2005

A imagem e o espetáculo

por Adauto Novaes

Durante breve período, o conceito de sociedade do espetáculo ocupou boa parte das reflexões sobre a cultura. De maneira apressada e superficial, era comum vermos associadas as ideias de espetáculo ao reino das imagens, em particular ao poder da televisão, mesmo depois de Guy Debord ter advertido, no clássico livro A sociedade do espetáculo, que o espetáculo vai muito além do show de imagens: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.[1] Assim, no mundo da mercadoria, o espetáculo torna-se sinônimo de cultura, o centro de significação de uma sociedade sem significação, ideologia materializada sobre a vida dos homens: depois de ter alienado os homens ao transformar seu “ser” em “ter” (fase da propriedade privada depois da industrialização), o espetáculo promove a passagem e a degradação do “ter” em “parecer”, sintetiza Frédéric Martel em seu comentário ao pensamento de Debord. O espetáculo torna-se, pois, o reino da mercadoria, reduzindo a cultura a seu mais alto grau de alienação, reino da passividade absoluta do indivíduo, “contemplação e empobrecimento da vida vivida”. O espetáculo é “o” que fala enquanto os “átomos sociais” escutam, instaurando, portanto, o mundo do “não vivido”.

Qual é o estatuto da imagem na era da globalização e da informatização? A teoria política avançou pouco nesse terreno, mas Guy Debord deixou algumas observações que merecem reflexão: vivemos hoje, diz ele, o momento do espetacular integrado, fusão do espetacular concentrado das sociedades totalitárias com o espetacular dfuso dos países democráticos. O espetacular integrado introduz, por meio do espetáculo, uma ditadura muito mais presente, na medida em que ela se torna cada vez mais invisível, conclui Debord.

Imagem e espetáculo são, pois, objeto de reflexão desse novo ciclo de conferências.

O que é imagem? Como pensar a imagem das coisas e a imagem de nós mesmos?

O pensamento clássico nos diz que a imagem é o resultado da ação de causas externas sobre nosso corpo (coisas luminosas produzem em nós imagens visuais). Se não tivermos consciência das causas que produzem imagens e se soubermos claramente que a imagem jamais nos oferece a própria coisa imaginada tal como é, cairemos fatalmente nas ideias imaginativas definidas por Espinosa como “ideias inadequadas”, isto é, efeitos que são tomados como causa.

A imagem, hoje, tem sentido muito mais forte em nossa vida quotidiana. Em cinquenta anos de produção e reprodução de imagens de televisão no Brasil, período de um desenvolvimento técnico sem precedentes e sem exemplos na história, as formas da vida social — religião, costumes, princípios éticos e políticos — passaram a ser objeto de controvérsia e revisão. Aos poucos, a difusão universal de imagens foi sendo consumida pelas sociedades. Cenários e mitos artificiais e instáveis foram feitos e desfeitos com rapidez. A instantaneidade e a simultaneidade adquiriram novas dimensões: o mundo foi posto na ponta dos dedos. Mais: a “realidade virtual” imagina romper com a clássica cisão entre o natural e o artificial. Culturas convivem com tendências e pensamentos que se ignoravam, crenças incompatíveis foram postas lado a lado, e estéticas nunca pensadas são reveladas. Tudo isso mediado pelas imagens. Sucessivas descobertas de mundos jamais vistos antes foram apresentadas ao espectador comum, graças às imagens. Essa nova realidade pôs o próprio pensamento em crise. À diferença dos momentos anteriores, a imagem hoje se transformou na mercadoria por excelência, objeto de produção, circulação e consumo, realizando de forma fantástica o velho axioma: cria-se não apenas uma mercadoria para o sujeito, mas criam-se, também, sujeitos para a mercadoria. É este hoje o estatuto da imagem.

Na análise de Paul Valéry, ainda que feita para outra crise e outro momento, o mundo moderno com toda a sua potência, com um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, não soube fazer uma política, assim como também não soube fazer uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais em harmonia com os modos de vida que ele criou, nem mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico impõem.

A televisão é parte desse processo. As imagens televisivas transformaram-se em nova religião, “espírito de um mundo sem espírito”. Isso não quer dizer que o problema esteja nas imagens apenas, mas sim no excesso de sua produção e no novo sentido que se quer dar a elas. As imagens sempre exigiram de nós tempo para ver, o tempo lento da vidência e da evidência, isto é, o tempo necessário para o desvelamento das ideias contidas em cada uma delas. O desvelar de uma imagem está na própria etimologia da palavra theoría, derivada da fusão de theá (“visão”, “olhar”) e ora (“desvelo”). A simultaneidade excessiva das imagens televisivas abole o tempo — tudo vira presente eterno —, tirando aquilo que é constitutivo de cada imagem, que é sua relação com o passado e com o futuro. Sem passado e sem futuro, as “duas maiores invenções da humanidade”, segundo Valéry, a visão torna-se impossível, indiferente e irrepresentável. Todos sabem: tal como o excesso de luz cega, o excesso de imagens cega.

Somos hoje dominados de ponta a ponta pelas imagens, e é graças a esse excesso que não aprendemos a ver ainda. Se não sabemos ver, é certamente porque a visibilidade não depende do objeto apenas, nem do sujeito que vê, mas também do trabalho da reflexão: cada visível guarda uma dobra invisível que é preciso desvendar a cada instante e em cada movimento. É esta a proposta do ciclo Muito além do espetáculo.

As imagens fascinam: ser fascinado é o cúmulo da distração, é estar desatento ao mundo tal como ele é, escreve Jean Starobinski.[2] Vivemos na sociedade do espetáculo e das imagens, diz o senso comum. Um pensamento mais exigente diria que isso não é nenhuma novidade e que o homem sempre viveu de imagens e pelas imagens. E não poderia ser de outra maneira: o próprio corpo é uma imagem que tem a capacidade de modificar as imagens que estão a seu redor, da mesma maneira que as imagens exteriores exercem influência sobre a imagem do corpo, como observa Bergson. As imagens não são, portanto, apenas, nem mesmo principalmente, um objeto de contemplação do olho e do espírito. É através delas que o olhar se realiza em nós com o que nos vem de fora; da mesma maneira que é através das imagens do espírito que o homem realiza o que está no mundo. As imagens permitem, pois, este duplo movimento: sair de si e trazer o mundo para dentro de si. É nesse movimento entre olhar e imagem que está o princípio do pensamento. Sem o pensamento, a imagem do mundo seria apenas um decalque do que acontece no exterior, sem nenhuma intervenção da inteligência. Com o pensamento, cria-se um mundo imaginário, que, nesse sentido, não é ficção, mas invenção do novo. Não é por acaso que tantos pensadores escolheram a visão como modelo do saber, aquilo que eles designam os “olhos do espírito”. No Tratado de pintura, Leonardo da Vinci diz, por exemplo, que as linhas visíveis de uma figura levam em direção a um centro virtual, que obriga o olho a pensar. É nesse sentido que devemos ler sua célebre frase: “A pintura é coisa mental”. O olho e o espírito, o interior e o exterior estão inteiramente presentes nas imagens de Da Vinci, como observa Bergson, quando assegura que, para Leonardo da Vinci, a arte não equivale a tomar cada um dos traços do modelo e transportá-los para a tela reproduzindo nesta a materialidade. Também não consiste em figurar um tipo impessoal e abstrato, em que o modelo que se vê e se toca vem dissolver-se em uma vaga idealidade. A arte verdadeira objetiva restituir a individualidade do modelo, buscando, por trás das linhas que se vêem o movimento que o olho não vê, algo de mais secreto ainda: a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa, pensamento simples que equivale à riqueza indefinida das formas e das cores.

É Descartes quem afirma que conhecemos a maneira de utilizar a intuição intelectual por comparação com nossos olhos. Por exemplo, quando observamos muitos objetos ao mesmo tempo com um só olhar, não vemos distintamente nenhum deles; e, do mesmo modo, quando prestamos atenção a muitas coisas ao mesmo tempo, por um só ato de pensamento, ficamos com o espírito confuso.

O esforço do pensamento consiste, pois, em decifrar imagens, entender o mundo a partir delas. Traduzir o enigma das imagens é uma forma de reconciliação do espírito com os sentidos. Nesse processo, cada imagem quer tornar-se palavra, logos; e cada palavra, imagem. Imaginar é, pois, julgar e pensar.

Durante muito tempo procurou-se entender a televisão pelas artes da palavra apenas. Pensava-se que bastava fazer uma análise de conteúdo dos programas. Esse tempo pode ser definido como um momento de indiferença entre pensamento e imagem, como se cada um tivesse seu domínio próprio. Hoje, o diálogo entre imagem e palavra é o grande desafio, em particular no momento em que o universo da mercadoria imaginária, totalmente abstrata e desrealizada, cria um mundo transfigurado, provocando necessidades imaginárias. O homem contemporâneo não cessa de consumir imagens, e é certo que seu olhar acolhe mais do que sua capacidade de refletir sobre elas. Como pensar o mundo da aparência, no qual apenas a imagem provoca desejos, e a posse ou a apropriação de cada objeto desaparece na virtualidade? Como definir um objeto que se desfaz no momento mesmo em que entra no campo do visível? É preciso, antes de tudo, discutir a estrutura do imaginário.

Ver as ideias nas imagens; compreender o mundo partindo das imagens, mas permanecendo nelas, eis o que o mundo imaginário exige do pensador contemporâneo. O que se quer dizer com isso é que não se compreende a imagem separando-a do pensamento; caso contrário, a própria imagem se perde, e isso é o cúmulo da distração.

Mas, afinal, como definir a imagem hoje?

Comecemos pela etimologia. Todos conhecem a insistência de Heidegger ao dizer que a palavra grega que significa verdade, alethéia, é composta do seu contrário, lethé, que quer dizer o obscuro, o oculto, o esquecido. Conceito imagético, portanto. Se o vocabulário ordinário de um povo é a verdade como o negativo do ser-oculto e do esquecido, estamos então diante de uma língua que pensa de maneira mais profunda, comenta Peter Sloterdijk.[3] Isso vale para todas as línguas. Cada palavra guarda em si sua significação expressa e um sentido latente. O avesso do avesso.

Tal como alethéia, a palavra imagem nos remete ao universo de luz e sombra ao mesmo tempo: imagem, imaginação, imaginário, fantasia, fantástico, fantasma, todas elas têm uma origem comum. “E, como a vista é o sentido por excelência, a imaginação [fantasia] tira seu nome de luz [faos] porque, sem luz, não é possível ver”.[4]

O destino da imagem está, pois, ligado ao acontecimento que nos leva à descoberta, ao desvelamento, ao desvendamento. Mas, como é próprio do pensamento, esse desvelamento não acontece sem riscos. Observa ainda Starobinski, em seu ensaio L’oeil vivant, que Sabina Popeia “corre o risco de que seu rosto desvelado decepcione seus amantes; ou que seus olhos grandes abertos e oferecidos lhes pareçam ainda cobertos de um sombrio véu: o desejo não pode mais cessar de procurar em outro lugar”.[5] O desejo de conhecimento é infindável. De onde se conclui que, sem o trabalho do pensamento, sem a teoria (palavra grega, como já se disse, que também pode ser traduzida por ser espectador, isto é, um ver que sabe ver, que inventa meios para ver cada vez melhor), sem, enfim, essa segunda vista, corremos o risco de jamais aprender a ver.

O olhar consiste, pois, mais na faculdade de estabelecer relações do que na de recolher imagens. Como escreve Merleau-Ponty no ensaio “O cinema e a nova psicologia“, “o sentido de uma imagem depende daquelas que a precedem, e sua sucessão cria uma realidade nova que não é a simples soma dos elementos empregados”. Há uma construção do pensamento nas imagens e através delas. É isso que Merleau-Ponty quer dizer ao escrever a propósito do filme no qual a ideia está em estado nascente: “É a felicidade da arte mostrar como algo se põe a significar, não por alusão a ideias já formadas e adquiridas, mas pelo arranjo temporal ou espacial dos elementos […]. Um filme dirige-se a nosso poder de decifrar tacitamente o mundo ou os homens e de coexistir com eles”.[6]

Assim, a questão que se põe na vida ordinária tal como ela se dá hoje — com a multiplicação infinita de imagens que nos fazem perder de vista o valor estético da vida — é a seguinte: é possível falar em deciframento do mundo?

É um cego — o fotógrafo e pensador Evgen Bavcar — quem nos adverte: não podemos conceber a arqueologia da luz sem considerar a escuridão: “A imagem não é apenas alguma coisa da ordem do visual, mas pressupõe, igualmente, a imagem de obscuridade ou das trevas”. Bavcar conclui com uma frase de Kafka: “O que é positivo já está dado; é preciso, então, descobrir o negativo”.

O olhar é feito de luz e sombra, do visível e do invisível. A sombra tem exatamente esse poder: o de produzir em nós, como observa Jean Starobinski, uma espera sem nome. Isso porque cada olhar refletido questiona o estatuto da realidade.

Ao lado da imagem, o ciclo Muito além do espetáculo quer ainda pôr em discussão a sociedade do espetáculo. Para Guy Debord, nos lembra Anselm Jappe, a televisão não é a conseqüência de uma relação plurissecular do Ocidente com a imagem; ela é o resultado de uma sociedade que anula a vida em proveito da contemplação passiva de imagens. (escolhidas por outros) que substitui o vivido e a determinação dos acontecimentos pelo próprio indivíduo.[7]

Ao lado das discussões sobre a imagem e o espetáculo, este ciclo de conferências propõe ainda um terceiro tema de debates: as perspectivas da televisão. Nessa era hipertecnificada, na qual se multiplicam em intensidade e variedade os objetos técnicos de reprodução de imagens, pergunta-se: qual o destino da televisão? Apesar dos discursos iconoclastas, é preciso dar resposta também a questões como: quais são as implicações da visão à distância ao vivo, em tempo real? Como cartografar um mundo sem fronteiras, sem medida, sem limites?

Por fim, alguns conferencistas nos convidam a um olhar reflexivo inquietante. O olho visual, diz um deles, constitui o mundo como espetáculo patético: estetiza vida e morte. Será a atenção estética por isso desviada ou pervertida? Ou será a reflexão estética por isso mesmo renovada?

Notas

[1] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997), p. 14.

[2] Jean Starobinski, Eceil vivant (Paris: Gallimard, 1985).

[3] Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, trad. Oscar de A. Marques (São Paulo: Estação Liberdade, 2000).

[4] Aristóteles, De Anima, livro III, trad. Lucas Angioni (Campinas: Unicamp, 1999), 429 a.

[5] Jean Starobinski, L’ceil vivant, cit., p. 11.

[6] Maurice Merleau-Ponty, “O cinema e a nova psicologia”, em Ismail Xavier (org.), A experiência

do cinema: antologia, trad. Marcelle Pithon, vol. 5 da Coleção Arte e Cultura (Rio de Janeiro:

Graal/Embrafilme, 1983), pp. 111 e 115.

[7] Anselm Jappe, Guy Debord, trad. Iraci D. Poleti (Petrópolis: Vozes, 1999).