo que abole todas as categorias, isto é, da homogeneidade absoluta da morte. O aspecto importante é que a ação desta potência se dá quando seu olhar cruza o olhar do homem: como é sempre representada de frente, é impossível vê-la sem ser visto por ela. Neste cruzamento de olhares, instala-se a fascinação especular: ela petrifica quem a vê, e, petrificado, o homem se torna também cego e opaco, além de, obviamente, rígido. Há portanto um efeito de desdobramento: a face da Górgona reproduz a natureza da máscara, que consiste em ser um reflexo do rosto humano e ao mesmo tempo ser capaz de se destacar dele, podendo ser portado por um outro. Se usar máscara é alienar-se no rosto deste outro, ao menos enquanto dura a mascarada, fitar a máscara da Górgona é tornar-se vítima da alienação mais radical, “como se esta máscara só tivesse se separado de você para se fixar à sua frente, como sua sombra ou seu reflexo, sem que você possa se separar dela. É o seu olhar que está preso na máscara. O rosto de Gorgô é o Outro, o duplo de Você mesmo, o estranho, em reciprocidade com seu rosto como uma imagem no espelho… Quando você encara Gorgô, é ela que faz de você este espelho no qual, transformando-o em pedra, ela mira sua própria e terrível face, e se reconhece a si mesma neste duplo, no fantasma em que você se transforma a partir do momento em que enfrenta o olho dela”.[33]

Para Vernant, estudioso da religião grega, o que a máscara de Gorgô dá a ver é minha própria imagem depois de morto: daí sua terrível potência, que se estende entre o terror e a morte, passando pelo olhar e pela paralisia. Para o psicanalista, estas representações — e o próprio fraseado do trecho que acabei de citar — situam o olhar de Medusa no registro do narcisismo primitivo, registro no qual o desdobramento, a sombra, o reflexo e o espelho constituem manifestações do “duplo”. Encontrar-se com este duplo produz uma sensação celebrizada por Freud em seu estudo Das Unheimliche: unheimlich quer dizer sinistro, inquietante, estranho, assustador. É ao estudo dos fenônemos que despertam tal sentimento que é dedicado o texto, no qual figuram entre outros temas o dos olhos e de sua relação com a castração, já que a imagem do Homem da areia é unhei much em grau superlativo. Mas o tema da castração não é o único a gozar deste privilégio, apoiando-se num estudo de Otto Rank — “O duplo” — Freud mostra que todas as variações do duplo são igualmente unheimlich . Entre estas, encontra-se a representação da morte, que segundo Rank é a própria imagem do duplo: o duplo é primeiramente a alma, que sobrevive à morte, e portanto constitui uma denegação do seu poder de aniquilamento . A imagem no espelho, a sombra, o reflexo são figurações da alma, que se volta contra o sujeito e se torna independente da sua vontade; variações mais modernas deste tema são as bonecas animadas, os robôs, os andróides, Frankenstein e outras criações que compartem com as primeiras a qualidade de serem sinistras. Mas Freud dá um passo além de Rank, argumentando que o caráter sinistro do duplo, em suas manifestações variadas, não é originário, e sim derivado. O que fundamenta sua asserção é precisamente a ligação do duplo com a esfera do narcisismo primitivo: antes de ser um mensageiro sinistro da morte, o duplo é o refúgio de todas as aspirações não realizadas do ego, isto é, encarna o ego ideal.[34] É só posteriormente, quando novos momentos evolutivos já se instalaram e exigem o abandono desta imagem superinvestida de si mesmo, que o duplo vem a ganhar sua significação de espantalho: esta nada mais é do que a expressão da censura que foi interiorizada no meio tempo, e para quem as pretensões à perfeição, à imortalidade e à onipotência características do ego ideal precisam ser estigmatizadas como negativas, ou, melhor ainda, precisam ser reprimidas.

O interesse destas observações de Freud consiste em mostrar que o que torna sinistra a figura do duplo não é ser este minha sombra ou uma antecipação do meu aspecto no Além, mas o fato de que ele é alga que retorna inopinadamente. E este algo é perfeitamente definido: trata-se do reprimido que retorna aureolado de angústia, irreconhecível precisamente por causa da repressão. Mas nem todo retorno do reprimido é angustioso; o que particulariza esta categoria do retorno do reprimido, e portanto define a essência do sinistro, é que esta qualidade se torna perceptível “quando complexos infantis reprimidos são reativados por uma circunstância exterior, ou quando convicções primitivas superadas parecem encontrar uma nova confirmação”.[35] Entre estes complexos infantis, aqueles ligados ao que é separado ou separável assumem especial importância: é por sua relação com a castração que membros decepados, espectros ( = espíritos separados do corpo), cadáveres ( = corpos separados da alma) e todas as monstruosidades do Além (vampiros, lobisomens, mulas-sem-cabeça, sacis…) adquirem o caráter de singular estranheza que lhes é peculiar. Neste sentido, os olhos estão duplamente determinados: são eles que percebem as “circunstâncias exteriores” que parecem confirmar crenças arcaicas ou que reativam complexos infantis; e eles mesmos podem ser arrancados, isto é, separados do corpo. Por isto são o símbolo por excelência do órgão castrável, o pênis, e por isto figuram na lenda de Medusa. O elemento mais fundamental desta série de representações é a ideia de separar, no sentido de cortar com violência: assim, todas as feridas, operações, extrações de dentes, etc. são aptas a figurar a castração. O segundo elemento fundamental é que o agente desta castração age por vingança e para restabelecer seus privilégios ameaçados ou usurpados pelo que vai ser castrado: neste sentido, é um agente que permanece exterior ao sujeito, jamais se confunde com ele nem com o órgão castrado, e pode perfeitamente ser figurado pelo pai, de quem o sujeito esteve sempre “separado” (no sentido de não ter saído da barriga dele), e com o qual é possível entrar num conflito de rivalidade figurável como um combate (Édipo e Laio, Freud e Jakob…). Assim, um membro decepado é unheimlich porque remete às antigas fantasias de castração, reativadas por ocasião da visão de algo exterior, e que parecem se confirmar pela própria presença do membro decepado: decepado, supõe-se, por alguém que tem o poder de decepar, e que decepa o membro de outro como um aviso para mim — as fantasias podem ser inúmeras, a partir de ideias deste gênero.

Tudo isto diz respeito ao que chamei de “primeiro nível”, ou nível edipiano, da representação dos olhos e do olhar. Mas isto ainda não nos explica por que a figura de Gorgô é uma figura feminina. De acordo com o que acabo de dizer, não seria muito mais lógico que ela fosse uma figuração do pai, e portanto masculina como ele? Bem, dirão vocês, há o deslocamento: Medusa poderia representar, sob um disfarce feminino, uma potência essencialmente masculina. Talvez, mas uma consideração mais detida do texto de Vernant mostra que não é assim. Leiamos:

esta monstruosidade só pode ser abordada de frente, num enfrentamento direto com a Potência, a qual exige, para ser vista, que se entre no campo do seu fascínio, com o risco de se perder nele. Ver a Górgona é olhá-la nos olhos, e, pelo cruzamento dos olhares, deixar de ser si mesmo… O fascínio significa que o homem não pode mais separar seu olhar, desviar seu rosto do rosto da Potência. Seu olho se perde no olho da Potência, que o olha assim como ele a olha; ele próprio é projetado no mundo presidido por esta Potência… Pelo jogo do fascínio, o que vê é arrancado de si mesmo, despossuído do seu olhar, invadido pelo olhar da figura diante dele e que, pelo terror mobilizado por suas feições e pelo seu olho, se apodera dele e o possui.[36]

De propósito, sublinhei neste texto as metáforas mais características: perder-se, deixar de ser si mesmo, não mais poder se separar ou se desviar, ser arrancado de si… É bastante claro, acredito, que aqui não se fala mais de seccionar o que está inteiro ou articulado, mas de outro tipo de ataque, ataque que funciona por aspiração e não por corte. Há um termo que retorna três vezes neste parágrafo de Vernant: é a palavra fascínio, que certamente conota imobilidade e paralisia, mas, sobretudo pelo efeito de espelhamento, representa a absorção que a figura feminina impõe ao sujeito. Quem olha Gorgô não se limita a virar pedra: de certo modo, funde-se com ela, deixa de ser “um” e passa a ser — não muitos pedaços, mas uma espécie de pasta sem forma, que é como que engolida pelo olho de Medusa. De tal maneira que a estátua de pedra é apenas um resíduo do que foi um homem, após cumprir-se esta operação designada como “perder-se”, “ser projetado para o mundo ao qual preside a Potência”, ser despossuído de si”. É uma operação de homogeneização, de apagamento de todas as diferenças, em especial dos limites do corpo da psique, da diferença individuante que torna cada um de nós um. O olhar de Medusa aparece assim como o veículo de um retorno ao indiferenciado, e o instrumento pelo qual se realiza este retorno é precisamente o olho — pois aqui não é mais possível distinguir do olho dela o meu, há apenas um olho para os dois. Reparem na profusão de oscilações do mesmo ao mesmo no texto de Vernant: o movimento é descrito ora do ponto de vista do monstro, ora do ponto de vista da vítima (“seu olho se perde no olho da Potência, que o olha como ela a olha”, por exemplo). Esta vítima não é fragmentada pelo olhar de Gorgô, mas “aspirada” ou “invadida” por ele. Em poucas palavras: o olhar de Gorgô representa a realização do incesto, não sob a forma de um coito entre dois adultos, um dos quais é a mãe do outro, mas sob a forma irrepresentável da dissolução de si no retorno ao indiferenciado. O olho de Medusa encarna o poder de absorção da vagina materna, e é sem dúvida para tapar este orifício devorador que a fantasia infantil o dota de um portentoso falo.

O terror sem fundo e sem forma materializado no que Vernant denomina “o caos” é pavor frente a uma mãe onipotente e sem limites, cujo sexo toma a forma imprecisa de uma não-forma, de um abismo sem contornos e sem arestas, ao qual não corresponde e não pode corresponder o pênis de um pai. Para que esta imagem terrorífica possa ser atenuada, é necessário que surja a representação de um limite, de um perímetro capaz de circunscrever um espaço, de distinguir um dentro e um fora: esta é a função da boca, que, decerto, sorve e devora, mas está limitada pelos lábios e pode ficar aberta ou fechada. O medo de ser devorado pela mãe é portanto uma formação inconsciente certamente angustiante, porém menos do que a de ser aspirado e reintroduzido entropicamente no corpo do qual se nasceu. A Medusa representa, pois, não uma, mas duas modalidades do terrível: a primeira, esta da qual estamos falando, a segunda, a que se vincula à castração. Pois, frente à ameaça do caos, a possiblidade da castração — por angustiosa que seja — constitui claramente um perigo menor, porque concerne à perda de uma parte de si e não à morte completa. E mesmo a ameaça de castração pode ser denegada: a estátua é, lembram-se, a prova de que o pênis está ali, e mais duro que nunca. Quanto à outra modalidade do terrível, sua representação mais aproximativa é o escuro, do qual tantas crianças têm medo. O que assusta no escuro? Precisamente a ausência de orientação. Não deixa de ser significativo que as histórias infantis representem o perigoso sob a forma individuada e suscetível de ser localizada de monstros que têm nome, forma e hábitos mais ou menos regulares: o lobo mau, o bicho-papão, etc. Eles são seguramente assustadores, porém menos do que o “escuro”, porque contra eles é possível se defender. No mundo grego, é a figura de Mormô, uma cabeça sem corpo e que morde como um cavalo, que representa o nosso bicho-papão: ela vem de noite devorar as crianças desobedientes. Reparem que a figuração da castração funciona ao mesmo tempo como um perigo e como uma defesa: a cabeça de Mormô já é um orgão separado do corpo, ela morde (como o cavalo do pequeno Hans), mas também pode ser vista e neutralizada, enquanto com o que é “escuro” não se pode fazer nem uma coisa nem outra. E é por sua relação com o escuro (do Hades, onde as trevas são eternas) que o olhar de Mectusa representa simultaneamente o incesto e a morte.

Do ponto de vista clínico, a ligação do olho com o sexo feminino em seu sentido de “carne vermelha que horroriza” está patente no sonho do paciente de Freud, quando o olhar esbugalhado da mãe o convida a retornar a este indiferenciado/homogêneo/escuro que é o ventre materno antes da nossa concepção. No material relatado por Abraham, a. história de uma paciente que buscava a obscuridade mais completa tem conexões evidentes com o tema da Medusa, como ressalta o próprio autor; ora, na neurose desta paciente, a fantasia de retornar ao ventre materno — particularmente ao seu intestino, conforme a teoria sexual infantil que assimila o nascimento à defecação desempenhava um papel capital.[37] E tal fantasia, como mostra Freud em seu estudo, é unheimlich em grau superlativo.

Unheimlich, como sabemos, quer dizer sinistro, estranhamente familiar e ao mesmo tempo inquietante. Há nesta palavra a condensação de dois opostos, o familiar e o estranho, e a análise de Freud mostra que o familiar se tornou estranho; da conjunção do que era conhecido com o seu avesso provém o sentimento em questão. Deste ângulo, a cabeça de Medusa é unheimlich , na medida em que nesta representação coincidem o terror do informe e seu antídoto, o medo da castração. Que o veículo desta Unheimlichkeit seja o olho não deve, a esta altura, nos soar tão improvável. Pois os olhos e o olhar são especialmente aptos para figurar a coincidência dos contrários, o tranquilizador e o horripilante. Quando Freud redige suas associações sobre o sonho “Non vixit” , o termo unheimlich aparece imediatamente referido aos olhos de P.: “eu o olho de um jeito penetrante, e os olhos dele se tornam merkwürdig und unheimlich blau, singular e estranhamente azuis… ” . Ora, é muito notável que o alemão possua um outro vocábulo que abriga significações contrárias, e que este vocábulo diga respeito precisamente ao olhar. Übersehen quer dizer abranger com a vista, ter uma perspectiva global, uma literal supervisão; e também não ver, deixar passar, não reparar, não dar por: ser indulgente, em suma. (Indulgência se diz Nachsicht, onde para variar encontramos… sicht, equivalente ao inglês sight, isto é: a visão). No sonho em que Freud passa brilhantemente seu exame de história, a ajuda do professor caolho consistiu precisamente em übersehen: o “caolho prestativo” não deixou de reparar numa marquinha feita pelo estudante na pergunta que ele tinha menos condições de responder, e deixou-a passar sem muita insistência, graças ao que Freud tirou a nota máxima. É como se cada um dos olhos encarnasse um dos sentidos de übersehen: um deles vê, o outro não — de forma que o caolho é a representação plástica mais conveniente para este círculo de ideias.[38]

Übersehen, ver nitidamente, circunscrever, focalizar o conjunto, abranger —, é o olhar luminoso que já conhecemos, aquele que discrimina e classifica a serviço do reasseguramento e do controle do assustador. O sujeito deste olhar é, em seus escritos, invariavelmente Freud, o que “resolveu o grande enigma”, o conquistador, etc. Übersehen: não ver, deixar passar, ser portanto surpreendido e correr sérios riscos —, é o olhar que emana de um buraco, do vazio da órbita do dr. Pur, mas vazio enganador, porque não é placidez e ausência. E sim boca do Inferno. Olhar metaforizado na potência absorvente do feminino, na garganta de Irma, na pálpebra avermelhada da mulher do “Sonho de um homem” — este olhar visa Freud, se dirige e ele e ameaça aspirá-lo como Medusa aos guerreiros gregos. Este olhar de sucção e de aniquilamento tem sua origem na representação angustiante do abismo, localizado o mais das vezes no sexo feminino ou em representações que o substituem. Olhar, portanto, que rompe os limites, que dissolve aquilo sobre o que recai — espelho mágico cuja imagem é a face de Gorgô. Quem sabe se não era este o olhar que Freud não suportava oito horas por dia? Talvez; o fato é que, no texto do qual partimos, a última alusão ao olhar faz referência à situação analítica.

“PERSISTO, PORÉM, NESTA MEDIDA”…

“Persisto, porém, nesta medida, que tem e atinge — o propósito de impedir a mistura imperceptível da transferência com as associações do paciente, e de isolar a transferência deixando-a aparecer a seu tempo como           resistência nitidamente circunscrita.”[39] O sentido imediato desta frase é claro; interessa-nos mais, porém, o entrelaçamento das metáforas, e o que elas deixam adivinhar quanto ao clima afetivo em que se situam. Notemos o tom enfático e a palavra “propósito” (Absicht: mais uma vez…): trata-se de alguém seguro, que sabe o que quer e os meios de consegui-lo. E no que consiste o êxito?

Numa série de operações cujo alvo é da ordem da defesa: impedir, isolar, evitar a mistura imperceptível. O dispositivo analítico é concebido para exorcizar a Medusa, para assegurar, ao menos de início, um mínimo de transparência ao que vai ocorrer. Frente à inevitável manifestação de transferência, que virá precisamente operar uma mistura (a “falsa ligação” que desde os Estudos sobre a histeria acompanha a psicanálise) entre as imagos arcaicas do paciente e a pessoa do terapeuta, a frase de Freud descreve um movimento separador, capaz de captar a sombra sem confundi-la com a tela na qual se projeta. A ordem instaurada pelo gesto separador se implanta tanto na coordenada espacial (“nitidamente circunscrita”) quanto na vertente temporal (“a seu tempo”). A exclusão do olhar do paciente tem, seguramente, razões técnicas ponderáveis, mas estas não vêm ao caso agora: interessa-me mostrar que é inegável uma certa continuidade, na ordem da fantasia, entre o “não suporto ser fitado” e a descrição aparentemente neutra das vantagens técnicas decorrentes da posição invisível em que se coloca o analista. Poderíamos traduzir isto assim: para que eu possa ver, o outro não deve me ver. No jogo transferencial que imanta o campo analítico, é patente que aqui Freud cinge o capacete de Perseu, e que, de um modo ou de outro, o paciente é que está no lugar da Medusa… No fluxo das associações do paciente, o analista aparece assim como alguém capaz de discernir o instante em que se instaura uma transferência, e, como esta deve ser interpretada, ao vê-la se segue o dissolvê-la. O olhar do analista encarna os poderes descritos, muito precisamente, como isolantes, e necessita ser tanto mais agudo quanto mais imperceptível é a mistura que ele está encarregado de impedir.

Esta descrição do trabalho do psicanalista não é, certamente, a única que encontramos em Freud; ela predomina sobretudo em seus primeiros escritos, nos quais o trabalho analítico assume a forma de um constante desenterrar de significações. Freud detetive, juntando indícios que configuram a cada vez a cena do crime, ainda é a imagem, que ressalta do caso Dora. É curioso notar que as metáforas arqueológicas alternam com as metáforas teatrais e com as metáforas bélicas, quando Freud tenta descrever seu trabalho com os pacientes. Noções como “resistência” e “investimento” têm obviamente uma origem guerreira; mas o que mais vem se inserir na pena de Freud são as imagens visuais. Aquilo que produz uma histeria é uma cena traumática; depois, será uma cena de sedução . O sonho se efetua num outro palco. Buscam-se representações reprimidas, que ao serem descobertas tomam o aspecto de cenas visuais. A exclusão física do olhar do paciente torna-se assim condição para uma verdadeira proliferação de imagens, proliferação que — por estranho que pareça — está do lado de Freud. O que ocorre no consultório da Verggasse 19 é uma verdadeira orgia visual, muito diferente da que se passava na consulta de Charcot, mas ainda assim orgia visual. E isto corresponde, com toda a clareza, ao desejo de Freud, o qual bem poderia apropriar-se da alcunha que seu mestre dera a si mesmo: “un visual”. Na Interpretação dos sonhos e nas Recordações encobridoras, ele se refere ao caráter extremamente nítido de suas primeiras recordações infantis; e, se levarmos a sério a interpretação da paixão de conhecer como sublimação da pulsão de ver, deveremos admitir que esta pulsão apresentava no caso de Sigmund uma intensidade extraordinária. A exuberância e a precisão de seus sonhos já bastariam para demonstrar isso, mesmo ao mais desatento leitor do seu livro.

A Interpretação dos sonhos termina com o famoso capítulo VII, no qual Freud constrói um modelo do que denomina “aparelho psíquico”. Este aparelho toma como paradigma um instrumento ótico, o telescópio (Freud = Coppola!?), que não apenas serve para ver o distante, mas sobretudo se compõe de um sistema de lentes espacialmente organizadas. A noção de “espaço psíquico” e a ideia de uma tópica fazem pensar numa sucessão de paisagem separadas por barreiras de montanhas, lagos, mares, e outros acidentes geográficos. Este espaço não é localizável na anatomia do cérebro, mas nem por isto deixa de ser um “visível”. Parece-me que esta condição responde tanto à necessidade de pôr em imagens conceitos de extraordinária complexidade, quanto à realização de um desejo excepcionalmente intenso do seu inventor. A imaginação teórica de Freud funciona num registro constantemente visual. Sirva de exemplo, entre dezenas de outras passagens, este trecho de “A psicoterapia da histeria”:

Se pudéssemos mostrar a um terceiro, após sua eliminação completa, o material patogênico em sua organização multidimensional, complicada e agora conhecida, este terceiro nos perguntaria com razão: “como este camelo pôde passar pelo buraco da agulha?”. Fala-se, não sem razão, de um “estreito da consciência”. O termo adquire sentido e vivacidade para o médico que realiza uma tal análise. Apenas uma lembrança pode entrar de cada vez na consciência do Eu; o paciente, que está ocupado com a elaboração desta única lembrança, não vê nada do que está reprimido, e esquece do que já emergiu. Se o domínio desta recordação patológica tropeça com dificuldades, por exemplo, se o paciente não desiste das resistências contra ela, quando quer reprimi-la ou mutilá-la, o desfiladeiro se fecha; o trabalho se interrompe, nada de novo pode vir, e a lembrança que se encontra na passagem fica ali parada, defronte ao paciente, até que este a tenha admitido no espaço do seu Eu. Toda a massa espacialmente extensa do material patógeno é assim forçada a atravessar uma estreita fenda, chegando fragmentado e aos pedaços à consciência. É tarefa do psicoterapeuta reconstruir a organização presumida a partir destes fragmentos…[40]

Penso que este texto fala por si só; não será possível, a esta altura, comentá-lo de forma detalhada. Mas vale a pena ressaltar um aspecto curioso: a ideia de que a lembrança, caso tropece com resistências intensas, “fica parada defronte do paciente até que este a tenha admitido no espaço do seu Eu”. Se imaginarmos que esta lembrança fica imóvel, como um quadro na parede, percebemos que Freud opõe aqui duas modalidades da relação com este conteúdo psíquico. O paciente pode ficar olhando para ele (Vorstel-lung, representação, contém o prefixo vorbefore — diante de), ou pode “admiti-lo no espaço do seu Eu”. Não é interessante que, nesta passagem, a visão esteja do lado da resistência? Com sua argúcia habitual, Monique Schneider tira grande partido desta notação. Costuma-se falar em “tomada de consciência” para designar o que acontece quando o reprimido vem à tona; o termo frequentemente utilizado para descrever o que se passa é insight, que contêm sight, visão. É certo que tal visão brota de súbito como uma fulgurância dificilmente verbalizável; mas conviria interrogarmos a própria ideia de uma visão, neste caso, por mais esclarecedora que possa ser. A ideia de “tomar consciência” também conota um movimento de assenhorear-se, de apoderar-se de algo, num movimento essencialmente ativo e cuja geometria é a de um distanciamento. “A tomada de consciência de uma realidade implicaria um movimento de libertação desta realidade, e não é uma libertação deste gênero que se pediria à psicanálise? Tomar consciência do seu passado, das suas motivações, das suas fantasias seria não mais ser escravo delas, mantê-las a distância, distância que se supõe ser a do olhar. A tomada de consciência seria este movimento de ruptura instaurador de um espaço, que torna possível o ato de ver.”[41]

Nesta perspectiva, “tornar consciência” quer dizer separar-se de, destacar-se de, e isto é possível porque se destacou algo (lembranças, motivações) da “massa extensa” e confusa do inconsciente. Significa recortar e pôr diante de si o que se recortou, a fim de melhor poder expelir o recortado, conforme o esquema expulsivo da terapia catártica. Esta visa, com efeito, a fazer com que um “corpo estranho” — a cena traumática — seja recuperado, a fim de ser eliminado de si, a fim de que deixe de constituir um “grupo psíquico isolado”, e ou bem se integre às demais correntes associativas, ou bem seja eliminado definitivamente, caindo no limbo do esquecimento. A catarse é purificação, eliminação do que havia sido traumático, restauração de uma integridade rompida pelo momento patógeno — e este momento é o do encontro com algo que vem de fora, capaz justamente de ser representado como um trauma, isto é, como um choque violento que por seu impacto quebra a cútis da psique. Que esta catarse tenha de ser operada mediante a revivescência do momento traumatizante — pois a condição da eficácia do tratamento é que a cena patógena seja recordada e revivida com toda a orquestração afetiva que lhe corresponde — nada altera quanto a este ponto: uma vez liquefeito e reposto em circulação, o afeto até então congelado e enrijecido se escoa pelas palavras e pelos gestos, num movimento de esvaziamento cujo término é quietude e serenidade. O princípio de inércia” do Projeto não diz outra coisa: a finalidade do aparelho psíquico é “livrar-se das excitações”, reduzi-las ao grau zero ou, como isto é impossível, mantê-las no grau mais baixo possível. Desta forma, “ver” a cena é o último elo da cadeia que começa com a sua reevocação e passa pela sua encenação no corpo e na psique, no calor da hora; num movimento que vai de dentro para fora, a cena como que se destaca da mente, situa-se simultaneamente no passado e à frente do indivíduo, e acaba por esvair-se como um fantasma que encontra o repouso. Freud imaginava escrever um livro sobre as neuroses, cuja epígrafe seria “Afflavit et dissipati sunt” , isto é, “soprou e se dissolveram” : o alvo da operação terapêutica é aqui a dissolução do sintoma ou da lembrança, um “então não era eu”; e o momento visual é solidário deste distanciamento, porque introduz uma luminosidade tranquilizadora sobre os monstros engendrados pelo sono da razão.

Ora, o assombroso é que, à medida que avança o texto dos Estudos sobre a histeria, esta ênfase na expulsão e no distanciamento como metas da terapia catártica vá diminuindo, e a ela, aqui e ali, vá sendo contraposto um modelo bastante diferente: o da “aceitação no espaço do Eu”, para retomar os termos do artigo mencionado há pouco. Esta aceitação ou admissão se dá no espaço do Eu ou na consciência do Eu, como é dito duas linhas antes. Monique Schneider nota que a configuração da consciência como um espaço introduz uma mudança radical na concepção ocidental da consciência, porque deixa de figurá-la como um agente capaz de realizar atos não apenas transparentes, mas ainda frutos de uma deliberação que depende essencialmente do sujeito. É curioso notar que a ideia de perceber — mesmo em seu sentido metafórico de “tomar consciência” — é absolutamente tributária, pelo menos até Merleau-Ponty, desta ideia de atividade situada no sujeito e que este exerce vis-à-vis um objeto, diferente dele não só porque é externo ou extenso, mas sobretudo porque é inerte. Tanto o grego katá/epsis, quanto o latim perceptio significam originalmente captação, apropriação de, e especificamente designam o ato de recolher impostos (em francês ainda se diz “percepteur des impôts”). O sentido ativo de recolher duplica-se aqui pela conotação do poder, já que quem recolhe impostos é o Estado, a cidade, uma autoridade, etc. Não é em absoluto casual que esta palavra tenha sido escolhida, quando da constituição pelos gregos do vocabulário técnico da filosofia, para designar o ato por excelência da consciência, e que no pensamento clássico ela tenha sido conservada. Ora, o que Freud designa como Annahme ou Aufnahme é algo radicalmente diferente: Annahme, com efeito, não significa ver, objetivar, mas, ao contrário, admitir, adotar, assimilar, isto é, tornar seu, movimento que envolve o ser em vez de desimplicá-lo. Não se trata apenas de constatar um processo, mas de desposá-lo, de acolhê-lo em si, de abrir um lugar para ele. E, quando se trata de representações inicialmente apreendidas como insuportáveis, este movimento de admitir evoca mais a ideia de uma abdicação do que a de uma tomada do poder”.[42] Não há mais espetáculo que se desenrola à minha frente e se oferece à minha visão, mas acolhimento de algo que brota de dentro de mim e que não se deixa apreender por um olhar. Nada de cenas delimitadas e isoláveis, capazes de serem captadas por uma sucessão bem definida de olhares bem definidos; a consciência espacializada aparece como um recinto do qual se demolem as paredes (em Freud, a tomada de consciência é correlativa ao levantamento da barreira da repressão) é uma derrota do ego e não uma vitória dele, e a resistência que este opõe ao processo o demonstra com suficiente clareza. A admissão do conteúdo reprimido já não pode ser comparada a um ato visual, não corresponde a uma discriminação ou a uma separação. Conscienciar não consiste em uma sucessão de atos distintos uns dos outros, mas num processo no qual as etapas se cavalgam e se imbricam, a tal ponto que Freud poderá falar a este respeito de um après-coup, de re-significação de um momento pelos que se seguem a ele. Elaboração, dirá Freud; mudança profunda no regime ontológico da consciência, dirá Monique Schneider, porque esta perde seu estatuto definitório de agente. Ela não será mais um soberano que percorre seus domínios e, inspecionando-os, se sente seguro. É preciso conceber a admissão à consciência como algo que exclui um face a face com a representação-cena; é preciso figurá-la como um processo de impregnação ou de penetração, em metáforas mais orais do que plásticas. E isto é correlativo à mudança de natureza daquilo que é conscienciado: da lembrança de uma cena traumática, passamos ao reconhecimento de um desejo ou de uma fantasia. Escreve Monique Schneider: “Não se pode comparar, com efeito, a descoberta de um pensamento que aparece face ao olhar com aquilo que se manifesta como emergência de um desejo. As metáforas da captura e da atividade, que sustentam o tema da ‘tomada de consciência’ ou do ‘ato de consciência’, se encontram aqui perplexas, incapazes de caracterizar algo que advém como uma experiência de desfalecimento, como uma transformação que atinge mortalmente toda veleidade ativa”.[43]

Defrontamos-nos assim com um outro aspecto da abolição do olhar na situação analítica, muito mais radical do que a proibição de encarar o psicanalista. Não é só a pessoa do terapeuta que se encontra subtraída à visibilidade, mas a própria visibilidade como modo de expressão da vida psíquica e na medida em que possa conotar uma ação de distanciamento frente às representações que vão surgindo no trabalho analítico. Pelo menos uma certa visibilidade, aquela que desde os gregos serve de paradigma do conhecimento: a visão clara e distinta, que Descartes promoverá a critério da verdade. O que faz avançar uma psicanálise não é a evidência intelectual das interpretações propostas pelo psicanalista, mas um movimento interior que ocorre com o paciente, e que dificilmente se deixa descrever em termos de atos de visão.

Isto não impede que o tema compareça nas associações do paciente. Como poderia deixar de surgir? Com frequência, toma a forma da fantasia de que falar de si equivale a desnudar-se; no interior da transferência, todas as posições ligadas à pulsão visual poderão se presentificar, segundo a organização de cada pessoa. A regressão na situação analítica é por vezes vivenciada como se o psicanalista fosse a Medusa, e, quando emerge, a imago da mãe primitiva não deixa de despertar o terror primevo a ela associado. É certo que, durante o tratamento, o paciente vê imagens, narra sonhos, etc.; mas este é o material da análise, não o seu resultado.

Para que a análise atinja seu resultado — e qualquer que seja nossa concepção acerca do que é este resultado — é necessário que o analista interprete aquilo que lhe é comunicado. Talvez seja nos processos psíquicos que precedem a interpretação verbalizada que possamos localizar, agora no psicanalista, o lugar próprio da visualidade na situação psicanalítica. No trecho citado no início deste já longo trajeto, Freud dizia que “eu mesmo, ao escutar, abandono-me ao curso de meus pensamentos inconscientes…”. Sabe-se que a “atenção igualmente flutuante” do analista corresponde à regra fundamental enunciada ao paciente, isto é, dizer tudo o que lhe vem à cabeça. Mas o analista não diz tudo o que lhe aparece quando se abandona ao curso de seus pensamentos inconscientes; encontra-se numa situação parecida àquela de quem sonha, a medida em que o acesso à motilidade — e a começar pela motilidade da fala — está impedido a maior parte do tempo. Seria necessário, mas não o faremos aqui, considerar detidamente a metapsicologia dos processos psíquicos do analista em seu trabalho, consideração da qual talvez surgisse alguma luz acerca do processo que resulta na formulação de uma interpretação. Mas é possível dizer, de modo muito sumário, que ela costuma passar por uma fase intermediária, na qual surgem no espírito do analista determinadas imagens, suscitadas pela interação entre o que lhe diz o paciente e seu próprio estoque de fantasias. Estas imagens assumem frequentemente o caráter de representações plásticas, que podem orientar a formulação da interpretação verbal, mesmo que esta — como sucede muitas vezes — não seja comunicada de imediato ao paciente. A linguagem do psicanalista é assim o contrário de um vocabulário técnico, pois de nada adiantaria fornecer ao paciente explicações sobre seus processos psíquicos. O “falar por imagens” é certamente um dos componentes da interpretação, e na elaboração destas imagens a pulsão de ver do psicanalista encontra um terreno mais do que propício para se exercer.[44]

E isto nos traz de volta a estes destinos da pulsão visual que examinamos atrás. Um. deles é sua sublimação em paixão de conhecer; o exercício da psicanálise pode ser a continuação deste processo. Muitas vezes, ele é também a forma tomada pelo desejo de reparação e de reconstrução das imagos infantis do próprio analista; longe de desqualificar seu trabalho, esta determinação leva em conta que a criança que vive em nós continua ativa, impregnando com seus desejos e fantasias boa parte do que fazemos como adultos. Neste sentido, o trabalho do psicanalista envolve tanto Eros quanto Tanatos, como qualquer atividade humana; lembremo-nos que a pulsão visual habita na vizinhança do sadismo e do masoquismo, e perceberemos que o. olhar do analista não é jamais observação neutra: como veículo da sua imaginação, como canal por onde surgem constantemente imagens que metaforizam as fantasias inconscientes — dele e do paciente —ele vem carregado com as forças poderosas da transferência, que é suscitação e ressurreição do desejo infantil.

Que este desejo assume a feição tranquilizadora da paciência benevolente, seja. Que ele tome por objeto não a autoglorificação do narcisismo do analista, mas a possibilidade para aqueles que se deitam no seu divã de, por esta experiência, acederem a um viver menos sofrido, seja. Mas convém lembrar que, para que isto ocorra, é necessário um investimento afetivo muito grande, e um constante cuidado para não invadir o paciente com a proliferação visual ou verbal do próprio analista. Proliferação que é condição do seu trabalho, e que ao mesmo tempo pode cegá-lo para o universo de imagens do paciente: o acesso às fantasias inconscientes deste último pressupõe que a transferência nos dê pistas legíveis, mas só se torna capaz de lê-las quem pode suportar ser objeto das emoções transferenciais sem tomar a nuvem por Juno, isto é, sem confundir o transferido com sua própria pessoa. O risco da captação imaginária, do espelhamento mortífero, ronda a psicanálise como a sua sombra, e é este risco que o conselho de Freud procura circunscrever. A exclusão do olhar não é apenas uma medida defensiva que o analista fóbico racionalizaria desta ou daquela maneira; ela contribui para que os fenômenos do campo analítico, “do outro palco”, possam emergir, assim como no cinema é necessário apagar as luzes para que na tela as imagens ganhem vida e movimento. Isto não impede que, em certas sessões, a temperatura emocional atinja as raias da incandescência; pois a pulsão visual é um dos paradigmas da sexualidade, e, impedida de se manifestar em pessoa, ela pode vir ativar outras facetas das pulsões sexuais. Em si mesmo, isto não é mau; é até uma das finalidades da terapia psicanalítica, “devolver ao paciente a capacidade de amar e de trabalhar”, como diz algures Freud. Mas, confrontado com a árdua tarefa de tourear a transferência, o psicanalista às vezes se recorda dos versos de Camões, quando, ao final do episódio de Inês de Castro, o poeta adverte que o olhar de Medusa tem um lado avesso:

Mas quem pode livrar-se por ventura

Dos laços que Amor arma brandamente,

Entre as rosas e a neve humana pura,

O ouro e o alabastro transparente?

Quem, de uma peregrina formosura

De um vulto de Medusa propriamente

Que o coração converte, que tem preso

Em pedra não, mas em desejo aceso?[45]

Resta saber se a Medusa habita apenas o divã.

Notas

[1] O início do tratamento (1913), Studienausgabe, EnOnzungsband, pp. 193-4; Biblioteca Nueva, p. 1668. A sigla SA designará a edição alemã e a sigla BNa versão espanhola das obras completas de Freud.

[2] Charcot (1893), BN I, pp. 31 ss

[3] J.B. Pontalis, “Entre Freud et Charcot”, in Entre le réve et la douleur, Paris, Gallimard, 1977, pp. 15-7.

[4] A interpretação dos sonhos, cap. II, SA II, p. 121; BN I, p. 409.

[5] O método psicanalítico de Freud (1904), SA Erg. p. 102; BN I, p. 1004

[6] Pontalis, op. cit., p. 17

[7] A interpretação dos sonhos, cap. I, seção B, SA II, p. 44; BN I, p. 358.

[8] A interpretação dos sonhos, cap. vi, seção c, SA II, p. 316; BN I, p. 539.

[9] Conrad Stein, “La paternité”, L’inconscient n° 5, Paris, jan. 1968,. pp. 65 ss.

[10] A interpretação…, cap. VI, seção F, SA II, pp. 409-10; BN I, pp. 602 ss.

[11] A interpretação…, cap. v, seção B, SA11, pp. 218-25, BN I, pp. 474 ss. Cf. Stein, “La paternité” , pp. 70 ss.

[12] A interpretação …, cap. vi, seção G, SA II, p. 441; BN I, p. 623.

[13] Stein, “La paternité”, pp. 75-6.

[14] Max Schur, “L’áffaire Emma”, Etudes freudiennes n° 15/16, Paris, 1979.

[15] A interpretação…, cap. VII, seção C, SA II, p. 534; BN I, p. 686, e o sonho mencionado na nota 7.

[16] M. Schneider, Père, ne vois-tu pas…, Paris, Gallimard, 1985, p. 105. (Para uma discussão mai ampla deste livro notável, cf. R. Mezan, “Seis autores em busca de um personagem”, in A Vingança da esfinge, São Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 374-84).

[17] A interpretação…, SA II, p. 211-2; BN I, p. 469.

[18] M. Schneider, Père…, pp. 140-1.

[19] Três ensaios, cap. II, seção 7 (Fontes da sexualidade infantil), SA v, p. 109, BN II, p. 1214. Este texto é citado e comentado por Laplanche em Vie et mort en psychanalyse, Paris, Flammarion, 1970, cap. I, pp. 37 ss.

[20] Este parágrafo é um resumo do que Freud estabelece em Pulsões e destinos de pulsão, SA v, pp. 86-90, BN II, pp. 2044-45

[21] Laplanche, Vie et mort…, p. 136, cap. V.

[22] Pulsões e Destinos de Pulsão, SA v, p. 90-1; BN II, p. 2045.

[23] Pulsões…, SA v, p. 91-92; BN II, p. 2045. Ver o comentário linha por linha deste trecho em La-planche, Vie et Mort…, p. 139-42, no qual este justifica a transposição da “criança sádica” em “criança agressiva”

[24] Laplanche, Vie et mort…, p. 137.

[25] Pulsões…, SA v, p. 93; BN II, p. 2046.

[26] Observações sobre um caso de neurose obsessiva (1909), cap. ii, seção c, SA VII, p. 100,BN II, pp. 1480 ss. As observações de Abraham se encontram em seu artigo “Perturbations et modifications du voyeurisme chez les névrosés”, Oeuvres completes, tomo II, Paris, Payot, 1966, pp. 36 ss.

[27] Stein, “La paternité”, p. 81.

[28] Abraham, “Perturbations…”, p. 13. O caso aqui resumido ocupa várias páginas do artigo.

[29] Abraham, “Perturbations…”, p. 17.

[30] Jean-Pierre Vernant, La mort dans les yeux, Paris, Hachette, 1986, pp. 31 ss

[31] A cabeça de Medusa, (1922), BN III, p. 2697

[32] O sinistro (1919), SA IV , p. 256; BN III, p. 2494. Cf. o excelente comentário de Oscar Cesarotto a este trabalho de Freud e aos contos de Hoffmann: No olho do outro, São Paulo, Max Limonad, 1987, especialmente pp. 128 ss.

[33] Vernant, La mort…, pp. 81-2.

[34] O sinistro, SA IV, p. 259; BN III, p. 2497.

[35] O sinistro, SA IV, p. 271; BN III, p. 2503

[36] Vernant, La mort…, p. 80. Todos os grifos são meus.

[37] K. Abraham, “Perturbations…”, pp. 31 ss.

[38] M. Schneider, Pere…, p. 103. O sonho do exame figura r.ia Interpretação dos sonhos, cap. V, seção D, SA II, p. 278; BN I, p. 515.

[39] O início do tratamento (1913), SA Erganzungsband, p. 194; BN II, p. 1668.

[40] A psicoterapia da histeria (1895), SA Erg., p. 84; BN 1, p. 160. Uma discussão mais detalhada desta passagem impressionante de Freud pode ser encontrada em R. Mezan, “Esquecer? Não: In-quecer” in H. Fernandes (org.), Tempos do desejo, São Paulo, 1988.

[41] M. Schneider, “Affect et langage dans les premiers écrits de Freud”, Topique 11/12, 1974, p. 121.

[42] M. Schneider, “Affect…”, p. 122.

[43] M. Schneider, “La conscience investie”, Etudes freudiennes no 29, Paris, 1987, pp. 36-37.

[44] Entre os trabalhos que abordam esta difícil questão, destacam-se os de Pierre Fédida, “Le visual” (conferência em São Paulo, agosto de 1987); Miriam Chnaiderman, “Imagens em fuga”, Folhetim n° 448, 25.8.1985; Maria Eunice Santos, “Entre a memória e o olhar”, Salvador, 1987 (fotocopiado); Juan D. Nasio, entrevista sobre seu seminário “Experiencias clínicas y nuevos nombres teóricos”, Psyche no 13, Buenos Aires, agosto de 1987, pp. 22 ss, etc.

[45] Luís de Camões, Os lusíadas, canto III, 142.

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