2009

A invenção do pós-humano

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

Os momentos decisivos são sempre aqueles em que a transformação se sobrepõe à linearidade da lógica rotineira, seja nas convulsões subjetivas, seja nas movimentações coletivas da história. A condição humana implica a ordem da identidade e a desordem da anomia, sem que possamos saber definitivamente em qual desses aspectos residiria a sua verdade. Mas tendemos a crer que dominamos mais a estabilidade e o repouso do que a transição e a instabilidade, o que nos leva a desejar formas permanentes e definidas para nós e para o mundo, vendo nos movimentos de transformação apenas os meios para atingir a almejada realização – assim como o viajante considera o caminho de casa: suporta o estranho, o transitório, o irreconhecível apenas na medida em que isso o conduz ao familiar. Isso nos aparece como compreensível quando pensamos que toda viagem que não se mede pelo retorno ao lar é exílio, que todo movimento que de alguma maneira não nos reconduz a nós mesmos nos expulse de nossa identidade. Por isso, como dizia Bergson, apreciamos muito mais chegar ao ponto de destino do que a viagem que para ele nos leva. O que seria uma subjetividade que não projetasse objetos e objetivos?

Para que a impossibilidade de dominar o movimento e a mudança e, consequentemente, a imprevisibilidade do transitório não nos angustiem empenhamo-nos em tentativas de traduzir o processo de existir – contínua mudança – em vida realizada, existência completada, antecipando no presente que nos desidentifica um futuro em que nossa identidade nos aguardaria como um abrigo. Mas à medida que a experiência da mutação faz-se intensa mais esse abrigo da identidade torna-se promessa, vaga e longínqua, como refúgio do desesperado. E essa situação agrava-se quando percebemos que os movimentos que instabilizam nossa subjetividade e fazem-na oscilar não são provocados por nós mesmos mas por poderes invisíveis, anônimos, sem densidade suficiente para que pudéssemos enfrentá-los. O que há de aterrador nas mutações é sobretudo, o poder incógnito que elas manifestam. O que há de terrível na busca da identidade é constatar que se trata de um segredo que não nos pertence, como algo que nos tivesse sido roubado antes mesmo que viéssemos a possuí-lo. Formidável poder, aquele que administra a nossa falta, aquele que nos controla pelo que não somos, aquele que me faz ser outro sem que eu tenha a oportunidade de ser eu mesmo. Passagem e transição sem referência: a perda como origem e não como consequência.

Nesse cenário deserto, a condição humana mostra sua heteronomia ética, sua desintegração política, sua fragmentação subjetiva, sua alienação histórica, sua regressão existencial, como se o propósito do homem contemporâneo fosse a desinvestidura do humano. A quem interessa fazer da história a antecipação do apocalipse?


Quando falamos de condição humana, o que nos vem à memória, quase naturalmente, é o grande romance de André Malraux, a densidade ética da ficção que desvela a realidade ou a representação de uma história objetivamente complexa e contraditória e ao mesmo tempo carregada das ansiedades, esperanças e incertezas que aproximam e distanciam o sujeito da sua identidade. Não vamos analisar o livro, mas é oportuno colocá-lo no início destas notas, devido à força concreta de uma narrativa que tenta compreender a incompletude trágica da condição humana.

Com efeito, por trás da experiência contemporânea da relação entre existência e história está uma inquietude fundamental a impedir que essa relação apareça simplesmente à luz das dicotomias tradicionais. Já não nos é concedido esperar que a oposição se resolva numa síntese final, pois sentimos que cada elemento ou dimensão dessa dicotomia tenta em vão alcançar o outro, num esforço de comprometimento tão urgente no plano da realização quanto impossível na perspectiva da possibilidade. Na verdade, o percurso em que a existência se faz histórica nos coloca num jogo paradoxal em que só ganhamos ao perdê-lo.

Daí o significado existencial e metafísico desse movimento em que a busca de si e a busca da história implicam que o sujeito saia de si e negue a realidade. A revolução, em Malraux, não é um dever imposto pela compreensão da necessidade histórica; ela representa a ocasião para que o indivíduo atenda, numa intensidade tragicamente concreta, ao apelo de exigências fundamentais que o convocam a compreender e realizar o significado da vida. A revolução possui um sentido que ultrapassa a sua efetuação histórica, porque o que ela manifesta, na raiz de seu fascínio, é que o movimento de transformação da subjetividade e da história jamais se completa na realização da mudança eventualmente pretendida porque a condição humana nunca poderá estabilizar-se numa natureza. Esse caráter de aventura que faz parte da existência é paradoxalmente solidário tanto com a contingência quanto com a necessidade, porque, se é preciso correr todos os riscos, é preciso também justificá-los, já que nesse caso a aventura supõe engajamento e finalidade.

Assim se modifica significativamente a tradicional oposição entre o indivíduo e o coletivo. Não se exige de um homem que renuncie a si mesmo para servir aos outros porque, quando ele o faz, atende primeiramente a exigências íntimas de sua própria consciência. Não se espera que alguém se despoje de sua subjetividade para fazer história, porque cada um, inevitavelmente, faz, antes de tudo, a sua própria história. Não se pode escolher entre contingências singulares e o teor necessário da realidade, porque todo engajamento se origina naquela camada profunda do Eu em que não há razões para compreender, mas gratuidade para viver. Ou seja, polos inteiramente opostos se tensionam dialeticamente: o herói que luta pela civilização deveria poder justificar racionalmente suas ações, porém na verdade não pode fazê-lo inteiramente porque há um limite em que a possibilidade de justificar se choca com uma estranha lucidez que o obriga a aceitar uma espécie de thaumaton (admiração e perplexidade) no início de toda ação.

Entretanto, é precisamente esse paradoxo, essa impossibilidade de decidir definitivamente pela liberdade ou pela necessidade, que manifesta o fascínio angustiante presente naquilo que a condição humana tem de misterioso: “Uma vida nada vale, mas nada vale uma vida.” Equivalência contradição, tal é a relação que em última análise manifesta e oculta o movimento de uma existência que se faz história, de uma singularidade que encarna o universal. É como se a dificuldade de apreender essa relação proviesse da impossibilidade de definir seus termos. O que seria a história sem o sujeito singular? E o que seria esse sujeito sem o horizonte universal e indefinido de sua ação? Talvez o ser humano seja mesmo como diz Pascal: sua liberdade está em compreender a fatalidade, mas o caniço que se dobra ao vento é o mesmo que resiste à sua aniquilação.

O que quer dizer que a compreensão se desdobra em ação. Por isso todas as tentativas de exercer a liberdade supõem o movimento de deslocar-se, não apenas para se pôr em outro lugar, mas também para fazer-se outro. Por isso o significado da revolução é, inseparavelmente, individual e coletivo, subjetivo e histórico, pessoal e social. A modernidade privilegia a ação: a interferência científica na natureza com a finalidade de dominá-la em proveito do ser humano; a mobilização de meios racionais para a realização prática do bem: trata-se da ilusão de que seria possível chegar à plena positividade. A experiência contemporânea, entretanto, que enfrenta a negatividade, vale-se da ação para combater o mal histórico, a partir da constatação de que os meios quase nunca estão a serviço dos fins autênticos. Ora, a ação possui duas faces: a universalidade de sua determinação histórica e a singularidade da intenção subjetiva. Sabemos que a relação entre essas duas instâncias é quase sempre contraditória; mas ela pode ser trágica, porque é no próprio compromisso com a ação, isto é, na própria experiência subjetiva, que se manifesta primeiramente a cisão entre a consciência e a exterioridade, na medida em que essa última já é apreendida como constitutivamente inadequada para a realização da liberdade, isto é, do reino dos fins. A experiência de que, afinal, o que se deseja fundamentalmente é aquilo que não se pode ter interfere decisivamente na racionalidade da ação e faz com que permaneça o fundo de gratuidade – e que o absurdo esteja sempre de algum modo presente na ação, no engajamento, na coragem, na solidariedade, porque a ação comporta outros e mais complicados elementos além da eficácia racional.

Apesar de tudo, a liberdade consiste em combater a fatalidade ao mesmo tempo com desespero e fé: a lucidez consiste em fazer desse paradoxo uma atitude. É por isso que a revolução, tema constante em Malraux, consiste também em revelação. Por que o ser humano se compromete com o outro, isto é, com um projeto histórico (Revolução Chinesa, Guerra Civil Espanhola) e o faz sempre a partir de si, a tal ponto que por vezes fica difícil decidir se prevalece o individualismo ou o altruísmo? Ele o faz não tanto pelas metas que a revolução anuncia, mas porque o movimento que vai de si ao outro, da subjetividade à história, revela, no campo concreto da ação revolucionária, algo do enigma da condição humana, e, na verdade, revela, sobretudo, que ela é um enigma. O que há de novo em tudo isso é que não se faz a experiência da verdade, mas a experiência do segredo. Por isso, movimento e mutação somente são revelados na ação revolucionária – e independem do seu resultado. O que Malraux tenta fazer é representar na narrativa que o homem é o que ele faz, desde que não se esqueça de si no torvelinho desse fazer, isto é, a existência deve tornar-se histórica sem que a história venha a devorar a singularidade existencial. A ação propriamente humana não é apenas uma decorrência de expectativas (ou de um cálculo racional de possibilidades); é uma projeção de esperanças. A incerteza, a incompletude, a luta contra a necessidade, a presença da fatalidade fazem parte desse processo acidentado em que o sujeito se revela a si mesmo no movimento da subjetividade histórica que é também o movimento da história da sua subjetividade. Nesse sentido, não se trata de resolver a questão da oposição entre subjetividade singular e universalidade histórica, até porque há uma urgência constitutiva da ação que não comporta a espera da solução. Isso relativiza o peso das doutrinas. Kyo, uma personagem de Malraux, diz: “Há no marxismo o sentido de uma fatalidade e a exaltação de uma vontade. Cada vez que a fatalidade ultrapassa a vontade, eu desconfio.” A fatalidade não deve anular a vontade, assim como a vontade não pode anular a fatalidade. Não se trata de uma oposição abstrata, mas de um dilema ético inerente à ação.

Essas observações talvez nos ajudem a colocar o problema: vivemos um tempo de mutações em que a liberdade ainda está envolvida no processo ou vivemos uma mutação para um estado de ausência de liberdade? O que há de trágico no romance de Malraux é a impossibilidade de decidir se o heroísmo faz parte da personalidade ou está inteiramente na experiência histórica. Essas personagens excepcionais, sempre comprometidas com a construção do próprio destino, apresentam também uma fragilidade assustadora, como se o acontecimento estivesse sempre muito além do papel que nele o indivíduo pode desempenhar. Mas o que sobressai da conduta desses homens e mulheres aparentemente tão pouco comuns é a intuição de que a liberdade como luta pela libertação provém da fraqueza, da carência, da exiguidade dos meios, porque é isso que faz com que o homem, do fundo de sua contingência e de sua fragilidade, ouse desejar o domínio da necessidade histórica e da reordenação do mundo. É a única maneira pela qual o indivíduo pode esperar encontrar-se e encontrar os outros, ainda que no fracasso e na derrota.

Nesse sentido, a condição humana, enquanto percurso instável da busca da identidade, se opõe à natureza humana, entendida como um conjunto de determinações essenciais que configurariam a identidade já estabelecida. O exemplo clássico é a concepção cartesiana da consciência como substância, essência dotada de atributos que a manifestam explicitando o seu ser na mobilidade de uma existência sempre relativa a esse enraizamento ontológico que, se não é absoluto, é ao menos absolutamente verdadeiro. Não cabe esperar que a existência faça de mim algo mais do que já sou. Por isso o sujeito livre é aquele que controla a sua liberdade para que a sua prática permaneça nos limites de clareza do entendimento. O outro exemplo nos conduz a substituir a certeza metafísica pela elucidação transcendental que nos faz entender que a teoria e a prática dependem de formas constitutivas do sistema da razão, o qual nos assegura a priori a possibilidade da determinação e da liberdade. Na filosofia crítica de Kant, não podemos atingir a compreensão metafísica da subjetividade e de sua relação com o mundo, mas podemos contar com a explicação completa das condições formais que nos fazem conhecer e agir.

O que permanece nessa mudança é que todo e qualquer movimento constituinte do sujeito, seja no que se refere ao conhecimento, seja no que concerne à prática, depende de algo já constituído, o próprio sujeito, quer essa constituição seja entendida como real e metafísica, quer como formal e transcendental. No primeiro caso, há uma natureza metafísica que fundamenta o próprio sujeito e suas relações; no segundo, tudo depende da própria natureza da razão. A diferença de significado que aparece nos dois usos da palavra “natureza” é relevante na medida em que supõe continuidade. Com efeito, se nos ativermos à prioridade de uma consciência constituinte, veremos que essa função está presente nas duas modalidades de entender o sujeito e suas relações com o mundo, variando apenas a concepção do fundamento e as maneiras pelas quais o sujeito desempenha sua função. Do ponto de vista que nos interessa, é importante notar que a precedência da subjetividade se vincula à possibilidade de apreensão e de julgamento, pois é essa possibilidade que assegura a consistência da representação objetiva e da validade das normas.

Quando consideramos o caráter histórico da experiência, a questão que se coloca é se o sujeito pode ser considerado a única referência. Percebemos então que o processo histórico remete não apenas à relação entre um sujeito já constituído que compõe a sua experiência, mas à constituição da própria subjetividade, cujo sentido se constrói no desenvolvimento concreto da experiência. O problema é que tendemos a entender essa diferença como aquela que se poderia fazer entre duas lógicas; daí a propensão a considerar que a lógica analítica e linear, em que a realidade seria apenas a explicitação de possibilidades poderia, ou deveria ser substituída por uma lógica do processo, em que a articulação do real não seria apenas a explicitação de determinações causais sempre já dadas, e sim a sucessão do acontecer em termos de percurso histórico que se faria notar na natureza e na cultura. Essa síntese dialética entre continuidade e diferença, constitutiva de um processo de existência em que o real se encaminha necessariamente na direção da sua própria totalidade, como nos é proposto numa certa leitura de Hegel, talvez não seja suficiente para liberar a força da contingência em toda a sua significação – e isso por se tratar ainda de uma lógica, isto é, de uma manifestação do logos nas etapas de constituição da realidade, que seriam nesse caso consideradas menos do que acontecimentos. Afinal, o processo de realidade é o progressivo preenchimento de uma forma de totalidade que deve se perfazer graças à efetividade de seus conteúdos – a Experiência enquanto tal -, ou invenção histórica do mundo, a produção no sentido de poíesis, isto é, a experiência que somente remeteria ao seu próprio processo de efetivação, sem mimetizar a ideia e sem regular-se por esquemas dados a priori? Em outros termos, o que a mutação tem de invenção e o que ela tem de determinação?

Como se vê, quanto mais tentamos compreender a questão, tanto mais permanecemos orbitando em torno das relações entre subjetividade e história, contingência e necessidade, estrutura e processo. Isso nos faz suspeitar que a tarefa primordial não seria a de definir tais relações, mas compreender como essas tensões constituem o sujeito, não nas esferas da lógica ou da metafísica, e sim na dimensão existencial. Assim poderemos talvez escapar da tentação de pensar que a diferença entre necessidade e contingência – ou universalidade e singularidade – consista apenas em que o necessário seria aquilo que já traz em si a determinação e o contingente, o que ainda está por ser determinado. Em termos mais concretos, isso equivaleria a dizer que, ainda que os avatares da experiência considerada na sua historicidade nos tenham roubado a identidade que julgávamos possuir por essência, permanecemos ainda na crença de que essa identidade nos aguarda num possível final de percurso em que dominaríamos a contingência através de um conhecimento que esgotaria o singular ao determiná-lo completamente. Assim como o viajante resiste à sensação de perda cultivando a expectativa de que todo caminho conduz a um destino, como se a variação da paisagem não fosse do desconhecido ao desconhecido, mas uma passagem do desconhecido ao familiar. É a própria dificuldade crescente de reconhecer o ponto de partida que leva a afirmar o ponto de chegada como referência e sentido da viagem. Uma maneira de afastar-se do desespero e aproximar-se da esperança, de substituir a vivência do desconhecido pela expectativa do familiar. Nada de olhar para trás, como o anjo da História de que fala Benjamin; olhar para a frente, para visualizar o abrigo da identidade. Mas quem percorre o deserto sabe que olhar fixo à frente produz miragens.

Bergson se deteve profundamente nessa tendência, natural ao ser humano, de subordinar o movimento à imobilidade, de ver o percurso exclusivamente à luz do ponto de chegada. E quanto mais entendermos esse ponto como definitivo, em termos de realização e totalização, tanto mais conceberemos o movimento como relativo à imobilidade, a mudança unicamente como o passo necessário para a estabilidade. Relembrando a distinção que fizemos há pouco, isso equivaleria a dizer que aceitamos a nossa condição apenas na medida em que ela nos conduz a uma natureza. E assim entendemos o percurso de subjetivação, que é o itinerário das mutações, como devendo atingir aquele ponto em que seremos e permaneceremos nós mesmos. Nem mesmo a dialética, pela qual reconhecemos que a realidade humana é um processo, nos faz aceitar esse encadeamento de condições mutáveis sem que o pensemos como relativo ao seu próprio término, atingir a natureza. Daí deriva também a maneira habitual de considerar o tempo um meio de atingir a intemporalidade, da qual ele seria, como diz Platão, a imagem imperfeita ou a figura precursora. O temporal – o temporário – está sempre subordinado ao definitivo.

E assim somos levados a confundir a finitude da existência com o provisório, o transitório com o descartável. Mas quando, no início da modernidade, foram recusados os referenciais transcendentes e a estabilidade do mundo conferida pela autoridade da tradição, de forma alguma se aceitou a instabilidade, a impermanência, a contingência e a indeterminação como últimas instâncias de nossa relação com a realidade. O que se pretendia era que a razão humana, no âmbito da imanência e da laicidade, ou seja, unicamente pelo seu poder, viesse a fornecer parâmetros suficientes para uma reordenação do mundo, a partir da prerrogativa da subjetividade vista como fundamento.

No entanto, a ambiguidade que se insere nessa atitude consiste em supor que o ato pelo qual o homem recusa a heteronomia e afirma a liberdade possa ser o equivalente ontológico da coisa, isto é, da articulação estável que poderia continuar a existir, variando apenas o fundamento e os critérios de seu reconhecimento. Essa é a razão pela qual, em Descartes, o ato de pensar se transforma imediatamente em substância pensante, e a produção das sínteses cognitivas, bem como a afirmação das máximas morais em Kant, é descrita como ato subjetivo suspenso à garantia de um sistema formal a priori. Como se a estabilidade que caracteriza a ordem do mundo pudesse agora ser assegurada pelos atos do sujeito na forma de uma continuidade sistemática. A ambiguidade está justamente nessa tentativa de manter a continuidade estável da ordem por via da descontinuidade dos atos de um sujeito que se supõe livre. Dessa maneira, a estabilidade e a ordem permaneceram compatíveis com a liberdade subjetiva, assim como eram compatíveis com a ordenação objetiva a partir da transcendência. Por isso os critéríos metafísicos estabelecidos pela razão e as formas transcendentais vistas como condições a priori desempenharam papel tão relevante na compreensão da estrutura do conhecimento e da ação. Mesmo a história, cenário privilegiado dos atos humanos, pôde ser considerada totalidade estrutural internamente animada por um processo.

Isso se explica pela necessidade de compreender a condição humana por meio de procedimentos capazes de abarcá-la na sua presumida totalidade, ainda que essa totalidade tenha de ser considerada internamente mutável e processual. Com efeito, nada impede, do ponto de vista dos parâmetros intelectuais, que representemos o fluxo da vida e o processo histórico como movimento circunscrito nos limites de uma totalidade pressuposta como critério e fundamento do sentido da existência histórica. Isso acontece porque há pelo menos dois modos de considerar a finitude. O primeiro consiste em atribuir a ela uma consistência significativa que só poderia provir de uma ordem totalizada, ainda que de direito inserida numa ordem maior que seria a escala do infinito. Uma natureza finita se define positivamente pelos seus limites desde que os consideremos os elementos que lhe dão sentido e no interior dos quais se configuram as suas possibilidades. Uma outra maneira de considerar a finitude consiste em vê-la não como uma natureza fechada e integrada em si mesma, mas como uma condição de abertura para o que estaria além dela, não necessariamente como transcendência no sentido tradicional, mas como tudo que lhe falta para ser infinita. Nessa perspectiva, os limites definiriam essa condição negativamente, porque não a encerrariam em si mesma, antes apontariam para o que ela não é. Encontramos aqui a concepção de Sartre de que a condição humana se define pelo que não é, e portanto compreendê-la não pode significar circunscrevê-la por meio de limites que a abarcariam, mas visá-la por uma abertura indefinida de possibilidades, em cujo horizonte das quais está a completude inatingível. Então, se é a existência (a condição) que indica o humano, e não a essência (a natureza), essa abertura nos leva a aceitar o paradoxo: o que definiria o ser humano, se ele fosse definível, seria esse não pertencer a si mesmo, não se manter em si.

Isso esclarece a comparação feita antes entre entender o ser humano por via de parâmetros vinculados à permanência das coisas, e compreendê-lo por meio de critérios ligados ao fluxo instável dos atos. Isso nos ajuda a entender também a causa de nossa inclinação para a permanência da coisa e a nossa recusa da instabilidade dos atos: com efeito, é mais fácil, mais simples e mais seguro reconhecer-se como coisa do que como ato. É mais fácil explicar uma forma do que uma transformação. Uma forma definida aponta claramente para as referências que nos permitem situá-la; um processo de transformação não permite, pelo seu próprio movimento, localizar as referências de sua proveniência e dar conta das razões que o produzem, porque, para a tradição, a razão é princípio do sef e só se refere ao vir-a-ser quando o subordinamos ao ser como origem e finalidade. Como se o sentido último da transformação fosse a forma, e a finalidade do processo, necessariamente, o resultado.

Assim, quando queremos entender a condição humana, achamos que deveríamos buscar o seu ser, que corresponde tanto às nossas tendências intelectuais (a estabilidade do conceito, como diz Bergson) quanto ao nosso desejo de seguransa existencial (a fixidez da identidade ou o desejo de ser, como diz Sartre): escapam-nos a impossibilidade de compatibilizar completamente o processo de subjetivação como transformação de si e a identificação entre o si e o ser. De certa maneira, é natural que isso aconteça, pois somos conduzidos por hábitos e desejos que nos impelem a pensar que deveria existir uma coincidência, no caso do ser humano, entre modo de ser e egoidade, isto é, achamos que o processo existencial de construção de si mesmo não ocorre fora de nós, e sim na órbita do ego como referência do ser que nos é próprio. Mas a exploração do significado de condição humana deveria nos levar a ver na finitude caracterizada como abertura e projeção de si uma combinatória singular de desejo de transcendência e sentimento de insuficiência, mescla existencial que manifesta o fato de sermos constituídos pelo que nos falta ser.

Essa compreensão da condição humana repercute significativamente no modo como entendemos as mutações que ao mesmo tempo produzimos e às quais estamos sujeitos. Como já vimos, é muito forte a tendência a considerar o processo de mudança um percurso que conduz a algum resultado estável. Entendemos que só podemos desfrutar a existência: se a mudança se definir sempre como mudar para algo, como se a instabilidade e o movimento fossem sempre entendidos como percurso na direção da estabilidade, como se a experiência da subjetividade fosse sempre se sentir “em casa”. Assim, quando a experiência ameaça contrariar essa tendência, esforçamo-nos por transformar a mutação em permanência e tentamos representar a existência histórica através de uma relação em que a permanência teria prioridade e a mutação fosse secundária, como se pudéssemos ordenar a nossa história segundo uma hierarquia em que combinaríamos uma natureza essencialmente estável a uma condição acidentalmente mutável, de tal modo que a tarefa que se nos impõe seria a de reduzir a condição à natureza, realizando a ordem que nos parece natural. Note-se que, mesmo quando, para atender às injunções da experiência, sobretudo contemporânea, vivemos continuamente as mudanças que se apresentam como constitutivas do modo devido na atualidade; ainda assim, não fazemos propriamente a experiência das mutações, mas subordinamos essa experiência a um desejo de estabilidade cuja realização daria sentido à instabilidade da vida, tornando-a relativa a uma identidade passível de ser alcançada. É como se somente pudéssemos viver as mudanças através da expectativa dos resultados que elas deveriam trazer.

E é isso que faz das histórias pessoais a experiência das contradições não assumidas. É isso que faz com que vivamos a nossa história como uma biografia e um destino, isto é, como a explicitação acidentada de um percurso a priori necessário. Houve um tempo em que se podia pensar que a existência histórica se constitui por uma tensão entre condições subjetivas e determinações objetivas, isto é, entre nos­ sas intenções e as possibilidades de realizá-las. Essa tensão produzia um mundo e uma história que podiam ser remetidos sempre às suas contradições constitutivas do que se entendia como a compreensão dialética das transformações. Atualmente é bem mais difícil distinguir nas mudanças que sofremos aquilo que provém da nossa autonomia e o que deriva das condições objetivas que, por nos ultrapassarem, se tornam intensamente determinantes. A consequência dessa situação é a perda do horizonte de abertura que deveria caracterizar a instabilidade da condição humana. Mas não é difícil entender por que isso acontece. A insegurança presente na instabilidade provoca, da parte do sujeito, a recusa desse horizonte, tornando-o cego para tudo aquilo que esteja além da vivência imediata das condições objetivas que lhe são impostas. Por isso, vivemos as mutações sem que elas passem pelo nosso julgamento, tão forte é o caráter objetivo de que elas se revestem quando nos atingem. Por outro lado, esse mesmo fato nos desobriga de assumirmos uma responsabilidade maior pelo curso dos acontecimentos, inclusive na esfera da subjetividade. Assim, uma vida vivida somente no plano da objetividade inclui uma adaptação às mutações objetivas sem que sejamos levados a sentir que esse comportamento equivale a uma demissão da condição de sujeito. Como atribuímos

uma espécie de imobilidade essencialista à subjetividade, tornando-a natureza, assim também atribuímos ao que muda e ao que permanece um caráter de necessidade objetiva, como se a realidade histórica fosse uma sucessão de estados de coisas e não de atos, nossos e de outros, e nos quais teríamos a participação que os sujeitos deveriam ter nas ações individuais e coletivas.

Assim chegamos à duplicidade ou à ambiguidade que caracteriza a modernidade. Ela se define como a instauração da liberdade, mas sua história pode ser vista como a de uma perda progressiva da liberdade. De fato, uma existência histórica e finita só pode viver a liberdade na experiência da contradição entre a própria liberdade e os seus limites. A recusa dessa tensão equivale à recusa da liberdade; essa recusa, por sua vez, se manifesta na dificuldade – ou na impossibilidade – de julgar as mutações, isto é, de discernir-lhes o sentido que nos faria aceitá­ las, recusá-las, transformá-las. A condição finita faz com que a liberdade se abra para a dimensão do imponderável, do irrealizável, do risco. Por outro lado, a determinação assegura a priori a realização. Por isso somos levados a crer que o que se pode realizar na vida e na história é aquilo que já estaria objetivamente determinado e virtualmente controlado. E assim vamos nos conformando com a impossibilidade de interferir no curso das coisas, de viver uma vida que não construímos subjetivamente, aceitando padrões e normas cuja validade é exclusivamente objetiva e, no limite, estranha. Assim também aceitamos que as necessidades, desejos e esperanças sejam administrados e que seu significado seja originariamente extrínseco, como regras a serem praticadas.

O que talvez tenha escapado na instauração da modernidade e no desenvolvimento da sua história, tendo em vista que essa instauração e esse desenvolvimento se fizeram sob a égide da razão sistêmica, é que o sujeito livre não poderia ser apenas fruto de uma mudança histórica. Deveria ser uma invenção. E que a história desse sujeito só poderia se manter como história da liberdade se ele viesse a ser contínua invenção de si mesmo, como notou Sartre ao compreender a liberdade na sua dramática radicalidade. É nesse sentido que a modernidade permanece devendo a si mesma a sua própria realização. Porque, apesar de todas as mutações, o homem não inventou o homem; não se deu conta de que a instabilidade da condição humana significa essa invenção e não apenas a articulação das mutações, porque a verdadeira transformação, como mostrou Bergson, é invenção de forma, reinvenção de realidade. Talvez isso se configure também como uma responsabilidade demasiado pesada para os ombros humanos: afinal, a perda das referências transcendentes deixou o homem só, por sua conta e risco.

O caráter inacabado da modernidade poderia indicar a esperança inerente a uma tarefa ainda por cumprir. Mas pode indicar também que o ser humano – indivíduo e sujeito, tal como o concebeu o humanismo moderno – está prestes a ser superado antes mesmo de se ter realizado completamente. Tudo se passa como se o homem estivesse para ser ultrapassado antes de ter afirmado totalmente as qualidades que a modernidade lhe atribuiu; antes de encarnar o valor que expressaria a humanidade. Mas esse além-do-homem, esse pós-humano que talvez esteja por advir, não é fruto do esgotamento das possibilidades humanas ou demasiado humanas, como se pode depreender de Nietzsche. Antes, seria o caso de dizer que o processo de invenção do pós-humano é um processo de recusa do humano, uma atitude que consiste em evitar a experiência do humano. Nesse sentido, não é propriamente algo que supera o homem, mas sim alguma coisa produzida por ele, pela capacidade de sua razão teórica e pela incapacidade de sua razão prática.

Dessa maneira, a invenção do pós-humano manifesta do modo mais nítido a dialética entre progresso e regressão de que falam Adorno e Horkheimer. Para compreender esse processo seria preciso examiná-lo: 1) no seu teor psicológico e ontológico, isto é, nos episódios de regressão do processo de constituição da subjetividade como mal-estar da liberdade; 2no seu teor científico-tecnológico, ou seja, nos usos e propósitos regressivos da tecnociência, principalmente no que se refere ao conhecimento do próprio homem no mapeamento de sua constituição física e psíquica; 3) no seu teor ético-político, vale dizer, na regressão que se mostra através da dissolução de valores e da desintegração do sujeito moral.

Não é o caso de antecipar conclusões. Provavelmente, ao cabo deste exame, constataríamos que o pós-humano não é uma fatalidade histórica, nem uma consequência necessária da tecnologia, nem o destino ético da humanidade, mas uma produção humana da desumanização, o formidável poder, que somente ao homem se pode atribuir, de comprometer-se com um percurso de mutação cujos resultados podem vir a ser a impossibilidade do autorreconhecimento.

No entanto, essa impossibilidade não significa, para nós, que a experiência é um mistério a ser enfrentado com desesperada lucidez, como fazem as personagens de Malraux. Se a nossa identidade é um segredo que não nos pertence, nem por isso deixamos de produzir as pseudodecifrações pelas quais nos acomodamos na visão banalizada de nossa condição.

Bibliografia

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