1994

A luz e o cego

por Evgen Bavcar

Resumo

Não se pode separar a imagem e o verbo.  A imagem condiciona o texto e o texto condiciona a imagem.  E vice-versa.  A dialética entre estes dois termos opõe ao visível o invisível, à imagem a palavra, e reciprocamente.

Não podemos conceber uma arqueologia da luz sem considerar a escuridão, pois a imagem não é apenas alguma coisa da ordem do visual, ela pressupõe a imagem da obscuridade ou das trevas.

O quadrado negro de Malevitch ilustra a consumação dos materiais até um ponto em que o retorno às trevas se impõe. Voltar para trás do quadrado negro ou ir além dele significa sobretudo recusar a positividade dos modelos repetitivos e se compromissar com o negativo.

O negativo nos é fornecido já pela obscuridade do momento vivido, na perspectiva da antropologia de Bloch, isto é, pela experiência do existir no cotidiano.

O salvamento do sujeito criador permanece possível enquanto ele pode se colocar em face do obscuro, utilizando as trevas como objeto  participante do processo de criação. É preciso ir agora para trás do quadrado negro, concebendo as trevas não somente como uma superfície mas sobretudo como um volume, como um espaço existencial.

Deve-se ainda então crer na cegueira do verbo e acreditar de olhos fechados na sua imagem.

Graças à invenção da camera obscura pode-se compreender o fenômeno da imagem antecipada pela negatividade, na obscuridade.

Na perspectiva de Benjamin, a fotografia enquanto imagem iniciou a perda da aura, No entanto, a camera obscura nos permite compreender a obscuridade  como esquecimento estético por excelência em relação às imagens que nós podemos criar. A camera obscura é um método efêmero do apagar da luz para que esta possa melhor se fazer valer.

O olhar físico que quer ver não é aquele olhar da verdade, pois a presença de um objeto só pode ser confirmada pelo toque físico. Por esta razão o tato permanece, para Bloch por exemplo, o único órgão da verdade.

O toque táctil continua como o sentido da verdade, pois ele não pode negar a materialidade das coisas, a existência real.

Quanto mais se desenvolve o mundo visual, mais extenso também fica o mundo invisível. Os limites da nossa visão são assim semelhantes aos limits da língua. A imagem-clichê é a expressão visual do empobrecimento da linguagem.

A proliferação de imagens causa prejuízo à narração. O rádio não tem o mesmo impacto que a televisão, mesmo se as duas mídias estão submetidas à mesma economia da linguagem.

Uma nova arqueologia da luz nos permitiria encontrar o olhar interior devido à oposição entre memória psíquica e memória física mas também encontrar a marca do sujeito, para instaurar as imagens que é capaz de assimilar. De fato não se enxerga nada se não se está em condições de criar uma representação interior relativa às coisas que se percebem.


Quero sublinhar a relação entre o verbo e a imagem para iniciar uma reflexão mais particularizada. De início é preciso constatar que não se pode separar esta parceria que eles formam, uma vez que a imagem condiciona o texto e vice-versa. Ou por outra, logo que nós não dispomos mais de imagens, é o verbo quem nos fornece novas possibilidades.

Para tanto basta evocar os textos bíblicos em que se apoiaram, por exemplo, os pintores, para conceber a imagem física de uma personagem ou de um evento. A importância do texto nos parece particularmente importante no caso do Moisés de Michelangelo. Os cornos de sua cabeça vêm de um erro de tradução no texto que serviu de suporte à figura. Que Michelangelo jamais viu Moisés, é evidente: foi o espaço do verbo que lhe forneceu a imagem mental em seguida trabalhada na pedra. Podem ser encontrados casos semelhantes envolvendo outras imagens da história da arte que se referem à Bíblia: figuras de Jesus, da Virgem Maria, ou esculturas representando Jó, David.

Nesta perspectiva o artista é sobretudo o mediador entre as trevas do verbo, do fundo de sua cegueira, e a evidência concreta da imagem, tal como realizada na arte através de um ou de outro suporte material.

O verbo é, então, cego: ele nos fala do lugar em que surge uma gênese primeira da imagem. É deste modo que, se queremos ir às origens das imagens visuais, nós chegamos forçosamente ao espaço do invisível, este do verbo, e à noite que precede o dia das figuras conhecíveis.

Podemos assim parafrasear são João dizendo: no princípio era o verbo, o qual torna-se imagem, a carne do visível, o visível em carne e osso, o substrato cognitivo do olhar.

As longas polêmicas em torno da iconofilia e do iconoclasmo são muito reveladoras desta relação entre o verbo e a imagem. E a dialética entre estes dois termos persiste incansável: opõe ao visível o invisível, à imagem a palavra, e reciprocamente.

Não podemos conceber uma arqueologia da luz sem considerar a escuridão, e sem elucidar o fato de que a imagem não é apenas alguma coisa da ordem do visual mas pressupõe, igualmente, a imagem da obscuridade ou das trevas.

É este espaço das trevas que nós encontramos na primeira manhã do mundo, pois Deus povoou estes lugares antes de se dar conta de que a luz era boa, como nos diz o texto do Gênese. Os anjos revoltados, e desse modos caídos, regressam às trevas e se tornam em conseqüência os lúciferes, isto é, os portadores da luz; satãs exilados nas origens, pois que eles não quiseram compreender a bondade da luz. Paradoxalmente, esta danação transforma-se no retorno às primeiras fontes da clareira do mundo, seu berço, situado no obscuro das origens.

As trevas condicionam a instauração da luz, são sua pré-imagem lógica e indispensável na ordem das coisas visíveis. A obscuridade permanece um estado latente, a saber, a luz em potência de devir e de ser.

O quadrado negro de Malevitch ilustra perfeitamente bem este processo de criação. Este quadrado simboliza a consumação dos materiais até um ponto em que o retorno às trevas se impõe, e daí a necessidade de um esquecimento estético que permitirá a superação deste estágio. Voltar para trás do quadrado negro ou ir além dele significa sobretudo recusar a positividade dos modelos repetitivos e se compromissar com o negativo.

A significação do quadrado negro de Malevitch está talvez expressa na frase de Kafka: “O que é positivo está dado, é então preciso descobrir o negativo”. Deste modo o negativo nos é fornecido já pela obscuridade do momento vivido, na perspectiva da antropologia de Bloch, isto é, pela experiência do existir no cotidiano, experiência tampouco alcançada, nem na clareira da memória que leva ao passado, nem naquela outra que cria uma luz de antecipação sobre o futuro.

Com a superfície negra o objeto pictural antecipa a possibilidade de uma superação estética, cônscia de que somente um tênue vislumbre messiânico lhe é conferido até o ponto de uma frágil força de redenção,
como diria Benjamin. O salvamento do sujeito criador permanece possível enquanto ele pode se colocar em face do obscuro, fazendo das trevas o seu objeto, o seu complemento, e não um inimigo a ser excluído do processo de criação. Notemos que as reflexões de Adorno sobre a relação sujeito objeto podem nos dar alguns meios lógicos para compreender isto. Consideramos a tentativa de Malevitch sobretudo como a defesa da subjetividade contra a objetificação exagerada na arte, que vai até a perda do sujeito criador.

O quadrado negro é assim um último grito contra o mundo em que tudo se torna intercambiável, mesmo o estatuto do sujeito. Dito de outra maneira, aquela figura dá ainda a esperança de um olhar para além do banal em que tudo se nivela.

O quadrado negro se torna o conteúdo sedimentado de uma forma pictural que permaneceu fiel à lógica dos materiais disponíveis ao pintor. É preciso ir agora para trás do quadrado negro, concebendo as trevas não somente como uma superfície mas sobretudo como um volume, como um espaço existencial em que podem ainda aparecer algumas estrelas redentoras brilhando por sobre o novo.

Ir para trás desta cortina significa ao mesmo tempo aceitar uma outra Eurídice no Hades da existência; em termos diferentes, uma outra Eurídice, que anda à nossa frente e não atrás como rezava o mito. Nele, enxergá-la era perdê-la de vista para sempre. Se somos obrigados a imaginá-la andando atrás, somos ainda os escravos de uma memória física constrangida à fatalidade da perda do objeto e, assim, à morte do sujeito.

Deve-se ainda então crer na cegueira do verbo — sendo ele representado pelo silêncio dos passos de Eurídice atrás de nós — e acreditar de olhos fechados na sua imagem. Através deste expediente nós podemos escapar à tentação fatídica que nos ameaça, da queda no mito do qual nós nos críamos liberados. Desta maneira nós podemos superar a angústia diante da obscuridade do momento vivido, para em seguida ir ter com os outros espaços do possível. A imagem que nós temos diante de nós é uma forma de pre imagem expressão de um frágil vislumbre de utopia, a qual suscita em nós a saída das trevas, lugar que nos legou a memória física, de uma beleza completa.

Certamente nada somos além de intérpretes das obras do passado, pois sua luz pertenceu somente ao criador, logo, àquele que dela possuía o saber absoluto. Devemos diferenciar a memória física da memória psíquica, a qual se aproxima mais da obra enquanto evento. Interpretando este evento, nós não possuímos senão o seu conhecimento relativo.

O caráter repetitivo das obras não entra em nenhum caso na lógica da luz como conteúdo sedimentado da criação. É no coração das trevas que pode surgir o astro salvador e conseqüentemente dar sentido a uma nova luz por trás das trevas. Se esta força da salvação nos lampeja frágil, como quer Benjamin, ela é, segundo ele, própria a cada geração. Por esta razão se devem abandonar as iluminações positivas concebidas como a continuidade não diferenciada dos eventos artísticos.

Graças à invenção da camera obscura podemos compreender melhor o fenômeno da imagem antecipada pela negatividade, na obscuridade. Esta última, ao menos em aparência, se torna controlável pelo olhar do homem para se poder criar a imagem como reflexo do mundo exterior. Mas em realidade não se trata do reflexo, mesmo quando a fotografia é colorida. E antes apenas uma forma de expressão visual do real inatingível. É ver uma ilusão do identificar-se entre a objetividade material e o seu sujeito.

Com a fotografia enquanto imagem tem início a perda da aura, segundo a perspectiva de Benjamin. Uma foto é a imagem de alguma coisa já morta e permite apenas uma vaga ilusão a respeito da identificação do aqui e agora. No entanto, a camera obscura nos permite compreender a obscuridade como tábula rasa, como esquecimento estético por excelência em relação às imagens que nós podemos criar. Com a camera obscura o homem encontra um equivalente tecnológico para a experiência deste esquecimento. Assim seria possível encarar mais radicalmente esta questão na pintura, onde esta oposição claro/escuro se articula de maneira mais orgânica e natural.

A camera obscura é um método efêmero do apagar da luz para que esta possa melhor se fazer valer. Na minha própria experiência o aparelho fotográfico não é mais do que um acessório técnico com o qual eu tento exprimir a minha situação existencial.

A fotografia me assegura também uma nova possibilidade de interpretação do mito grego de Eros e Psique, sobretudo da sua obscuridade original, antes da separação provocada pelo olhar incrédulo de Psique. Já neste mito a visão física funciona como a expressão da distância, no sentido de uma privação do objeto de desejo.

O olhar físico que quer ver não é aquele olhar da verdade, pois a presença de um objeto só pode ser confirmada pelo toque físico. Por esta razão o tato permanece, para Bloch por exemplo, o único órgão da verdade. Poder-se-ia defini-lo como o olhar chegado, ou encostado, aquele que não provoca ainda a separação inelutável entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Não nos resta senão examinar esta separação a fim de que o pensamento permaneça o único princípio verificador de uma possível verdade.

O toque táctil continua como o sentido da verdade, dado que ele não pode negar a materialidade das coisas. Ele não pode confundir a imagem com o seu substrato material. Eu quis exprimir essa dimensão da imagem pela série As vistas tácteis [Les vues tactiles], que remetem diretamente ao mito grego. Por elas, o olhar físico exterior se apaga em proveito de uma visão interior, aquela do Eros grego que se contentava com a claridade nele, enquanto Psique desejava um conhecimento exterior abstrato em relação ao seu objeto cognitivo. Ao abandonar o corpo-a-corpo original, Psique introduziu a distância, a ausência da obscuridade do objeto desejado.

Em outras palavras, a proximidade táctil é o mais seguro sinal de uma existência real. A liberação da imagem física da sua representação interior abre todas as possibilidades de imagens-clichês que, como tais, podem se justificar por elas mesmas. A abundância destas imagens no mundo moderno forma uma percepção abstrata das coisas que freqüentemente não existem mais por elas mesmas, mas somente através das imagens Hoje, por exemplo, a realidade do mundo torna-se mais televisiva, mais distante do que jamais.

Quanto mais nós iluminamos a superfície da nossa realidade cotidiana mais nós obscurecemos os berços possíveis de uma outra luz. E é igualmente verdade que quanto mais se desenvolve o mundo visual, mais extenso também fica o mundo invisível. Mas uma vez que a abundância da imagem-clichê é desprovida de qualquer substrato subjetivo, ela destrói no nosso cotidiano a presença real das coisas, e sua representação de nossa interioridade. Nós não percebemos senão a iluminação, sem poder ver a luz que é ligada estreitamente à nossa possibilidade cognitiva, isto é, ao nosso espírito. Este último só pode perceber em nós o claro-escuro e, pela mesma analogia, compreender os fenômenos exteriores sem que o peso da tecnologia da imagem ofenda as nossas percepções. Não se percebe nada se não se pode formular uma linguagem, e enxerga-se só aquilo que se sabe.

Os limites da nossa visão são assim semelhantes àqueles da língua. A imagem-clichê é a expressão visual do empobrecimento da linguagem; e isto até mesmo na forma contemporânea da sua economia. É assim que se pode compreender o banal visual e a ausência de imagem, que vão para além desta repetição do déjà vu, sob os auspícios da ideologia da novidade .

Devemos também nos dar conta de que a proliferação de imagens causa prejuízo à narração. O rádio por exemplo não tem nunca o mesmo impacto que a televisão. No entanto estas duas mídias modernas estão submetidas à mesma economia da linguagem. O real que nós percebemos pela televisão torna-se deste modo uma superfície autônoma carregando nela o esquecimento de seu substrato, assim como o apagamento do sujeito ainda capaz de uma representação interior. Para pensar ainda as imagens, importa encontrar a marca do sujeito para não se chegar ao simulacro como a única realidade plausível.

Uma nova arqueologia da luz nos permitiria encontrar o olhar interior devido à oposição entre memória psíquica e memória física — até mesmo tecnológica — mas também encontrar a marca do sujeito, para instaurar as imagens que é capaz de assimilar. De fato não se enxerga nada se não se está em condições de criar uma representação interior relativa às coisas que se percebem, deixando de arruiná-las neste mesmo ato por uma iluminação consumidora. Essas obras poderão existir para nós através de aberturas por vezes frágeis de uma memória que se defende ou que resiste às visões preconcebidas. Desta sorte as imagens da televisão podem elas também resistir ao fato de nada serem além de clichês. Mas elas não de-vem nos distanciar das coisas para nos dar a ilusão de uma falsa proximidade. Essas imagens televisivas não devem sequer existir suprimindo outras existências, mais materiais e mais concretas.

No meu trabalho de fotógrafo, compondo a luz num espaço obscuro concebido como volume, sou consciente da separação do mundo do verbo daquele da imagem que eu quero reconciliar, ficando fiel ao iconófilo exterior que eu era, e ao iconófilo interior em que me transformei.

Posso dizer que nunca peguei nada em fotografia. Pegar em foto é uma constatação válida para os outros, que me vêem como fotógrafo. Na realidade eu tentei sobretudo fazer valer uma imagem mental convertendo-se em película. Isto que eu fotografo, os outros não podem fazê-lo, e reciprocamente.

Situando-me no ponto zero da fotografia eu devo refletir novamente sobre uma significação apropriada da camera obscura, da qual eu tenho a experiência material em absoluto. Se as minhas imagens existem para mim através da descrição dos outros, isto não me impede em nada a possibilidade de vivê-las pela atividade mental. Elas existem mais para mim quanto mais elas possam se comunicar também com os outros.

Talvez Filostrato tenha visto a galeria de Nápoles, todavia, pelo seu texto podemos imaginá-la. As pessoas que olham diretamente as minhas fotos me dão a possibilidade de me assegurar da realidade materializada dos meus atos mentais. Por esta razão, eu me considero um artista conceitual sempre obrigado a pré-imaginar a imagem sobre a película. O aparelho fotográfico não pode pensar por mim.

Tradução de Rubens Machado

Figura 1
Figura 1
Figura 2
Figura 2
Figura 3
Figura 3

 

    Tags

  • arqueolologia da luz
  • arte
  • artista
  • aura
  • Benjamin
  • Bíblia
  • câmera obscura
  • cegueira
  • claro/escuro
  • cor
  • criação
  • criador
  • dejà vu
  • Eros
  • escuridão
  • Filostrato
  • fotografia
  • fotografo
  • gênese
  • heroi
  • iconoclasmo
  • iconofilia
  • imagem
  • imagem-clichê
  • língua
  • linguagem
  • Lúcifer
  • luz
  • materialidade
  • Michelangelo
  • Moisés
  • objeto de desejo
  • olhar
  • palavra
  • psique
  • reflexo
  • saber absoluto
  • Satã
  • sujeito
  • táctil
  • tato
  • televisão
  • trevas
  • verbo
  • verdade
  • visão
  • visível