2003

A ciência no corpo

por Adauto Novaes

Há pouco, cientistas americanos anunciaram o rascunho do genoma — receita para fabricar um ser humano —, o que, de imediato, se transformou em um dos grandes marcos da história da ciência. O homem acaba de decifrar 97% das informações para criar a si mesmo, dando corpo a um dos mais antigos sonhos inscritos na ciência. Além do formidável avanço da medicina, estas e outras criações trazem em si problemas na ordem do pensamento, da ética, da política e de fenômenos culturais jamais pensados: dogmas, filosofias, maneiras de explicar o homem e o mundo são postos em questão. O tema é imenso e pede conhecimentos de várias ordens. No nível do pensamento, as novas descobertas científicas apontam para uma desordem mental em estado quase perfeito: tomando apenas dois exemplos, pode-se dizer que a noção de natureza não é a mesma que animou a história das ideias; o próprio conceito de subjetividade está posto em questão. No plano jurídico, as célebres noções de sujeito de direito e direito natural teriam hoje o mesmo valor diante da bioética, do biopoder e da biotecnologia? É preciso refletir sobre essa desordem. Problemas decorrentes do avanço científico apenas? Não propriamente, segundo alguns cientistas: por exemplo, o biólogo francês Jacques Testart, responsável pelo primeiro bebê de proveta na França, diz que atualmente “não é possível fazer ciência de forma independente”. E acrescenta: “Hoje não existe mais a ciência, mas algo a que chamo tecnociência. Não existe mais a vontade gratuita de obter conhecimento. Toda pesquisa tem finalidade, que é buscar inovações. É uma experimentação permanente, alimentada pelo mercado, em nome do progresso”.

Biopolítica passa a ser hoje um dos conceitos dominantes, mobilizando novas lutas políticas e estratégias econômicas. As relações entre saber e poder nunca foram tão mobilizadas no controle, na modificação, na produção e na reprodução da vida, “novidade radical na história da humanidade”. É a própria forma da vida que está em discussão. Lemos em A vontade de saber, de Michel Foucault, que o homem ocidental aprende pouco a pouco “o que é ser uma espécie viva em um mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidades de vida, uma saúde individual e coletiva, forças que podem ser modificadas […]”.

Se esses dispositivos saber-poder tornam-se evidentes a partir do século XVIll, como nos lembra Foucault, a relação ciência-corpo não é nova. Pelo menos desde a Renascença, o corpo do homem vem sendo progressivamente desvelado. Primeiro foi a pele, em seguida outras camadas, chegando-se aos músculos e tendões. Por fim, o crânio é aberto, pondo a nu o chamado “órgão da alma”, “regulador central desta máquina de ossos e músculos”. O desenvolvimento das artes mecânicas abre-se para o mito do homem artificial, inspirado no homem-máquina de La Mettrie. Vaucanson constrói “anatomias moventes”, reproduções mecânicas da respiração, da digestão, movimentos do corpo e até mesmo do mecanismo da circulação do sangue. Merleau-Ponty chega a evidenciar uma coincidência de interesses, no século XVII, entre o autômato, nas experiências cientificas, e a perspectiva, nas artes: tanto o autômato como a perspectiva davam a ilusão de realidade. Depois de muitas experiências na anatomia, os séculos XIX e XX são dominados pela teoria celular na biologia e pela patologia celular na medicina. Por fim, a ciência decifra o código genético, e o século XXI entra de maneira irreversível nas biotecnologias.

O próprio conceito de cultura genética, que, ao longo da história do pensamento, procurou opor-se à ideia de natureza, tende hoje a se dissolver e dar lugar aos “objetos técnicos”. Tudo caminha — principalmente o corpo — para o artifício. Ou melhor, observamos o início de uma substituição do Ser e de suas experiências da vida — isto é, da antiga relação, em nós, da natureza e do espírito (espírito entendido como inteligência, potência de transformação) — por mecanismos implantados em nós. Poderíamos dizer, sem risco de erro, que um corpo tecnicizado guarda ainda “qualidades ocultas” do corpo natural, enigmas que nos levam a pensar, permanentemente, o jamais pensado ainda? Poderemos continuar a dizer, com Merleau-Ponty, que “este corpo que sou jamais é o corpo que penso”, se a ciência pretende desvendar e ao mesmo tempo exercer um controle absoluto sobre cada órgão do corpo? Se atentarmos para o sentido primordial da palavra natureza chegaremos a nascor (latim), que quer dizer “nascer”, “viver”. Portanto, existe natureza

em todos os lugares em que existe uma vida que tem um sentido mas onde, entretanto, não há pensamento […] é natureza o que tem um sentido, sem que esse sentido tenha sido posto pelo pensamento. É a autoprodução de um sentido. A natureza é, pois, diferente de uma simples coisa; ela tem um interior, determina-se a partir do dentro, daí a oposição entre o “natural” e o “acidental”. […] É natureza o primordial, isto é, o não-construído, o não-instituído […] A natureza é um objeto enigmático, um objeto que não é inteiramente objeto; ela não está inteiramente diante de nós. Ela é nosso solo, não o que está diante, mas o que nos traz. Merleau-Ponty, La Nature; notes, cours du Collège de France

Temos, pois, a ideia de natureza como vida, operação natural da vida em oposição a qualquer movimento teleológico: o corpo humano só é corpo na medida em que traz em si mesmo o inacabado, isto é, promessa permanente de autocriação, e é isso que faz dele um enigma que a tecnociência pretende negar.

Mas, afinal, como pensar o corpo, esse sujeito do movimento e da percepção que, graças ao “espírito”, sempre teve a propriedade de se relacionar com outras coisas além da própria massa? O corpo, sabe-se, percorre a história da ciência e da filosofia. É, por isso, um conceito aberto. De Platão a Bergson, passando por Descartes, Espinosa, Merleau-Ponty, Freud e Marx, a definição de corpo sempre pareceu um problema: para alguns, ele é ao mesmo tempo enigma e parte da realidade objetiva, isto é, coisa, substância; para outros, signo, representação, imagem. Ele é também estrutura libidinal que faz dele um modo de desejo, corpo natural que passa a outra dimensão ao se tornar corpo libidinal para outro, uma “elevação em direção a outrem”: o Eu do desejo é evidentemente o corpo, diz a psicanálise.

Lemos, ainda, em Platão: “Este peso que trazemos conosco e que denominamos corpo e ao qual estamos presos como a ostra à sua concha”. Todos conhecem a visão dualista de Descartes, que define o corpo como uma substância extensa em oposição à substância pensante. Massa composta de osso e carne, o corpo é, para Descartes, uma “mecânica articulada” comparada a um relógio “composto de arruelas e contrapesos”. “Nada mais estranho que nosso corpo”, escreve Paul Valéry; seus prazeres e sofrimentos são incompreensíveis para nós: é que, para os seres vivos, “as propriedades íntimas da ‘matéria’ parecem ocultas pela própria estrutura”. Toda a meditação e o conhecimento interno possível são incapazes de nos revelar que somos sangue em movimento e transformação. Para Valéry, o organismo feliz ignora-se, e a arte do corpo consiste no silêncio eterno de toda uma parte da sensibilidade possível: “Existe coisa mais excitante para o espírito do que a ignorância do seu corpo? A maravilha consiste em nada conhecer deste nosso corpo. Para o espírito não existe coração, fígado, cérebro. Quando ele descobre esses órgãos, descobre-os como se descobre a América (descoberta científica) — como coisa estranha e estrangeira…”.

Se a perfeição é o esquecimento de certos fenômenos, o corpo contemporâneo é absolutamente imperfeito, uma vez que ele se tornou não apenas objeto de controvérsias mas também campo de todas as experiências possíveis. O corpo transformou-se em máquina ruidosa a ser reparada a cada movimento. Máquina defeituosa, “rascunho” apenas, como escreve David Le Breton, sobre o qual a ciência trabalha para aperfeiçoá-lo. Por que esse interesse em mudar o corpo a ponto de projetar para que ele se transforme em uma terceira coisa, nem natural nem inteiramente artificial?

Pensar o corpo apenas como máquina — ou, no limite, sua substituição por “máquinas inteligentes” — é o mesmo que ver sem perceber. A máquina funciona, o homem vive, isto é, estrutura seu mundo, seus valores e seu corpo. O que acontece quando se pensa que as máquinas são equivalentes a seres vivos? Um pensamento artificialista (segundo o qual é preciso tudo refazer pelo artifício humano) é levado — como nos lembra Merleau-Ponty — até a um ponto em que o próprio pensamento desaparece. “O artificio é negado”, diz ele,

e é apresentado como uma natureza. […] Na realidade, a máquina não reencontra as leis naturais e faz apenas uma imitação do fenômeno autêntico. […] Mesmo se faz uma projeção aparente, a máquina não comete “bons” erros. […] A máquina é uma montagem prevista para número finito de casos. A sua margem de imprevisão é muito medida. […] A função da máquina tem um sentido, mas esse sentido é transcendente, está no espírito do construtor. […] Não existe sentido operante dentro da máquina, mas apenas no ser vivo.

Merleau-Ponty conclui que os seres físicos, “como os seres matemáticos, não são mais ‘naturezas’, mas ‘estruturas de um conjunto de operações'”. Os cultores do artificialismo não distinguem, por exemplo, cérebro e mente. Ao desvendar certos mecanismos do cérebro, pensam ter descoberto o segredo do pensamento. É certo que a vida mental é muito mais complexa: quando pensamos, diz Bergson,

esboçamos ou preparamos (se não completamos efetivamente) os movi­mentos de articulação pelos quais se exprimiria nosso pensamento; e algo já se desenha no cérebro. Mas o mecanismo cerebral do pensamento não se limita a isso: por detrás dos movimentos interiores de articulação, que, aliás, não são indispensáveis, há algo de sutil que é essencial. Quero falar desses movimentos nascentes que indicam simbolicamente todas as direções sucessivas do espírito.

E isso a mecânica não pode fazer.

Outra linha de reflexão sobre o domínio mecânico no corpo é apontada por Michel Foucault com a teoria do biopoder: “O controle da sociedade sobre os indivíduos não se faz apenas através da consciência ou da ideologia, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista, é a biopolítica que mais conta” — isto é, o trabalho de produção e manipulação dos afetos.

Uma reflexão sobre o homem-máquina aponta para duas grandes linhas:

1. O DOMÍNIO DA CIÊNCIA

Lemos em Merleau-Ponty que a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Esse pensamento objetivo ignora o homem como sujeito e trata-o como um dos objetos manipuláveis. Tal pensamento “operatório” não é formulado sem consequências: o mundo natural, e nele o humano, é apresentado como imensa máquina, espécie de relógio cujas peças, como escreveu Henri Bergson, se “ajustam perfeitamente umas às outras. Tudo nele é mecanismo. E quando, com os hábitos científicos, consideramos o homem, somos necessariamente levados a vê-lo como um mecanismo no meio de outros mecanismos, como ser que funciona automaticamente”.

A matriz desse tipo de pensamento está na ideia do paralelismo psicofisiológico. Isto é, nosso cérebro é composto de elementos, moléculas, átomos etc. em movimento contínuo, e esse movimento é determinado pelas leis da mecânica. Um exemplo desse pensamento positivista: a partir das pesquisas que demonstram que lesões da memória correspondem a lesões localizadas no cérebro, passou-se a deduzir que o espírito se limita a reproduzir o que o cérebro forma mecanicamente. Desde então, busca-se localizar, no cérebro, as circunvoluções dos estados de consciência, julgamentos, raciocínios, sentimentos etc. A ciência procura até hoje estabelecer paralelos entre estrutura e função cerebral, tentando “naturalizar” o homem e seu espírito. Devemos entender por espírito o universo feito de realidades morais e sociais, ou, segundo Paul Valéry, “potência de transformação” da realidade. Mais ainda, espírito é trabalho de criação, como tão bem definiu Alain: “O que torna o espírito real é o que ele faz. Separado da obra, ele não é senão subjetividade sem expressão”.

Ora, pode-se dizer que o homem é mais que máquina? Sabemos ainda que existe, como observa Valéry, uma ambiguidade no corpo. Ele é aquilo que não vemos em nós mesmos, “aquilo que sentimos ligados sempre a nós, mas também que não vemos e jamais veremos”. É o espírito do corpo, o “navio Espírito [que] flutua sobre o oceano Corpo”. Esse corpo não é apenas o corpo anatômico, não é apenas máquina que pode realizar funções e satisfazer a “todas as condições de funcionamento que asseguram sensação, percepção, consciência e atos”.

Levando às últimas consequências suas ideias materialistas em relação ao corpo, La Mettrie rebate a visão daqueles que pensam que o homem é mais que máquina. Ele escreve, não sem ironia:

Ignoramos a formação da criatura humana, assim como a de qualquer outra. Observamos como ela cresce e se desenvolve, mas todo esse co­nhecimento tem relação apenas com o material. As faculdades da alma manifestam-se pouco a pouco. Fortificam-se à medida que são cultivadas e aumentam com a idade. Verificamos em nós mesmos os efeitos surpreendentes dessas faculdades e os conhecimentos que extraímos das ideias abstratas. As observações nos fazem ver que essas faculdades têm ligação estreita e particular com todas as partes do nosso corpo. Como está provado que o homem é um composto de duas substâncias, conclui-se com razão que essas duas substâncias são unidas da maneira mais estreita e maravilhosa. Sendo uma dessas duas substâncias dotada de um princípio intelectual, o homem não é unicamente máquina, mas ser mais que máquina.

Não se pode negar que o pensamento depende muito dos movimentos mecânicos do nosso corpo. Um corpo em cólera, por exemplo, provoca pensamentos perturbadores. Mas não se pode negar também que, do seu lado, a vontade possa alterar o corpo, pelo poder que ela tem de fazê-lo andar ou parar, por exemplo. Mais, o homem é todo inteiro paixão: lida permanentemente com o medo, o amor, a esperança, a glória, a amizade etc. De que maneira, pois, a psicologia e a fisiologia, assim reunidas no mesmo corpo, lidam com as paixões?

Se entendermos o corpo como “totalidade aberta”, como quer Merleau-Ponty, podemos começar a solucionar o dilema:

Não é o olho que vê. Não é a alma. É o corpo como totalidade aberta. […] A visão dos sons ou a audição das cores ocorre como a unidade do olhar pelos dois olhos: [a visão e a audição ocorrem] na medida em que meu corpo é não uma soma de órgãos justapostos, mas uma síntese sinérgica na qual todas as funções são retomadas e ligadas ao movimento geral do ser no mundo. […] Quando digo que vejo o som, quero dizer que à vibração do som faço eco por todo meu ser sensorial.

2. AS ARTES DA CIÊNCIA

Já foi dito que a ciência desencanta o mundo com sua positividade e seu olhar de sobrevôo, externo e superior às coisas do mundo. Ora, o homem e o mundo são mistérios infinitos, como escreveu o poeta e ensaísta Paul Valéry: “Observo que nossos sentidos nos dão apenas um mínimo de indicações que transpõem para nossa sensibilidade uma parte infinitamente pequena da variedade e das variações prováveis de um ‘mundo’ que não é nem concebível nem imaginável por nós”.

O mundo está tão próximo de nós e ao mesmo tempo tão distante que, ao entrarmos na “estranha ordem geométrica de tudo”, como descreveu Carlos Drummond de Andrade em seu poema “A máquina do mundo”, somos engolfados pelo absurdo original e seus enigmas. A pretensão de transparência ou de tradução absoluta das coisas pela ciência esbarra no imponderável das paixões, nos impulsos e em “tudo que define o ser terrestre”. É assim que diz Drummond:

O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla
abre teu peito para agasalhá-lo.

Mas essa ciência que desencanta o mundo também realiza milagres, dando corpo à imaginação: os cegos poderão ver, a memória humana poderá ser gravada em circuito eletrônico, o homem pode ser criado pela manipulação científica, doenças podem ser anunciadas por antecipação, combinações podem ampliar os anos de vida etc. Cientistas do Instituto Nacional de Prótese Neurológica dos Estados Unidos desenvolveram um olho de vidro com uma minúscula câmera embutida. Implantado no paciente, o olho capta imagens que são traduzidas por chips, microcircuitos eletrônicos implantados no córtex cerebral, onde se controla a visão.

Oito cientistas da British Telecommunications (BT) prometem para breve uma experiência que definem como o fim da morte: pôr todas as experiências físicas de uma pessoa em um chip implantado em seu cérebro. Em seguida, transferi-las para um computador, com opção de reimplante em outro cérebro. Ligado a células nervosas, o chip da vida, como os pesquisadores da BT chamam o mecanismo de gravar a memória, é grudado ao nervo óptico — o da visão. “Tudo o que o indivíduo enxergar durante a vida será gravado”, diz o coordenador do projeto. “O mesmo pode ser feito no nervo auditivo, em terminações nervosas responsáveis pelo cheiro, pela dor etc. É o fim da morte.”

Se não nos abrir para os perigos de um controle absoluto dos seres, essa nova ciência traz pelo menos a esperança de cura de alguns males do corpo.

Percorrendo a trajetória da relação entre corpo e ciência, pensamos um ciclo de conferências com a participação de cientistas e filósofos nacionais e estrangeiros, mostrando a positividade mas também os riscos do domínio científico sobre o corpo.

Se partes do corpo podem ser intercambiadas, trocadas por outros objetos materiais, o mínimo que se pode dizer é que uma das teses centrais da fenomenologia é radicalmente posta em questão: não se pode mais afirmar: “Eu sou meu corpo”. Como escreve o filósofo Jean-Marie Brohm, no ensaio Filosofias do corpo: qual corpo?, se meu corpo é inteiramente outro, a partir das intervenções da ciência e dos implantes e transplantes, a relação de ser no corpo é transformada em relação de propriedade: tenho um corpo, não sou mais um corpo.

De que maneira a filosofia e as artes viram o corpo em vários momentos da história? Quais as principais intervenções da ciência sobre o corpo?

Essas duas grandes questões esperam resposta nos ensaios deste livro.