2007

A esfera temível

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

Uma das consequências mais significativas e abrangentes da revolução tecnocientífica ocorrida ao longo do século 20 terá sido a convergência e mesmo, em certos aspectos, a assimilação entre os domínios antes tão distintos da Natureza e da Cultura. A progressiva hibridação de naturatos e artefatos se concretiza através de um duplo movimento: de um lado, setores cada vez mais amplos do mundo natural tornaram-se suscetíveis de apreensão conceitual e manipulação técnica em escalas cada vez mais fundamentais; de outro, as atividades produtivas das sociedades humanas, tomadas em conjunto, alcançaram tal magnitude que suas demandas e impactos estão se convertendo em contextos para elas mesmas. Onipresente, multiplicada, a ação técnica transborda para o ambiente; auto-afectiva, não-linear, toma por objeto seu próprio fomento…

À medida que os antigos limites se deslocam, porém, o paradoxo não cessa de se acentuar. Pois se a generalização do poder técnico por instâncias nunca antes manufaturadas corresponde à superposição dos ritmos ágeis, frenéticos, das produções culturais sobre os andamentos lentos, ponderados, das derivas naturais, a contrapartida é o enraizamento sempre mais profundo dos afazeres humanos em durações – biológicas, físicas, cósmicas – cada vez mais extensas: o pensamento se acelera, o tempo se distende. Perante uma civilização – qualquer civilização – que tenha atingido um patamar de desenvolvimento tecnocientífico que permita a exploração de seu sistema solar e de sua história evolutiva, observa Freeman Dyson, apresenta-se o problema de reconhecer sua herança prodigiosamente arcaica e sua descendência inumeravelmente ampla. O jogo do viver adquire uma potência que é também uma fissura: um labirinto, o miolo do presente se adensa e se intensifica, recolhe muitas vias de passado, distribui muitas vias de futuro, mas suas bordas se tornam mais e mais remotas – que é também um espelho. Nessa imensidão, cada minuto é mais breve, cada gesto mais efêmero. Os infinitos formais, os objetos eternos, podemos conceber, ou reverenciar ou suportar; mas as infinidades efetivas e as eternidades práticas, são demasiadas, são absurdas. O tempo é hoje, para nós, como o espaço foi para Pascal: uma esfera temível, cujo centro e superfície estão em toda parte, e em parte alguma.


Borges é sempre um bom ponto de partida. Em uma de suas páginas memoráveis, intitulada O sonho de Coleridge, somos informados de que, em fins do século XVIII, o poeta inglês Samuel Coleridge lera um comentário sobre a construção por Kublai Khan, imperador mongol da China, de um palácio magnífico. Adormecendo, sonhou que percorria os múltiplos aposentos do palácio, ao mesmo tempo que uma voz lhe emprestava palavras; quando acordou tinha na mente cerca de trezentos vívidos versos. Pôs-se de imediato a transcrevê-los, mas, interrompido por um visitante inoportuno, logrou registrar apenas pouco mais de cinquenta linhas. Bastaram para que Algemon Swinburne as declarasse o mais elevado exemplo de musicalidade da língua inglesa.

É longa a história das vozes que cantam nos sonhos dos homens, e Jorge Luís Borges menciona o exemplo do venerável Beda, que em uma única noite se viu convertido de rude pastor em incomparável menestrel. Mais assombroso que a origem onírica do poema, porém, é o fato de, vinte anos depois de sua publicação (em 1816), surgir em Paris um tratado persa do século XIV, atribuído a um certo Rashid ed-Din, e lá constar a afirmação de Kublai Khan ter erigido seu palácio “segundo um plano que tinha visto em sonho, e que guardava na memória”. Um imperador mongol, no século XIII, sonha um palácio; um poeta britânico, quinhentos anos depois, sonha um poema sobre esse palácio. O que dizer dessa simetria, “que trabalha com almas de homens que dormem e abarca continentes e séculos”?

Podem-se conceber, com diverso sucesso, diferentes causas ou origens para este portento: uma simples coincidência, nada mais que um acaso? Quem sabe houve um texto desconhecido, e imediatamente perdido, ao qual Coleridge teve acesso privado? Ou talvez se trate de um prodígio, uma transmigração ou metempsicose que fizesse a alma do imperador penetrar na do poeta, para que este reconstruísse o palácio “em palavras, mais duradouras que os mármores ou os metais”? Ou ainda, a revelação de um artífice imortal ou longevo, uma musa ou daemon que trabalhasse com argila onírica para, ao cabo de eras, efetuar algum plano sobre-humano? Ora, do palácio só restam ruínas, do poema sobraram apenas alguns versos; talvez então seja que a série de sonhos (e trabalhos) não chegou ao fim: se o esquema não erra, diz Borges,[1] o leitor de Kublai Khan pode sonhar um mármore ou uma música… Resta todavia outra explicação: talvez um, arquétipo, um objeto eterno, esteja ingressando paulatinamente no mundo; ainda segundo Borges, a primeira manifestação foi o palácio e a segunda, o poema. Quem os contemplasse teria visto que eram essencialmente iguais.

Borges está levantando aqui a tese provocadora de que, a rigor, não há autores. Somos sempre ressoadores ou reentonadores de ideias já imaginadas ou sonhadas por alguém. A essa tese Borges dedica vários textos e ensaios magníficos — o mais celebrado sendo, sem dúvida, Pierre Menard, autor do Quixote. Talvez não seja um equívoco excessivo vincular sua opinião a uma variante suavizada do eterno retorno dos estoicos: tudo o que se passa, quer no pensamento quer no mundo, é repetição. A história é cíclica, os mesmos fatos de novo advêm, os mesmos temas retornam, nós — esta geração — nos imaginamos seus criadores ou descobridores; de raro em raro, um explorador de eternidades — um Platão, um Whitehead — faz estremecer a vaidade do presente.

Não sei o que pensará o leitor sobre a paixão de Borges pelos ciclos; creio que concordará, todavia, que a inauguração de figuras inéditas de eternidade — e também, por falar nisso, de infinito — costuma assinalar ocasiões de profunda transformação cultural no curso da história, autênticas descontinuidades na cosmovisão então predominante. Um exemplo suficientemente ilustrativo é o da deposição do cosmos medieval de Dante em favor do universo mecânico de Galileu. De fato, recebemos desse grandíssimo pensador medieval a figura de um cosmos organicamente estruturado, demarcado por noções bem definidas de duração e eternidade, e de limite e infinidade. Vejamos o modelo espacio-temporal que Dante nos oferece: trata-se antes de tudo da associação entre dois reinos ou domínios distintos, o material e o espiritual. A geografia ou, mais exatamente, a cosmografia que Dante nos apresenta articula-se com a imagem nuclear da cosmovisão medieval, a Grande Cadeia dos Seres, segundo a qual a forma de cada ser prescreve seu lugar numa hierarquia vertical: há a profundidade infernal, a superfície da Terra — onde ressalta o monte do purgatório —, em seguida a sucessão de cascas cristalinas concêntricas (as órbitas) em que estão engastados os astros errantes ou planetas (inclusive o Sol e a Lua), culminando na abóbada das estrelas fixas. Envolvendo esse mundo finito, tão reminiscente do cosmos de Ptolomeu, encontra-se a derradeira expressão da corporalidade, a camada denominada de Primum Mobile que recheia, se assim se pode dizer, a separação entre os domínios físico e espiritual e tem a função de realizar a causa primeira dos movimentos requerida por Aristóteles. Para além, estende-se indefinidamente o reino incorporal celeste, o Empíreo, habitado pelas almas bem-aventuradas e pelos anjos e arcanjos da tradição cristã.

Dois aspectos dessa composição de espaços são especialmente notáveis. Primeiramente, a assimetria vertical que manifesta a ordem cósmica global imposta pela Grande Cadeia dos Seres e que se vincula, no âmbito terrestre, com o peso (leve ou grave) das coisas. Além disso, há a existência de um locus físico privilegiado, o centro da Terra, em relação ao qual se distribuem as distâncias e se coordenam os movimentos; desta inomogeneidade do espaço físico resulta que a Terra, que repousa nesse ponto focal, deve necessariamente ser imóvel. Daí também decorre a dupla natureza dos movimentos dos corpos: circular, perpétua e perfeita, nas esferas supralunares em que se encontram os astros; linear, efêmera e aberrante, na esfera sublunar em que agem os homens. Em segundo lugar, podemos distinguir no cosmos dantesco uma estrutura hierarquizada de temporalidades que reflete a organização espacial esboçada acima: duas eternidades — a dos bem-aventurados no paraíso acima, a dos condenados no inferno abaixo — circundam a brevidade da existência neste vale de lágrimas, em que somos colocados durante um curto transcurso para que nossas almas sejam postas à prova. Particularmente fascinante, porém, é a dupla função exercida pela contribuição verdadeiramente original do medievo à doutrina cristã tradicional, o purgatório. De fato, espacialmente trata-se de um monte ao qual as almas devem ascender, aliviando-se pouco a pouco da carga (o peso) dos pecados cometidos, de modo a alcançarem o topo — onde se encontra o Jardim do Éden perdido — já purificadas da grosseira gravidade corporal e prontas para “saltarem” para o empíreo; mas paralelamente trata-se também de um dispositivo temporal de regressão, de uma “máquina do tempo” que permite à alma retornar à pureza do estado de ser primordial, anterior à queda. Em resumo, dois espaços — o domínio espiritual envolvendo os reinos astral e terrestre, correspondendo a uma eternidade duplicada — a paradisíaca e a infernal — envolvendo as duas durações (inversas) da vida e da purgação.

Essa magnífica imagem de um cosmos a um só tempo orgânico e sublime sofrerá um golpe devastador no renascimento, quando Galileu retomará uma concepção platônica do mundo natural, consubstanciada na célebre sentença que os séculos seguintes não esquecerão: “Deus escreveu o Livro da Natureza em linguagem matemática; trata-se doravante, para o entendimento, de decifrar essa linguagem”. A passagem decisiva se dá com uma série de experimentos conjeturais — perfeitamente análogos aos Gedankenexperiment que Einstein tanto apreciava — que acabam por fazer Galileu concluir que os corpos tendem a manter o movimento que neles foi impresso, até que um outro agente intervenha obrigando o corpo a alterá-lo (o que é a essência do princípio de inércia, fundamento da moderna mecânica, que Descartes pouco depois irá formalizar). Ora, isso torna possível conceber um movimento retilíneo de extensão e duração indefinidas, ou seja, um corpo colocado em movimento poderia se mover uniformemente, durante um período em princípio arbitrariamente longo, até sofrer uma interrupção. A principal consequência dessa ideia extraordinária é abolir a distinção de natureza entre os mundos sub e supralunar; em particular, inaugura-se a possibilidade de poderem ocorrer movimentos perpétuos lineares, e não somente circulares: à repetição cíclica dos astros vêm agora se somar os movimentos inerciais indefinidamente duráveis. Contudo, se um corpo se move interminavelmente em linha reta, então é necessário que o espaço físico tenha uma extensão correspondentemente interminável. Rompem-se as bordas do mundo fechado de Dante, e entra em cena o universo infinito que será a glória de Newton.

Vemos bem o cataclisma de que advém a modernidade: se o espaço físico se prolonga infindavelmente, então o espaço espiritual é empurrado para depois do infinito. Se o território propriamente espiritual que era seu lugar natural torna-se infinitamente, inconcebivelmente, distante, o único domínio que resta às almas humanas é nossa interioridade; somente dentro de nós pôde subsistir ainda a separação absoluta entre corpo e alma. Transformada por Descartes em distinção entre res extensa e res cogitans, entre sujeito e objeto, essa fissura perdurará como condição de possibilidade do sujeito moderno. Por outro lado, um movimento infindavelmente prolongado requer uma duração igualmente infindável, e assim a eternidade do empíreo (em sua dupla versão de castigo ou ventura perpétuos) é analogamente deslocada por um novo tipo de eternidade, a da duração infinita. Tudo o que resta ao mundo é o tempo da transformação; a redenção alcançada ao cabo do purgatório se converte na expectativa de realização da essência humana pela história. A instalação do mito moderno por excelência, o progresso, acompanha assim a geometrização do espaço e do tempo que marca a ruptura entre as duas eras.

O ápice desse drama será atingido com a transformação na figura do tempo determinada um século depois pelos avanços das ciências naturais: a descoberta do tempo profundo. Curiosamente, foi a disseminação de uma inovação técnica — a máquina a vapor — que acarretou a revolução conceitual. Thomas Savery criou a primeira máquina a vapor — a chamada “amiga dos mineiros” — para que se pudesse bombear para fora a água que se infiltrava no fundo das minas de carvão, permitindo assim que estas fossem mais profundamente exploradas. Tratava-se de geringonça bem pouco eficiente, mas sucessivos aperfeiçoamentos logo demonstraram o valor dos novos dispositivos para aumentar a produção de minério, e em breve todos os centros importantes de mineração na Inglaterra dispunham deles. Foi aí que a descoberta espantosa foi feita: lugares separados por longas distâncias exibiam sequências praticamente idênticas de sedimentos minerais, indicando uma similaridade de composição geológica que abrangia centenas de quilômetros, de Gales à Escócia. Como se poderia explicar essa similaridade? Que tipo de agente poderia operar em tal escala e produzir a sequência observada de extratos sedimentares?

Ora, quais são os agentes que vemos operar nos processos de sedimentação? Basicamente, são as forças do clima — ventos, chuvas, nevascas e degelos — que erodem os solos e vão, pouco a pouco, gerando novas camadas de depósitos por sobre as camadas anteriores. Assim, quanto mais profundo o extrato, mais antiga sua origem. O problema é que a formação deste tipo de aluvião por desgaste e sobreposição é bastante lenta, e para gerar os extratos sedimentares com dezenas de metros de profundidade encontrados pelos mineiros britânicos seriam requeridos períodos quase absurdamente longos — da ordem de milhões de anos. Surge assim a noção de tempo profundo, uma das ideias mais terríveis que qualquer espírito já teve: a de que o passado de nosso mundo não se mede em anos, séculos ou milênios, mas sim em milhões de anos e seus múltiplos. Pascal já havia observado que, com Copérnico, os homens perderam o centro do espaço: o espaço homogêneo e infinito do universo mecânico não tem lugares privilegiados, não tem centros — a rigor, não há um onde… Com a descoberta das eras geológicas, ou seja, do tempo profundo, perdemos também o centro do tempo — a rigor, tampouco há um quando.

Ainda mais drástico, contudo, é o uso que Darwin irá fazer das extensas durações associadas à noção de tempo geológico para dar conta de um fato — na verdade, de uma miríade de fatos: a evolução das espécies vivas. Com efeito, a teoria da seleção natural explica as variações de forma dos seres vivos através da acumulação, ao longo de gerações sucessivas, de pequenas diferenças de
estrutura e funcionalidade (mutações) que irão eventualmente desembocar na constituição de espécies distintas a partir dessa origem ancestral em comum, capazes de reproduzir-se num ambiente cambiante (adaptação). Para que esse mecanismo de seleção por adaptação possa operar com eficiência, são necessárias durações muito extensas para alcançar um número suficiente de gerações; a descoberta do tempo profundo da geologia antecipa e permite a entrada em cena do tempo profundo da vida, o tempo da evolução. Este tempo, sabemos hoje, tem a mesma escala que a formação dos planetas do sistema solar — a vida subsiste já há bilhões de anos. Nesse caso, as durações próprias da vida descolam-se por completo do foco no homem e na atualidade; com Darwin, perdemos ademais o centro da vida, a evolução nos excentriza — a rigor, não há sequer um o quê (Freud assinalará que, com sua obra, perdemos, além do mais, o quem).

De fato, de um ponto de vista contemporâneo pode-se dizer que a vida é um tipo de matéria organizada que aprendeu a repetir sua forma e a variar essa forma. Caracteristicamente, os seres vivos exibem uma organização de matérias que “aprendeu” a replicar essa própria organização, reproduzindo-a sobre outras matérias. Esse processo se dá a partir da transcrição do manual de instruções redigido em “letras” bioquímicas, que define cada espécie viva, em comandos e programas para gerenciar a produção de proteínas que irão constituir as células, tecidos e órgãos dos organismos reproduzidos, que por sua vez conterão uma nova cópia desse manual de instruções, hoje chamado de genoma da espécie — e da capo. Mas, ao mesmo tempo, os seres vivos variam sua organização específica ao longo da cadeia de gerações, uma vez que esse texto bioquímico é frágil, e erros de transcrição podem ocorrer. Suprema potência, da vida, essa fragilidade permite que variações moleculares imprevisíveis, essencialmente aleatórias, façam proliferar os designs dos organismos, oferecendo uma diversidade mais ampla de oportunidades de assimilação das alterações ambientais e, portanto, de sobrevivência. A vida é um investimento na heterogeneidade; o resultado extraordinário desse investimento é que são postas em contato as durações minúsculas, quase infinitesimais, das reações bioquímicas com as durações grandiosas, quase infinitas, das circunstâncias ambientais, das eras climáticas, dos éons geológicos. Graças aos organismos e sua história evolutiva, surge no mundo a inovadora possibilidade de se conjugarem andamentos muito distintos; os brevíssimos períodos das reações moleculares adquirem uma interface, um domínio de mediação, que os vincula aos longuíssimos períodos dos processos climáticos, ecológicos, geológicos, planetários, astrofísicos: o trilionésimo de segundo engrena-se com o milhão de anos.

Se a vida é assim uma forma de mediação entre moléculas e astros, torna-se patente que nossa própria história, ou seja, a história da cultura, haverá igualmente de ter como substrato ou cenário de fundo, como base última, essas mesmas escalas de duração muitíssimo amplas. Contudo, não estamos habituados a lidar com eras de extensão tão assustadora. Se entendemos a história como o tempo da cultura, quer dizer, se a história é a temporalidade efetiva desse coletivo pensante que chamamos de humanidade, costuma ficar pressuposta nessa concepção uma distinção entre natureza e cultura que se expressa exatamente pela diferença entre os ritmos naturais e culturais, ou seja, costumam-se tomar os processos naturais como um dado, um fundamento estável, sobre o qual se dariam os processos culturais, como se sobre a lenta cadência, de um baixo se acrescentassem os velozes trinados de um sopro. Uma comparação rápida justifica esse entendimento: variações do brilho do Sol (e, portanto, da quantidade de iluminação que chega à Terra, afetando fortemente o clima) ocorrem em prazos da ordem de meio bilhão de anos; fenômenos de movimentação tectônica, como a deriva dos continentes, ocorrem a uma taxa de centímetros por ano, ou seja, cerca de 150 milhões de anos foram necessários para que o oceano Atlântico se formasse, separando a América do Sul e a África; a sucessão de eras glaciais e temperadas (como a atual) do clima global requer, tipicamente, algumas dezenas de milhares de anos. Já a antropologia nos ensina que o gênero Homo teve origem há cerca de 4 milhões de anos; nossos ancestrais começaram a se tornar criaturas técnicas (e, provavelmente, falantes) há alguma coisa como 2 milhões de anos; 1 milhão de anos depois, conseguiram o feito extraordinário de controlar um processo, o fogo; temos evidências arqueológicas de que principiaram a agir como criaturas simbólicas por volta de 80 mil anos atrás, quando começaram a enterrar ritualmente seus mortos. No entanto, uma inovação tão decisiva quanto a agricultura tem 12 mil anos de idade, e a cidade, a mais importante invenção do homem, 10 mil; a escrita, cerca de 8 mil; as línguas, entidades bastante duradouras, subsistem (transformando-se) alguns poucos milhares de anos; a instituição sociopolítica mais longeva é o Estado imperial do Japão, que tem mil anos de continuidade; a economia sofre trancos e arrancos na ordem de séculos, os ritmos da indústria e do comércio alcançam meras décadas; na civilização hipertecnificada de hoje as inovações técnicas tornam-se obsoletas em anos, e as ideias surgem, circulam e morrem em meses. O contraste é inegável: os ritmos naturais são paquidérmicos, os culturais são paroxísticos. Parece haver uma distinção muito definida entre essas instâncias.

O problema é que, em razão da extraordinária aceleração tecnocientífica ocorrida ao longo do século XX, hoje estamos nos tornando capazes de atuar em escalas microscópicas, ou seja, de descrever, explicar e operar nas dimensões constitutivas da organização de todos os sistemas materiais — inclusive dos seres vivos. Trata-se indiscutivelmente de um acontecimento especial: logramos imiscuir nossa habilidade técnica lá naqueles domínios e durações microscópicas em que se assentam os processos da vida — como se a cultura tivesse aprendido a manipular suas próprias bases naturais. De tal maneira que a distinção muito clara que assinalamos acima entre natureza e cultura, isto é, entre naturatos e artefatos, entre seres engendrados pelas forças autônomas da natureza, de um lado, e seres engendrados com intencionalidade pelas atividades da cultura, de outro, e que era tão nítida até meados do século passado, torna-se cada vez mais esmaecida e tende rapidamente a desaparecer. Vivemos no presente um momento de vertigem — pois o tempo profundo da evolução e o tempo histórico da cultura principiaram a convergir, já que agora o tempo histórico apossou-se dos ritmos microscópicos. Paradoxo fascinante que singulariza os dias que correm: se as escalas microscópicas que são o fundamento da constituição e organização dos seres materiais são progressivamente desvendadas e tornam-se suscetíveis de intervenção, muda a índole do próprio jogo — tudo se passa como se a história se rebatesse sobre suas fundações, como se tivesse avançado de tal modo que se tornou contexto para si mesma. Os efeitos das ações humanas passam a afetá-las de volta, qual fossem equivalentes a essas causas, qual fossem parte do próprio fundamento. Reciprocamente, a natureza deixa de ser o dado, o substrato a partir do qual se vai desenrolar a história; como se tivesse se tornado ela própria histórica. Dito de outro modo: neste presente hipertecnificado, as vastas durações naturais e os curtos prazos culturais confluem, e se mesclam, e se identificam. Onipresente, multiplicada, a ação técnica transborda para o ambiente; auto-afectiva, deslinear, toma por objeto seu próprio realizador…

Alice corre atrás do coelho apressado, entra no oco da árvore e começa a cair. A queda torna-se comprida, duradoura, interminável. Tudo que Alice vê são as paredes do túnel correndo sem parar ao seu redor; não sabe mais, não pode mais saber se está numa queda ou numa ascensão. Alice está caindo, Alice está subindo? Vertigem, paradoxo são também os signos desta época de aurora ou limiar, ocasião-limite em que o poder técnico condensa as linhas de tempo: no miolo espesso do presente, muitas vias de passado se precipitam e entrelaçam, muitos ramos de futuro se desdobram e espalham. Cada gesto, cada operação técnica que fazemos enriquecem o futuro de virtualidades cada vez mais inovadoras, logo, mais indeterminadas. O imprevisível é, doravante, inevitável. Essa imprevisibilidade não corresponde mais apenas aos caprichos cegos da fortuna — pois sucede porque a causamos. Consequências da aceleração técnica: processos em que os efeitos modulam as causas, os resultados reajustam os princípios, o decorrer de cada etapa altera as regras para a etapa seguinte. Deslinearidade, auto-afecção, auto-contextualização; mas, na linguagem coloquial, o termo apropriado para exprimir esses predicados talvez seja “crise”.

Freeman Dyson, o importante físico norte-americano, faz uma observação decisiva: perante uma civilização — qualquer civilização, realizada por qualquer sociedade de seres inteligentes (ou que se supõem assim) — que tenha atingido um patamar de desenvolvimento tecnocientífico que permita a exploração de seu sistema solar e de sua história evolutiva, haverá de chegar uma ocasião em que um problema verdadeiramente seminal se apresentará irrevogavelmente: o de reconhecer e assimilar duas séries infindas, sua ascendência prodigiosamente arcaica, sua descendência incalculavelmente ampla. Com efeito, ao se dar conta de que a vida é regida pela evolução, ao tomar ciência de sua longa história evolutiva, essa civilização contempla dois inumeráveis, sua herança, seu legado: dois infinitos, um para trás, um para frente.

Centremos nossa atenção em um particular exemplo de espécie inteligente, cujo estágio de desenvolvimento civilizacional encontra-se exatamente sob esse umbral — a humana. O cerne real do problema, afirma Dyson, é que a própria ideia de evolução implica que, na maior parte dessa ascendência muito remota, o humano não estava lá — pois o humano certamente proveio de um domínio pré-humano, proto-humano, a-humano. E, da mesma maneira, na maior parte de nossa (possível) descendência muito abundante, o humano não estará mais lá — pois o humano certamente proverá um domínio pós-humano, extra-humano, ultra-humano. Portanto, perante essa civilização se apresentará, irretorquível, indesviável, a experiência angustiosa e prodigiosa de reconhecer-se provisória. Eis o núcleo trágico desse rito de passagem civilizacional: dar-se conta da evolução obriga a compreender que o tempo não pode ser abolido. Não se pode extirpar o tempo da vida; a vida é tempo. Se assim for, a forma que hoje portamos, a natureza do que hoje somos, provém de algo que não somos mais, e a partir de nós se instalará algo que não seremos mais.

O reconhecimento de que a história evolutiva é a matriz mesma de sua existência obrigará esta civilização — qualquer civilização — a encarar sua precariedade intrínseca. Assim como seus membros amadurecem ao conceber e admitir sua mortalidade, esta sociedade inteligente terá de assimilar sua superação necessária, o advento da perda de sua forma. Talvez o mais nítido sintoma de que nós, os humanos, estamos hoje nos deparando com a árdua fatalidade de contemplar este espelho obscuro seja a constatação de que dois movimentos contrapostos exprimem o desejo divergente de largas parcelas da humanidade: por um lado, o anseio por estabilidade, a convicção de que temos uma forma, que essa forma nos é indispensável, e que precisa assim ser permanente. Um amor pela forma duradoura, perpétua, imutável; se essa paixão pela estabilidade é imoderada, se esse desejo por um fundamento estável é desmesurado, não seria inapropriado denominar esta crispação angustiosa dos espíritos de fundamentalismo. Em contrapartida, a potência do conhecimento oferece às civilizações científicas um lúcido paradoxo: sob a vigência das leis severas da evolução, a única estabilidade ou continuidade ou perpetuidade a que esta forma de vida societária e inteligente pode legitimamente aspirar é a da mudança de forma; só a mudança é realmente imutável. Coube-nos viver este estágio de transição, este momento de adolescência de nossa cultura: duas concepções se disparatando, o amor pelo humano, a paixão pela beleza da forma humana, a nostalgia da permanência inacabável desta forma, de um lado; do outro, a admissão da transitoriedade, o anseio pelo que ainda está por vir, o desejo de superação desta forma. Plenitude, relâmpago; qual das duas vias é a mais árdua ou mais bela, cabe a cada um de nós considerar.

Em resumo: uma das consequências mais significativas e abrangentes da revolução tecnocientífica, ocorrida ao longo do século XX, terá sido a convergência e paulatina assimilação entre os domínios antes tão distintos da natureza e da cultura. A progressiva mescla entre naturatos e artefatos tem se concretizado através de um duplo movimento: de um lado, setores cada vez mais amplos do mundo natural tornaram-se suscetíveis de apreensão conceitual e manipulação técnica em escalas cada vez mais fundamentais; de outro, as atividades produtivas das sociedades humanas, tomadas em conjunto, alcançaram tal magnitude que suas demandas e impactos estão se convertendo em contextos para elas mesmas. Segundo ambos os eixos, diluem-se as antigas fronteiras que classicamente distinguiam os elementos do mundo — matéria, vida, e pensamento; sujeito e objeto; natureza e cultura; interioridade e exterioridade — e através dessas fronteiras esgarçadas começam a nascer e proliferar híbridos de todo o tipo. À medida que os antigos limites se deslocam, porém, o paradoxo não cessa de se acentuar. Pois, se a generalização do poder técnico por instâncias nunca antes manufaturadas corresponde à superposição dos ritmos ágeis, frenéticos das produções culturais sobre os andamentos lentos, ponderados, das derivas naturais, a contrapartida é o enraizamento cada vez mais profundo dos afazeres humanos em durações — biológicas, físicas, cósmicas — cada vez mais inumanas: o pensamento se acelera, o presente se distende.

O jogo do viver adquire assim uma potência que é também uma fissura. Surge um labirinto: o miolo do presente se adensa e se intensifica, recolhe muitas vias de passado, distribui muitas vias de futuro, mas suas bordas se tornam cada vez mais remotas. Engendram-se num ritmo cada vez mais estugado entidades inéditas, intercaladas entre os domínios da matéria e da vida, e entre os reinos da vida e do pensamento; híbridos intermediadores que expandem de virtualidades indetermináveis cada iniciativa, cada momento, cada agora. Mas esse labirinto é também um espelho: na imensidão de passado e futuro em que esse presente espessado se abre, perante essa história que se torna profunda, cada iniciativa é mais ínfima, cada momento mais breve, cada agora mais efêmero. O infinitesimal nos amplifica, a infinidade nos aniquila. Sob tais horizontes ilimitados, todo fragmento de história e todo modo de existência parecem radicalmente insignificantes. Os infinitos formais, as entidades eternas, podemos conceber ou reverenciar ou suportar; mas, as infinidades efetivas e as eternidades práticas, são excessivas, são desmedidas, são absurdas. O tempo é hoje, para nós, como o espaço foi para Pascal: uma esfera temível, cujo centro e superfície estão em toda parte, em parte alguma.

Vivemos sob o temor dessa temporalidade transgressiva, demasiado fugaz, demasiado vasta. Refugamos a contemplação da duração interminavelmente longa da qual proviemos e da concomitante duração evanescentemente curta das palpitações de nossas vidas; temos nostalgia da eternidade identitária em que, quer na bem-aventurança, quer no castigo, pelo menos reconheceríamos nosso próprio rosto. Mas essa eternidade da mudança, da precariedade, da mortalidade, esse infinito do incessante deixar-de-ser, essa radical nulificação da importância do que somos, e fizemos, e sonhamos… Ah, isso não conseguimos aceitar. Aspiramos saudosos possuir uma raiz firme e sólida em que pudéssemos assentar nossa natureza. No entanto, nossa época demanda não raízes, mas sim antenas, abertas para a apreensão desse novo ser que irá se realizar através de nós, inevitavelmente. Pois, as escolhas acerca dos caminhos de nossa civilização, acerca do tipo de ponte que poderemos vir a ser entre o antes-de-nós e o depois-de-nós, essas escolhas terão de ser tomadas agora — e, ao longo de uma história potencialmente infinita, reverberarão infinitamente.

Consideremos uma concretização específica dessa encruzilhada ética. Se examinamos o estado de coisas vigente na civilização contemporânea, resulta ser difícil ignorar a advertência de sir Martin Rees, o astrônomo real britânico. Segundo sua análise, se uma civilização opera com as taxas aceleradíssimas de inovação tecnoconceitual que experimentamos hoje, ela dispõe de meios de destruição em massa acessíveis a grupos muito poderosos, porque controlam grandes organizações, ou a indivíduos muito poderosos, porque controlam grande saber, e exibe escalas tão inqualificáveis de desigualdade cultural, social e econômica entre uma minoria de possuidores e uma legião de despossuídos, então deve-se esperar um período turbulento e mesmo catastrófico nos primeiros quartéis do século que se iniciou recentemente. Quer seja com a eclosão de um conflito nuclear, quer seja com a disseminação de armas biológicas, ou ainda com desastres climáticos de grande amplitude, parece claro que se a governança do sistema complexo chamado humanidade, na Terra do século XXI, persistir mesmerizada pela manutenção a qualquer custo da continuidade e estabilidade do dispositivo de extração, açambarcamento e acumulação chamado de “mercado”, se essa governança operar como um núcleo fundamentalista irredutível, então de fato o que se pode razoavelmente antecipar é o investimento néscio, desesperado ou simplesmente insano no cataclismo. Uma alternativa seria fazer o mercado retornar a sua função original de meio, causa eficiente, para produzir e distribuir bens, substituindo-o na função de causa final da atividade econômica por valores que efetivamente encarnem diretrizes éticas que compreendam as forças em ação nesta atualidade tão rica de possibilidades. Um mercado para fazer proliferar e circular as produções da sociedade, no âmbito de um modo de viver menos concentrador, menos díspar, menos violento, que, recordando mestre Oscar Niemeyer, podemos chamar de socialismo. Está tão aberto e oferecido para nós esse caminho quanto o outro. Pois vivemos em uma Terra finita, e o desejo imoderado de riquezas não é realizável; como já ensinava Epicuro, há mais de vinte séculos, todo desejo imoderado nunca pode ser satisfeito: aquele que não se contenta com pouco, não se contenta com nada. A vontade desmesurada de continuidade e perpetuidade que consubstancia o fundamentalismo, quer seja seu foco o mercado, quer seja a religião ou o império, talvez não expresse nada mais que o receio da mudança, o temor da aventura em que uma potência artística não apenas brota em toda parte ao nosso redor, mas nos toma e inunda e faz de nós mesmos elementos decisivos da ação criativa.

Epicuro também nos mostrou que toda a infinita extensão do que ainda está por suceder advém do que efetivamente fazemos hoje — assim como o que somos hoje decorre dos milênios anteriores. Por um lado a responsabilidade é esmagadora, um só gesto e castelos desmoronam, catedrais se desfazem; por outro lado, a banalidade é aniquiladora, o que vale um ato humano em bilhões de anos de existência cósmica? Convém recorrermos mais uma vez a Borges:[2] já cego, ele visitou o Egito e foi levado à beira do deserto. Ele recorda que à borda do Saara tomou um punhado de areia na mão, caminhou alguns passos, despejou-o um pouco mais à frente, e disse para ele mesmo: “Eu modifiquei o Saara”. O gesto era mínimo, mas as engenhosas palavras eram exatas. Borges pensou que toda sua vida havia sido necessária para que pudesse dizê-las.

Cada gesto que fazemos é mínimo, inescapavelmente mínimo — mas os Saaras nunca mais, nunca mais serão os mesmos.

Notas

[1] Jorge Luís Borges, Nova antologia pessoal (São Paulo: Difel, 1982).

[2] Jorge Luís Borges, Atlas (São Paulo: Globo, 1997).

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